“Nós somos o currículo em ação”: Anna Benite (UFG) discute a Lei 10.639/03 e outras resistências no contexto do Novo Ensino Médio

Legenda: Professores resistem à imposição de um currículo castrador ao abordar conhecimentos científicos a partir dos conhecimentos e da cultura tradicionais e de matriz africana, conforme preconizado pela LDB. Créditos da imagem: montagem realizada por Luciene Silva a partir de fotografia de alyssasieb, retirada de nappy.co e de estampa africana disponível em freepik.com.

Iniciamos as publicações que comporão a edição de número 7 da BALBÚRDIA, cujo tema será “20 anos da Lei 10.639/2003 e as Relações Etnico-raciais e o Ensino de Ciências” com essa entrevista. As reflexões levantadas pela professora Anna Benite articulam este tema e o da edição de número 6 da BALBÚRDIA (“Ensino Médio: um campo em disputa”). O número 6 da revista pode ser conferido neste link

Professora Anna Benite, omorixá e mãe da Sofia, do Thomás e do Ygor, é licenciada em Química, Mestre e Doutora em Ciências pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Desde 2006, é professora titular da Universidade Federal de Goiás (UFG), onde coordena o Laboratório de Pesquisas em Educação Química e Inclusão (LPEQI) e o Coletivo CIATA - Grupo de Estudos sobre a Descolonização do Currículo de Ciências.

Atua na área de Ensino de Química com foco na cultura e história africana no ensino de ciências, ensino de ciências de matriz africana e da diáspora, cibercultura na educação inclusiva, Mulheres Negras nas Ciências e políticas de ações afirmativas.

Bate-bola da BALBÚRDIA

BALBÚRDIA: Um ativista, militante ou político.

Anna Benite: Vou citar três: Nilma Lino Gomes; Kabengele Munanga e Petronilha Gonçalves. A professora Petronilha foi relatora da Lei 10.639. Então, a penúltima modificação do conteúdo da LDB foi feita por essa ativista negra. Uma mulher incrível! Essas três pessoas são incríveis e têm lutado por uma educação de qualidade, por uma educação que reconheça as contribuições do povo negro dentro dos currículos.

BALBÚRDIA: Um educador ou professor.

Anna Benite: Tem uma pessoa que é das redes sociais. O Moisés Machado. Ele tem feito umas propostas muito legais na escola pública, com uma educação antirracista musical. Ele tem feito uma revolução. Ele tem feito coisas fantásticas!

BALBÚRDIA: Um livro.

Anna Benite: O Quilombismo, de Abdias Nascimento.

BALBÚRDIA: Um sonho.

Anna Benite: Viver numa sociedade menos racista. Eu não acho que vamos conseguir acabar, de fato, com o racismo. Mas viver em uma sociedade menos racista é um sonho, porque o racismo é a mola da modernidade e todo recrudescimento nele cai na misoginia, na lgbtqia+fobia. O racismo é uma doença, um projeto, um crime perfeito. Eu queria poder viver numa sociedade menos racista.

BALBÚRDIA: Uma memória como educadora/militante.

Anna Benite: No ano de 2016, não me lembro bem a data, fui com minha melhor amiga, que fez a passagem faz pouco tempo, uma pessoa muito importante na minha vida. Nós fomos ao 13º Fórum Internacional do Direito das Mulheres. Aconteceu aqui no Brasil e nós fomos juntas. Foi uma experiência que transformou a minha vida em todos os aspectos. Eu conheci mulheres que militam sobre as mais diferentes e improváveis violências impetradas às mulheres. E aquilo ali modificou a minha vida. Criei o “investiga menina”  (clique no link para acessar o perfil de Instagram do projeto!) junto com essa minha melhor amiga. Foi uma experiência que transformou as nossas vidas. E essa minha melhor amiga também é uma pessoa que me fez uma pessoa melhor. Então, viver essa experiência com a Nicea Amauro (clique no link para acessar a Aula Magna da professora Nicea Amauro em 2019 na UFABC: "Representatividade e silenciamentos: mulheres negras nas ciências") foi transformador. Eu ainda estou vivendo o luto de ter perdido essa amiga tão recentemente.

