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Um Olhar sobre o Relatório Anual de 2020 do Tribunal de Justiça da União Europeia:
A Atividade Judicial da Corte em Recortes Temáticos

Court of Justice of the European Union in Luxembourg. Photo: Transparency International EU Office via Flickr (CC BY-NC-ND)

Recentemente fora publicado pela Corte o seu Relatório Anual referente ao ano de 2020[1]. O relatório apresenta uma retrospectiva da atuação do Tribunal de Justiça da União Europeia durante o ano de 2020 e permite, de forma sistematizada e organizada, jogar luzes sobre importantes decisões adotadas ao longo desse período, bem como de ressaltar a importância da atividade desse órgão judicial no âmbito da União Europeia.

A primeira parte do relatório apresenta um resumo de eventos do ano, o qual é feito por meio de fotografias e figuras. A segunda parte apresenta uma revisão sobre as atividades judiciais da Corte, na qual são relatados os julgamentos mais importantes do ano e a terceira revela os números da atividade da Corte no ano, no contexto de enfrentamento da pandemia da Covid-19. As últimas três partes, respectivamente, tratam da continuidade da Corte no desenvolvimento de sua política ambiental, um relato das perspectivas para o ano de 2021 e a indicação dos vários canais de comunicação eletrônica da Corte.

A revisão das atividades judiciais da Corte durante o ano de 2021, que mais nos importa nesse recorte, é dividido em diferentes linhas temáticas: o valor da pessoa humana, a política do asilo, a proteção de dados pessoais, a proteção dos consumidores, transporte aéreo, trabalhadores e seguridade social, auxílios estatais, concorrência, o setor bancário e os tributos, propriedade intelectual e as funções das instituições europeias.

Em cada recorte temático, o Relatório aponta mais de três decisões adotadas naquele período e apresenta pequeno comentário sobre cada uma delas. Para poder desenhar um panorama geral sobre estes recortes temáticos, seleciona-se uma decisão de cada um dos recortes para comentários.

Dentro do recorte temático do valor da pessoa humana destaca-se, por exemplo, o pedido de questão prejudicial[2]advindo da Bélgica, onde legislação que determina a obrigação de atordoamento prévio dos animais ao abate é questionada por associações judaicas e mulçumanas, as quais afirmam a necessidade de resguardo da liberdade de religião na prática do abate ritualístico. A Corte, por outro lado, entendeu haver fundamentação científica que resguarda o bem-estar animal para a obrigação legal imposta, além de destacar a sua limitação, já que não impede no território belga o consumo de produtos animais obtidos com o abate ritualístico.

Já no recorte sobre política do asilo, entre os casos destacados, identifica-se o pedido de decisão prejudicial[3] feito sob o regime de urgência de nacionais afegãos e iranianos que solicitaram asilo à Hungria e foram mantidos na zona de trânsito após a negativa primária do pedido. A Corte entendeu que a colocação destes solicitantes de asilo em zona de trânsito deve ser considerada como detenção e sobre a qual deve haver análise judicial de sua legalidade.

Na linha temática da proteção de dados pessoais, a Corte declarou a invalidade da decisão 2016/1250 da Comissão da União Europeia, que determinou ser os Estados Unidos da América (EUA) “porto seguro” para os dados pessoais dos cidadãos europeus que para lá eram encaminhados. A Corte entendeu que não há nos EUA a previsão de uma proteção judicial do direito dos titulares dos dados frente às autoridades estatais estadunidenses. Essa decisão deu-se em atenção a pedido de questão prejudicial[4] encaminhada pela Suprema Corte irlandesa, a qual foi instada a apreciar demanda de um nacional irlandês, usuário do Facebook, que questiona a preservação das garantias comunitárias de proteção dos seus dados que eram transferidos da Facebook Ireland para servidores pertencentes à Facebook Inc., localizados nos EUA.

No que concerne a proteção dos consumidores, faz-se destaque ao apontamento sobre duas decisões[5] adotadas pela Corte em casos que questionaram a aplicação do Regulamento da União Europeia sobre a neutralidade da rede em casos de práticas comerciais de concessão de “tarifa zero” para o uso de determinadas aplicações pelo usuário consumidor, o qual, no uso de outros aplicativos “desfavorecidos”, pode sofrer medidas de bloqueio e desaceleração. A Corte entendeu que, para manter o tráfego de dados de forma não discriminatória e assim proteger os direitos dos usuários de internet, tais práticas comerciais devem ser impedidas.

