Psicologia e feminismo são discutidos no IPUSP

Palestras ministradas por pesquisadoras discutem práticas feministas na Semana de Psicologia da USP

A violência contra a mulher parece não ter fim: física, verbal ou psicológica, disfarçada de piada ou concretizada em atitudes, todos os dias surge um novo episódio e uma nova vítima.

Na prática, determinadas violências são cometidas principalmente contra o gênero feminino. Isso significa que a sociedade se acostumou a lidar de maneira desigual com homens e mulheres.

Em contrapartida, esse problema tem sido trazido à luz graças a pesquisas que investigam medidas de prevenção contra a violência de gênero e tratamentos oferecidos para as suas vítimas.

Discutindo esses aspectos sociais e culturais ligados à violência de gênero, as palestras “Violência contra as mulheres: Qual o papel da psicologia?”, de Tamiris da Silva Cantares, e “Feminismo sob a ótica da Análise do Comportamento”, de Laís Nicolodi e Amanda Morais, foram apresentadas na Semana de Psicologia da USP, no Instituto de Psicologia da USP.

O caráter social da violência contra a mulher
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Tamiris da Silva Cantares

Durante a palestra “Violência contra as mulheres: Qual o papel da psicologia?”, a pesquisadora da PUC-Campinas Tamiris da Silva Cantares falou sobre como os conflitos de caráter social costumam ser invisibilizados. Analisando, pelo viés da Psicologia Crítica, as diretrizes políticas que são construídas nos Congressos Nacionais de Psicologia, a pesquisadora percebeu o quanto fatores como pobreza, desigualdade social e violência tendem a ser naturalizados e individualizados, até mesmo na lógica presente no consultório psicológico.

Cantares considera que “os fenômenos devem ser interpretados segundo a sua historicidade e para além das aparências”. Por isso, ela trouxe o conceito de violência estrutural e se apoiou em intelectuais como o psicólogo Ignacio Martin-Baró e a socióloga Heleieth Saffioti. Para a palestrante, nas análises psicológicas, não há como separar as questões de raça/etnia, de classe e de gênero.

A educação e a prevenção contra a violência de gênero

As diretrizes analisadas pela pesquisadora foram retiradas do manual “Referências Técnicas para a Prática de Psicólogas(os) em Programas de Atenção à Mulher em situação de Violência (2013)”. Este manual propõe os seguintes princípios para nortear a atuação dos profissionais de psicologia: o trabalho em equipe multiprofissional, relacionando a psicologia a campos como a saúde e a assistência social; a formação e a divulgação de uma rede de atendimento no combate à violência; o incentivo à organização coletiva e política, buscando a garantia dos direitos femininos; a compreensão, pelos psicólogos, do que é a violência contra a mulher, em suas múltiplas dimensões; e a não manifestação de julgamentos. “Juntos, esses são fatores importantes para fortalecer a autonomia feminina, e não a sua culpabilização, responsabilização, patologização, medicalização ou judicialização”, afirma a psicóloga.

Com isso, Cantares levantou a questão de que pouco ou nada se faz como atividade preventiva, e que a educação não aparece como componente da já analisada rede de enfrentamento à violência. A partir disso, surgiu a questão: “como resolver um problema se não conseguirmos agir na causa?”.

Tendo em vista o projeto de lei que proíbe a ideologia de gênero nas escolas – que ainda não foi aprovado, mas recebe muita pressão para ser implementado -, a pesquisadora, juntamente com o grupo ECOAR, lançou a cartilha “Debate sobre gênero nas escolas: E eu com isso?”.

Em suma, a pesquisadora afirmou que é de grande relevância para o combate à violência de gênero que os psicólogos “não patologizem e violentem ainda mais as pacientes em situação de sofrimento”, e finalizou dizendo que “é preciso ter coragem para ser mulher nesse mundo. Para viver como uma. Para escrever sobre elas”, enfrentando os desafios, tomando os espaços e mostrando a voz feminina.

A Análise do Comportamento na investigação da discriminação de gênero

Na palestra “Feminismo sob a ótica da Análise do Comportamento”, Laís Nicolodi esclareceu que os diferentes comportamentos, os padrões de estética, as funções e os papéis sociais dos indivíduos são os fatores que constituem socialmente o gênero. Sendo assim, pela ótica da Análise do Comportamento, os processos de gênero são construídos pelas respostas diferenciadas que homens e mulheres dão aos estímulos que recebem no mundo.

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Laís Nicolodi

Nesse sentido, Nicolodi explicou, segundo os termos comumente utilizados na Análise do Comportamento, que a junção de estímulos sociais ao estímulo “homem” ou “mulher” gera processos de discriminação que podem criar contingências positivas, neutras ou aversivas/punitivas.

A título de ilustração, Nicolodi relatou que quando o estímulo “perna peluda” se associa ao estímulo homem, a contingência discriminativa é neutra, porque o homem, socialmente, não vai sofrer qualquer tipo de represália por ter pelos na perna. Por outro lado, se esse estímulo vier junto do estímulo feminino, o processo de discriminação criará uma condição aversiva ou de punição, o que fará com que a mulher seja malvista ou mesmo alvo de retaliação.