06 de novembro de 2023 | 10:00

Por Caian Receputi, Eliani Moreira, Luciene Silva e Sofia Ratz

Anna Benite, professora titular de Química da Universidade Federal de Goiás (UFG), discute o Novo Ensino Médio (NEM) a partir de um olhar dirigido para o enfrentamento das estruturas sociais e de poder que oprimem minorias racializadas. Nesta entrevista concedida à BALBÚRDIA em junho de 2023, a professora costura ao longo de sua fala a crítica em relação ao currículo castrador que foi imposto através da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e Novo Ensino Médio, implementados na educação básica brasileira nos últimos anos. Ela traz à lembrança que a lei maior da educação brasileira, a LDB, inclui as Leis 10.639/2003 e 11.645/2008, o que assegura a interlocução com a história e cultura afro-brasileiras, africanas e indígenas, apesar dos poucos avanços que tivemos mesmo após 20 anos da primeira lei. Ela destaca a importância de professores bem formados e da aproximação de pesquisas em nível de pós-graduação com a educação básica para o enfrentamento do contexto que se impõe. Por fim, também chama a atenção para a valorização da docência e a necessidade de investimento na infraestrutura das escolas públicas. 

 

BALBÚRDIA: Como a profissão professor te ajudou na militância e vice-versa?

Anna Benite: Não sei se teve essa relação explícita, pois não é uma coisa ou outra, a docência e a militância ocorrem conjuntamente. Eu nasci na Baixada Fluminense, Duque de Caxias, um município que é um bolsão de pobreza dentro do estado do Rio de Janeiro, apesar de obter a segunda maior arrecadação em impostos por conta da refinaria da Petrobrás. O local onde nasci não tinha, e não tem até os dias atuais, água encanada e rede de esgoto, portanto, estou falando de um lugar precário. Este lugar também suscita prestar atenção nas condições de vida e a militância é isso: é você enxergar que existe um projeto de poder que não te inclui, sobretudo, quando se é mulher e negra, e buscar se instrumentalizar contra esse projeto de poder. Portanto, eu fui ser professora, pois era o curso que eu poderia fazer, era um curso noturno de Licenciatura. Por isso que digo que não é possível separar a docência da militância.

A militância se instaura na minha vida quando eu começo a prestar atenção nessas desigualdades, nesse projeto de poder. Ser professora auxilia a criar e manter um diálogo com outros e outras de nós, que estão na sala da educação básica. As minhas pesquisas são dirigidas, na maior parte, para a educação básica, pois é lá que nós podemos ampliar os horizontes para uma juventude negra que ocupa a escola pública.

BALBÚRDIA: A partir de sua trajetória, o que você diria aos professores: como eles poderiam se engajar na luta pelo direito à Educação?

Anna Benite: O conhecimento entra na minha vida para me dar um conforto, para eu saber que existe um projeto, que eu não sou culpada por essa situação, que eu sou a vítima desse lugar, mas que eu não preciso, de fato, ser uma vítima passiva. O conhecimento é um instrumento que te dá voz, que te dá mobilidade social. Não te dá direitos, pois o que dá direitos é o Estado. Quando você toma ciência de quem você é, você é liberto da meritocracia, por exemplo, que diz que o seu sucesso só depende de você. Eu digo aos professores e às professoras que eu aprendi a ensinar aos meus estudantes, que o argumento de meritocracia é falho, que nós precisamos construir e fomentar uma rede de apoio. Quando você chega à escola e encontra o primeiro embate social que é o outro sujeito social, um professor pode ser uma potente rede de apoio para uma criança. Inclusive, nós podemos ser uma rede de apoio para os nossos orientandos e orientandas na pós-graduação. Agora mesmo, eu estava conversando com uma orientanda da pós-graduação que estava bem desanimada, e qual é o meu papel? É o de sentar com ela e pensar em uma estratégia que injeta ânimo, para que ninguém fique para trás. Essa é uma importante construção de uma rede de apoio, para além da função da construção do conhecimento científico ou um diálogo acadêmico purista e simplista.