No campo do transporte aéreo pode-se citar a decisão da Corte sobre demanda[6] envolvendo a indenização de passageiros face a cancelamento ou longos atrasos, a qual pode ser baseada em norma comunitária e exigida em moeda nacional da residência do consumidor. Pondera-se que a recusa do pagamento de indenização, pelo único motivo do pedido ser expresso em moeda nacional, ofende a interpretação ampla dos direitos dos passageiros aéreos e o princípio de igualdade de tratamento dos consumidores desse serviço.

Em relação aos trabalhadores e à seguridade social, entre os casos mencionados, está presente demanda[7]envolvendo direito de abono familiar de filho de cônjuge de trabalhador transfronteiriço que é sustentado por este último, assim como os filhos próprios do casal. O Tribunal entendeu que o Direito Europeu garante o abono familiar ao trabalhador transfronteiriço e este deve ser pago, igualmente, aos membros da família, tenham eles ou não relação de filiação com o trabalhador.

Como exemplo de decisões envolvendo auxílios estatais, destaca-se aquele[8] que envolve a natureza da atividade desempenhada por empresas pública e privada que compõem o regime de seguro de saúde obrigatório da Eslováquia. A Corte levou em consideração que o referido regime cumpre o objetivo social de garantia de assistência médica aos cidadãos, bem como realiza o princípio da solidariedade, na medida que não há relação direta entre o valor da contribuição paga pelo segurado e os benefícios que lhe é concedido. Assim sendo, as empresas que compõem o sistema de saúde eslovaco desempenham atividade que não caracteriza atividade econômica e que, portanto, para elas não são aplicadas as regras comunitárias sobre a matéria de auxílios estatais.

Sobre a preservação da concorrência no mercado, destaca-se caso[9] julgado pela Corte em que foi questionada decisão da Comissão Europeia de obstar a aquisição de uma empresa de telefonia móvel britânica por outra empresa do mesmo ramo de atividade. A Comissão entendeu haver significativa redução da concorrência no mercado ante a concentração empresarial realizada, com o consequente aumento do custo de serviços no país e da restrição da liberdade de escolha dos consumidores, os quais passariam a ter apenas três opções de empresas desse segmento. A Corte, interpretando e aplicando o Regulamento europeu sobre concentrações, ponderou que o efeito de redução da pressão competitiva sobre os demais concorrentes não é suficiente para caracterizar impedimento à concorrência e que a Comissão precisa de elementos concretos para caracterizar essa concentração do mercado, o que não foi feito, portanto declarou nula a decisão da Comissão.

No âmbito da atividade bancária e da tributação faz-se presente decisão[10] proferida pela Corte parcialmente favorável ao pedido de reconhecimento de violação do princípio da livre prestação de serviços dentro dos Estados-membros da União formulado pela Google Ireland face o governo húngaro. Verificou-se haver desproporção nas multas e nos prazos aplicados para as empresas de publicidade não sediadas em território húngaro nos casos de obrigações fiscais locais. Por outro lado, a Corte rechaçou a afirmação da Requerente de haver restrição da liberdade de prestação de serviço pela exigência da legislação húngara de apresentação de declaração fiscal dos serviços ali prestados, ainda que esteja o prestador de serviço estabelecido em outro Estado-membro.

No campo da propriedade intelectual, rememora-se o caso[11] em que a Corte considerou que o mero armazenamento pela empresa Amazon, em seu mercado online, de produtos que infringem o direito à marca garantido na União Europeia, não pode gerar a sua responsabilização. A decisão se deu pelo pedido de questão prejudicial enviado pelo Tribunal Federal alemão, que foi instado a julgar pedido de condenação da Amazon por armazenar e enviar perfumes ‘Davidoff Hot Water’, oferecidos para venda por terceiros, sem o licenciamento da detentora dos direitos da marca, a empresa alemã Coty Germany.

O último recorte temático lista algumas das demandas relacionadas às próprias instituições da União Europeia e entre eles destaca-se a decisão[12] da Corte sobre o pedido de atribuição da cidadania europeia para alguns cidadãos britânicos postulantes, que são residentes em outros Estados-membros há muitos anos e que não foram autorizados a participar do referendo do Brexit do Reino Unido, bem como das eleições parlamentares do bloco de 2017. Os demandantes afirmaram ser a Comissão Europeia responsável pelo não cumprimento do dever de preservar a sua cidadania europeia, contudo, a Corte entendeu não ser competente para atribuir a cidadania europeia para alguns cidadãos britânicos.