Portanto, professores e professoras: nós temos um instrumento poderoso que é o conhecimento. O conhecimento pode ajudar a nos libertar de fato, pode nos deixar mais confortável nessa estrutura. Para entender, por exemplo, que eu não preciso  estar atrelada a grandes sonhos de consumo, porque esse lugar me é alijado, eu não sou esse sujeito de direitos, mesmo eu hoje sendo professora titular. Se eu te disser “ah, agora eu vou comprar o último lançamento do carro X”. Não dá, hoje eu estou no último degrau da carreira de professor universitário, mas eu não posso fazer isso. Para isso, eu deveria ter nascido com esse patrimônio, portanto, não é o tipo de lugar que eu acesse. Eu preciso contar isso para os estudantes, para desvelar para as pessoas que se reconhecem em nós, e para que possam encontrar na gente redes de apoio. 

Há outro aspecto. Nós não podemos ser vítimas passivas de uma sociedade adoecida. Não é porque eu cresci em uma estrutura racista, que eu vou reproduzir essa estrutura e me sentir confortável com isso. Não é porque eu cresci em uma estrutura machista e lgbtqia+fóbica, que eu me sentirei confortável para repetir, apresentando a justificativa “ah, mas eu cresci nesse lugar, né?”. A escola passa por esses lugares, pois é um dos primeiros lugares onde há esse confronto, portanto também deve ser um dos primeiros lugares para se construir essas redes de apoio fora da nossa família. 

Eu diria aos professores e às professoras, que nós temos um papel incrível. Todos os dias você ensina uma ciência que é viva, que é pulsante, que é dinâmica, que apresenta uma possível leitura do mundo, pois existem inúmeras outras. Inclusive, nós podemos desvelar essa questão, para que as pessoas não se sintam alijadas desta produção científica, porque até hoje não tiveram contato com ela. Eu pertenço a uma comunidade tradicional, de matriz africana. A minha comunidade lê o mundo desde sempre sem precisar do conhecimento científico. Isso não torna o conhecimento da minha comunidade melhor ou o da ciência melhor. São campos diferentes e nós precisamos dizer isso aos estudantes, para que nós não endossemos essas guerras por disputas de poder que não chegam a ser poder algum, é na verdade o imaginário do controle sobre o outro, que passa pela interdição de corpos. Corpos negros são interditados dos currículos com a justificativa de serem destituídos da racionalidade e da inteligência. Corpos lgbtqia+ são interditados com a justificativa de serem corpos que transgridem, mas qual é a transgressão? Corpos femininos são interditados com a justificativa de serem propriedade. É isso que nós vamos reproduzir? Não importa qual a ciência que você ensina, a ciência e o currículo são mecanismos de controle. Então eu preciso me comunicar com as relações sociais. Eu diria para os professores e as professoras, que o maior ganho da minha profissão é poder dizer para todos que a ciência não é neutra, ela é produzida por homens e mulheres e precisa, portanto, dar respostas para as nossas relações sociais tão adoecidas.

BALBÚRDIA: A partir do que você expôs, pergunto como o NEM tem impactado na efetiva implementação da Lei 10.639/03, que é aquela que estabelece a obrigatoriedade do ensino da história e cultura afro-brasileiras e africanas nas escolas públicas e privadas do ensino fundamental e médio.

Anna Benite: O Novo Ensino Médio é uma proposta fracassada como tantas outras. Nós somos o currículo em ação. Nós: professores e professoras. Essa reforma é mais uma tentativa de nos silenciar. Por que todas as reformas passam pelo controle? Existe um grande medo que nós façamos o nosso trabalho como tem que ser feito. Não estou pedindo para ninguém se comprometer com alguma causa: se tornar militante e defender uma causa. Não é nada disso. Apenas realizamos o nosso trabalho como deve ser feito. Então, o NEM, é esse lugar de “nem nada”, nenhuma revolução, nenhum lugar, pois ele fracassou. Você conhece algum lugar que implementa o Novo Ensino Médio de fato? Eu conheço escolas que ainda utilizam os livros didáticos distribuídos pelo último programa nacional do livro didático (PNLD), antes desse inominável que assumiu o nosso país, mas também conheço escolas públicas que resistem bravamente, que tem feito altas revoluções, resistindo à tudo isso. Porque o nosso problema não está neste instrumento castrador que é o currículo, pois ele sempre existiu. E nós, sempre estivemos nas escolas travando outras batalhas. Para mim, essa é uma proposta falida, mais uma tentativa de controle. Quando nós avançamos um pouco, surge mais uma dessas propostas. Nós conseguimos burlar aquela, driblar ou pô-la em demérito e mudam-se as regras. Essa é mais uma dessas tentativas e eu não acredito no sucesso, nem na implementação. Ao meu ver, professores e professoras podem ficar tranquilos, pois os dias dessa reforma estão contados! O NEM ainda nem nasceu e já morreu! (risos) A interlocução está muito potente. A equipe que está trabalhando hoje no atual governo, que é um governo que nós acreditamos e que renova as nossas esperanças, um governo popular sob o qual nós já vivemos antes e sabemos como atua, foi potente para nós. Acredito que o principal caminho é o da interlocução e nós temos, de fato, os representantes para fazer essa interlocução. Nós nem tínhamos isso antes. Agora, voltam para a mesa de interlocução pessoas que de fato podem contribuir, pois as outras pessoas que estavam não tinham nada a contribuir. Iriam fazer interlocução com o quê? Eu acredito!

BALBÚRDIA: Uma das questões debatidas é que o NEM caminha de forma contrária a algumas tentativas políticas de enfrentamento e combate às desigualdades de raça e de gênero. Marcadores de raça e gênero foram excluídos da BNCC, e a primeira versão do Sistema Nacional de Educação não cita raça e gênero em diretrizes para acabar com as desigualdades no ensino. Quais são os seus apontamentos sobre o Novo Ensino Médio?

Anna Benite: De fato, tanto a BNCC, quanto o NEM, são operadores excludentes de controle. Mas, nós continuamos com uma lei maior de educação no país que é a LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional). Essa não foi revogada, foi alterada pela Lei 10.639/2003 e pela Lei 11.645/2008, justamente as leis que preconizam a história e cultura afro-brasileiras, africanas e indígenas. Então, a lei maior da educação no país, a lei vigente, é uma lei voltada para o investimento em formação de professores, pois essa é a base da LDB, ainda nos eixos de contextualização e interdisciplinaridade. Esses são lugares em que ainda encontramos possibilidades de diálogo. É óbvio que a BNCC e o NEM, são impeditivos de alguma maneira, porém, não são os instrumentos maiores. Assim, de alguma forma, ainda estabelecemos diálogo quando estamos em consonância com a lei maior da educação. Eu não vejo isso como uma preocupação latente, vejo como um apontamento que já se espera de interdição. Nós avançamos muito pouco nas discussões, mas, avançamos. Então, hoje, é possível se discutir sobre autores indígenas e autores negros no ensino médio, mesmo que com uma baixa frequencia, mas, é possível fazermos essas discussões. É possível observarmos que a maior parte dessas discussões ocorrem quando estudantes de pós-graduação dirigem suas pesquisas para a escola básica. É nesse diálogo entre a produção científica e a escola que a renovamos. E isso, está para além de qualquer documento! Veja, a última alteração na lei (10.639) foi realizada em 2003 e a alteração através da 11.645 foi feita em 2008, assim já são 15-20 anos da última alteração para uma implementação da lei, que nunca ocorreu, mesmo sendo a lei maior da educação no país. Nunca aconteceu de fato, em 100%, com seu operador máximo, então porque iremos temer com tanta veemência uma reforma que é tão recente? Pensando nas articulações, os cursos, as avaliações, tanto a nota do Ideb quanto as avaliações de curso, ainda utilizam como critérios de pontuação o atendimento à lei maior da educação do país. Os cursos de formação de professores ainda oferecem as discussões para formar professores que sejam capazes de lidar com salas de aula inclusivas, com toda a gama de pessoas que está na sala de aula. Esse é um ponto muito interessante. Não é porque o ensino médio passa por uma reforma castradora que a formação desses professores atendeu à essa reforma. Eu gostaria de falar sobre uma experiência para você. Essas disciplinas eletivas têm sido surfadas pelo nosso coletivo aqui no estado de Goiás. Os professores não sabem o que fazer diante dessas disciplinas. Existem professores ensinando como se faz brigadeiro. Eu não sei sobre isso, mas dizem que tem. Nós, por exemplo, estamos fazendo disciplinas para ensinar simetria molecular à partir de um bordado negro de comunidades tradicionais. E nós estamos ensinando conteúdo científico de fato. Agora mesmo, iremos fazer a culminância da disciplina com a exibição do que foi produzido em sala de aula. Os estudantes estão produzindo moléculas, estruturas moleculares a partir de telas de bordado. Nós incluímos um componente que é a valorização da atividade artística. O artesanato sai do campo das artes, pois passa a ser vinculado a uma atividade essencialmente feminina e, portanto, de menor valor. Jogamos isso para dentro da casa das pessoas, dizendo “olha, você tem uma tia que borda, uma mãe ou uma avó que faz crochê”. Isso tudo é operação matemática sofisticada, e é mesmo! As pessoas estão contando, somando, calculando o tamanho… enquanto estão tecendo. São operações sofisticadas. Eu conheço gente que está ensinando frações, a Luane Santos, do Rio de Janeiro, com a geometria das tranças nagô (clique no link para assistir a um seminário da professora Luane Santos, organizada pelo NEABI, do IFRJ - Campus Nilópolis). Ela está levando isso para dentro da escola, no espaço das eletivas. Se por um lado, se implementa o currículo castrador, através de uma disciplina eletiva, professores bem formados, que estão sendo formados através do cumprimento da lei maior da educação, irão saber o que fazer diante desse desafio. E assim, não estarão contrariando o tal do ensino de conceitos que o Estado brasileiro deseja. Então, é uma questão de ser professor, pois tudo irá parar na nossa mão. Eu não considero isso legal, pois não somos missionários, não somos responsáveis pelas grandes revoluções. Se não quisermos atuar, está tudo bem. Mas, de fato, no exercício da função, fazemos grandes revoluções. Eu posso lecionar uma disciplina eletiva, acreditando em nada, apenas ocupando meu tempo ou, posso utilizar a disciplina para desenvolver trabalhos relevantes. E nós temos feito isso. Gostaria de frisar também que isso não é uma obrigação do professor. O investimento em formação de mestres e doutores alimenta a escola, pois esse pessoal que está desenvolvendo conhecimento científico faz essa comunicação e oxigena a escola…