Esse panorama, dado pela observação de alguns casos decididos pelo Tribunal ao longo do ano de 2020, em diferentes linhas temáticas, revela a grande importância e abrangência que a função jurisdicional internacional assume no sistema regional de integração europeu. Verifica-se que, não só a atuação e interesses dos Estados e seus cidadãos são passíveis de serem apreciados pela Corte, como também da própria Comissão Europeia, no âmbito das suas funções de aplicação da política da UE.

Assumindo a natureza sistêmica do Direito Internacional, as conclusões jurídicas internacionais exaradas pelo Tribunal de Justiça da União Europeia podem inspirar, direta ou indiretamente, entendimentos jurídicos internacionais, de aplicação interno e externo ao bloco europeu.


[1] COURT OF JUSTICE OF THE EUROPEAN UNION. “THE YEAR IN REVIEW ANNUAL REPORT 2020”. Disponível em: https://curia.europa.eu/jcms/upload/docs/application/pdf/2021-04/ra_pan_2020_en.pdf.

[2] COURT OF JUSTICE OF THE EUROPEAN UNION. Judgment of 17 December 2020, Centraal Israëlitisch Consistorie van België and Others, C-336/19. Press release disponível em: https://curia.europa.eu/jcms/upload/docs/application/pdf/2020-12/cp200163en.pdf.

[3] COURT OF JUSTICE OF THE EUROPEAN UNION. Judgment of 14 May 2020, FMS and Others, C-924/19 PPU and Others. Press release disponível em: https://curia.europa.eu/jcms/upload/docs/application/pdf/2020-05/cp200060en.pdf.

[4] COURT OF JUSTICE OF THE EUROPEAN UNION. Judgment of 16 July 2020, Schrems and Facebook Ireland, C311/18, Press release disponível em: https://curia.europa.eu/jcms/upload/docs/application/pdf/2020-07/cp200091en.pdf.

[5] COURT OF JUSTICE OF THE EUROPEAN UNION. Judgment of 15 September 2020, Telenor Magyarország Zrt, C-807/18 and C-39/19. Press release disponível em: https://curia.europa.eu/jcms/upload/docs/application/pdf/2020-09/cp200106en.pdf.

[6] COURT OF JUSTICE OF THE EUROPEAN UNION.  Judgment of 3 September 2020, Delfly, C-356/19. Press release disponível em: https://curia.europa.eu/jcms/upload/docs/application/pdf/2020-09/cp200100en.pdf.

[7] COURT OF JUSTICE OF THE EUROPEAN UNION.  Judgment of 2 April 2020, Caisse pour l’avenir des enfants, C-802/18. Press release disponível em: https://curia.europa.eu/jcms/upload/docs/application/pdf/2020-04/cp200042en.pdf.

[8] COURT OF JUSTICE OF THE EUROPEAN UNION. Judgment of 11 June 2020, Commission and Slovakia v Dôvera zdravotná poistʼovňa, C-262/18 P and Others. Press release disponível em: https://curia.europa.eu/jcms/upload/docs/application/pdf/2020-06/cp200067en.pdf.

[9] COURT OF JUSTICE OF THE EUROPEAN UNION.  Judgment of 28 May 2020, CK Telecoms UK Investments, T-399/16. Press release disponível em: https://curia.europa.eu/jcms/upload/docs/application/pdf/2020-05/cp200065en.pdf.

[10] COURT OF JUSTICE OF THE EUROPEAN UNION.  Judgment of 3 March 2020, Google Ireland, C-482/18. Press release disponível em: https://curia.europa.eu/jcms/upload/docs/application/pdf/2020-03/cp200021en.pdf.

[11] COURT OF JUSTICE OF THE EUROPEAN UNION.  Judgment of 2 April 2020, Coty Germany, C-567/18 and Others. Press release disponível em: https://curia.europa.eu/jcms/upload/docs/application/pdf/2020-04/cp200039en.pdf.

[12] COURT OF JUSTICE OF THE EUROPEAN UNION.  Order of 14 July 2020, Shindler, T-627/19. Andamento do caso disponível em: https://curia.europa.eu/juris/documents.jsf?num=T-627/19.