Inclusive, dá um gás para o professor que está em uma sala com 45 estudantes, sobretudo depois da pandemia e com a maneira com que a gente tem se comunicado: digitalmente, [todos] desinteressados… Você imagina o que é falar para escolas públicas periféricas, que é uma comunidade assolada por um nicho de violência recorrente que vem da própria manutenção do Estado. Imagina o que é falar de educação em um país que tem taxação regressiva de imposto. Gente que explora mão de obra paga menos imposto. Gente que compra o produto paga muito imposto. Essa gente que paga muito imposto tem cor e é a minha cor: é gente preta no país! A escola pública é povoada dessa mesma gente. É uma maioria de meninas negras. Quando a gente vai para dentro da escola e de alguma forma se compromete com o exercício da docência, que, volto a dizer, não é uma docência missionária, é aquela para a qual eu fui formada, não precisa de nada disso… Se hoje, você me mandar para apertar um botão diferente da minha prática, eu não vou querer. Sou uma velhinha resistente, vou falar que não quero, não quero saber de nada, e é isso! Mas tem um núcleo de formação que me faz comprometida com essas discussões, e é o que está vigente agora, passeia pelo currículo das Universidades Federais, das Estaduais, dos Institutos Federais, que é onde nós formamos os professores e as professoras do Estado brasileiro. Esse currículo está em consonância com a LDB, porque é um operador, inclusive, na avaliação desses cursos. E como funcionamos na lógica da meritocracia, todo mundo quer um “curso 5” no guia “sei lá do quê”. A gente não está mal. A gente não pode também ficar feliz, se não, vem mais uma bomba em cima da gente. Bom seria se todos os instrumentos conversassem: ter uma lei maior que conversa com a BNCC, e com a Reforma. Isso seria o adequado e seria o argumento lógico, nos pouparia a saúde de estar todo dia enfrentando um monstro que se cria de algum lugar. Mas a gente lida com uma moeda, essa grande fatia que deseja, eu não diria privatizar a educação como um todo, mas privatizar lugares da educação. Se dá demérito ao Programa Nacional do Livro Didático, mas de repente um tal Instituto está produzindo material didático em algum projeto com o governo e os livros são maravilhosos. E aí o governo compra - sabe? A gente está nesse lugar da mercantilização da educação.

BALBÚRDIA: É verdade, professora. A gente está enfrentando ataques desses grupos que estão dentro do governo. 

Anna Benite: Isso, são poderosos, estão ganhando dinheiro. Eu trabalhei por anos no Programa Nacional do Livro Didático. É um investimento pesadíssimo, em números da ordem de bilhões. Milhões de alunos, milhares de escolas, bilhões de dinheiro. É muita grana investida. E você pensar que todo mundo está estudando com o mesmo livro. E você pensa que todo mundo está acessando conteúdo que está sendo distribuído no seu país. Essa é uma proposta muito ousada. Como assim, repartir para todo mundo, né? Eu acredito piamente no PNLD antes do desgoverno. Depois que “esse camarada” entrou, ele fez uma arruaça e eu espero que seja possível recuperar isso. Eu trabalhei sobre a coordenação de Maria Inês Petruci, uma química que tem um trabalho muito interessante e que tem feito uma luta pela qualidade do material didático no país, e de fato os livros didáticos são de excelência. Eu vim de escola pública, meus filhos todos estudam em escola pública. E eu não tenho nada a me queixar. Eu vejo as crianças sendo formadas dentro de uma perspectiva da não-neutralidade. A escola pública te oferece isso.

BALBÚRDIA: A partir do que você levantou das contradições do NEM, a pergunta que a gente faz para você é: o NEM, é necessário revogá-lo ou podemos reformá-lo?

Anna Benite: Por mim, jogava fora! (risos) Mas assim, eu entendo que é uma colisão de forças. Talvez não seja possível fazer isso: jogar fora e começar do nada. Pensando na dirigência do Estado brasileiro, de todo o montante de dinheiro envolvido, na habilidade política da gente que está ditando aí… Não sei se será possível. Mas por mim, a gente podia simplesmente revogar e caminhar de onde a gente estava, a gente estava bem. 

BALBÚRDIA: Geralmente o pessoal contra a revogação fala que o pessoal a favor da revogação não apresenta uma proposta alternativa para a educação brasileira. O que você acha desse argumento? Você considera que a gente tem propostas?

Anna Benite: De fato, eu acho que a gente pouco caminhou com o que a gente já tinha. A gente não precisava de uma nova proposta. A gente precisava de um redimensionamento da escola em si. A proposta, a gente tinha! O que eu te disse, a gente tem uma LDB focada na formação de professores, na disseminação de conteúdo de povos originários e de matriz africana dentro de sala de aula. O Brasil é o segundo maior país em população negra no mundo. É um país que dizimou os povos originários. Eu acho que isso é um comprometimento… Além disso, a gente tem a questão de gênero embutida na reforma anterior desta, no currículo anterior. A estrutura da escola estava com problemas. Uma escola esvaziada de investimento, de propostas para a manutenção de saúde da própria docência. Isso, eu considero pior. Do jeito que a gente estava, não era a melhor maravilha, mas a gente não conseguia operar de fato, porque com a atividade da docência desqualificada, precarizada, mal-remunerada… como se dá parabéns a um jovem de 17 anos que chegou na sala escolhendo licenciatura? Toda a família dele dizendo “olha, que ruim, vai morrer de fome”... Porque tem um desgaste… Eu estava lendo uma matéria que anunciava que a gente não vai ter professores em 2040. Vai faltar professores. É todo um demérito associado a esse lugar, é nisso que a gente precisava investir, em uma política efetiva de valorização da docência, de remuneração, de escolas que garantam a presença desses docentes. Que os docentes não precisem ficar andando para lá e para cá. Que os processos de qualificação da docência, como o mestrado, o doutorado incidam sobre sua remuneração e não na nota do Ideb. Em uma política de ranqueamento, de falsificação do Consenso de Washington: que eu preciso atender expectativas de outros lugares com uma nota. E você vê, as escolas do Brasil tem tanta excelência que as escolas federais, que ganham maior investimento na formação de seus professores, porque são professores, em sua maioria, mestres e doutores, são escolas que tiram nota no Ideb igualzinho as escolas de “bacana”, as escolas privadas de elite. As escolas precisam de um investimento. É a escola que está com problema em si. Uma estrutura desgastada, com pouco investimento… Olha a verba da merenda escolar! É uma sacanagem o que fazem com as pessoas. Coloca você para administrar um lugar desses, e esses diretores e diretoras são verdadeiros heróis, pois se comprometem com a administração de algo que você sabe que está fadado ao insucesso. Eu tenho essa preocupação anterior, pela experiência na docência: é a estrutura que está com problema. Uma escola que fornece pacotes homogêneos para pessoas heterogêneas com o objetivo de quê exatamente naquela estrutura? Numa estrutura que está ali com uma professora cansada, adoecida, com estudantes cansados, adoecidos e violentos. A gente assistiu a uma explosão de violência recente nas escolas. Por quê? Porque numa estrutura precarizada, é onde esses atos covardes vão encontrar uma maior ressonância. Porque a estrutura já está frágil.  

BALBÚRDIA: A gente sempre tenta discutir aqui que os Institutos Federais apresentam todas essas condições mínimas de qualidade que você apresentou de uma escola que seria o “modelo ideal mínimo” da nossa educação básica. O que a gente defende é que a gente já tem um projeto. Falta implementar, que é essa estrutura. Simplifica aquele debate: o NEM mexe com o currículo, mas não mexe com a estrutura. Mexer só no currículo, precariza a estrutura. 

Anna Benite: Mais ainda… outro dia ainda estava conversando com meu filho de 14 anos sobre educação e perguntei “e aí, você está gostando da escola?”. Ele entrou agora para o CEFET. Ele me respondeu “nossa! Tô amando a escola!”. E continuei: “por que você gosta dessa escola? Qual a diferença das outras?”. Ele me disse: “meus professores são doutores”. Eu quis saber: “O que isso significa para você?”. E ele disse: “Significa que os outros professores sabiam daquilo que eles ensinavam. O de matemática sabia matemática. O de ciências sabia ciências. Os que me dão aula agora sabem vários assuntos e conectam com aquelas disciplinas que eles são responsáveis.” Eu achei essa definição muito boa. Esse é o papel de quem foi formado para defender suas ideias. Você conecta um campo de expertise com seu campo disciplinar. E por que não investir em professores assim? Por que não tornar a escola esse local atraente? Tão sedutor? Dá trabalho porque, eu mesma como mãe, não tenho controle sobre isso. E aquelas crianças estão lá, montando seus horários, andando de lá e pra cá, e vão se adaptando e vão sabendo que é assim. Então vem com aquele discurso de considerar o perfil. Quem vai montar o perfil? Quem vai escolher o perfil para alguém? Se a própria criança não consegue dimensionar. Falar em perfil a partir de que lugar? Como é que se constrói um perfil em uma estrutura precarizada? Esse meu filho que citei faz o curso de música. Um dia ele chega em casa e me fala: “olha o que eu estou tocando na marimba”. Eu nem sabia o que era uma marimba. Ele é da percussão e descobri que a marimba tem a escala musical parecida com a do piano. Agora ele instalou um piano no celular dele e ele fica estudando a escala musical no aparelho. Então, olha a importância da escola para a música, dando outras possibilidades para o estudo. E assim vai desenvolvendo um perfil que a própria criança, com a ajuda de todos esses professores, vai encontrar o seu lugar, vai descobrir o prazer de estar naquele lugar. Como fazer isso em uma estrutura precarizada? Como defender esse ensino médio? É uma piada. Eu fico triste, porque essa piada de mau gosto atormenta a vida de tantos professores e professoras quando ficam burocratizados no preenchimento de mil itens para atender e virar grandes burocratas. Inclusive o professor de universidade: é plataforma Brasil, lattes, é sistema de promoção da universidade, é plataforma Carlos Chagas. São pelo menos cinco plataformas. É muita coisa para preencher! E no meio de tudo isso eu esqueço de marcar minhas férias, porque sou eu que tenho que marcar! É muita crueldade!

BALBÚRDIA: Qual é o caminho para conseguirmos revogar/reformar o ensino médio?

Anna Benite: É a participação social. Talvez isso não seja possível porque as audiências, as discussões são marcadas nas segundas-feiras, às 13 horas, no centro da cidade. Então, isso interdita a participação de muita gente. Mas a participação social é a melhor maneira de conseguirmos a revogação. A gente não pode se calar. A gente tem que comparecer às audiências, organizar as discussões, seja na escola, no bairro. A gente precisa embutir essa cultura de participação social nas mais diferentes esferas da nossa vida.