Dessa maneira, a psicóloga contou quea sociedade se comporta de maneira discriminatória, a depender do estímulo social que se une ao estímulo mulher ou homem. Consequentemente, criam-se padrões diferenciados de acordo com o gênero. Essa diferença de contingências e, por extensão, de tratamento, gera diferenças de poder baseadas no gênero.

Poder e privilégios

Fundamentando-se na Análise do Comportamento, Nicolodi resumiu a definição de poder como a posse de um “maior acesso a reforçadores, benefícios e privilégios que, socialmente, não são concedidos de forma igualitária aos gêneros feminino e masculino”.

Contudo, também à luz da Análise do Comportamento, a pesquisadora afirmou que a sociedade não funciona como uma soma de relações individualizadas, mas, sim, como uma rede cujas ideologias são disseminadas por instituições (como o Estado, a Igreja etc.) e culturalmente arraigadas.

Portanto, segundo Nicolodi, existem diferentes graus de controle que beneficiam determinados indivíduos e prejudicam outros. Dessa forma, à diferença de poder que beneficia somente os homens, pode-se dar o nome de Patriarcado, que seria, como explica Saffioti em seu livro “Gênero, patriarcado, violência” (2011), uma forma de dominação social calcada na exploração que os homens exercem sobre as mulheres, e que estaria inculcado no inconsciente individual e coletivo da nossa sociedade.

Isto posto, a pesquisadora revelou que, muitas vezes, as pessoas não percebem que estão sendo oprimidas. Isso acontece porque a relação de coerção e controle faz com que a exploração do indivíduo seja continuamente perpetuada, inclusive com contingências que o reforcem positivamente a curto prazo e façam com que essa relação pareça ser mais branda, gerando nele um sentimento de felicidade e liberdade.

No entanto, pensando no Patriarcado, Nicolodi, aproximando-se das ideias de Tamiris Cantares, salientou a importância de se observar os recortes de classe e de raça das mulheres, já que todas elas são submetidas a essa hierarquia, mas o são de modos diferentes. Por exemplo, uma mulher branca e rica tem muitos privilégios se comparada às outras mulheres, porém, em relação aos homens, o poder que ela exerce socialmente é ínfimo, e o comportamento discriminativo da sociedade evidencia constantemente que os valores atribuídos aos indivíduos dependem dessas diferenças de gênero.

Formas de opressão contra as mulheres

Ainda sobre o Patriarcado, Amanda Morais mostrou que existem outras formas de controlar as mulheres, que não pelas contingências aversivas. Quando não há uma punição envolvida, Morais relatou que torna-se mais difícil que as vítimas compreendam que estão sendo oprimidas, porque elas têm alguns de seus comportamentos reforçados positivamente, e não punidos, como de costume. Isso significa, por exemplo, que quando as mulheres correspondem aos valores estabelecidos pela sociedade, elas recebem um tipo de resposta que estimula que elas continuem a agir de tal ou qual maneira.

Morais exemplificou essa questão com as festas que cobram menos dinheiro para a entrada das mulheres. Se observada a contingência, a consequência imediata pode ser entendida como um reforçador positivo. Contudo, se a questão for analisada mais a fundo, será possível compreender que a verdadeira contingência desse tipo de festa é usar o público feminino como isca para atrair o público masculino. Este, por sua vez, sabendo disso, frenquentará a festa para assediar as mulheres e, consequentemente, o estabelecimento receberá mais dinheiro. Portanto, essa não é uma relação que distribui reforços igualmente ou uma política compensatória para beneficiar as mulheres, que recebem salários menores que os dos homens. Esse é um exemplo de relação de exploração.

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Da esq. p/ dir., Jéssica Aparecida da Silva, Laís Nicolodi e Amanda Morais

O assédio é uma situação tão comum na vida das mulheres que elas nem conseguem entender o que causa o mal-estar em determinadas situações, como é o caso das festas, onde existe uma invasão corporal tão grande (desde os olhares maliciosos até os toques sem consentimento) com a qual elas são, paulatinamente, acostumadas a lidar.

Desigualdade de gênero: a distribuição de reforços

Em geral, Morais relatou que os homens têm acesso a uma variabilidade muito maior de reforçadores positivos, além de serem os que controlam os reforçadores. Isso permite que eles, diferentemente das mulheres, ocupem e frequentem com segurança os espaços públicos, e controlem a mídia, a indústria cinematográfica, a pornográfica, as igrejas, os governos, entre outros. Por meio desses dispositivos, os homens ditam os padrões de beleza, os pisos e as médias salariais, os esportes valorizados que receberão incentivos financeiros etc.

Além do controle e acesso sobre os reforçadores, Morais também contou que os homens dispõem de meios para mudar o valor reforçador de certos estímulos de acordo com o seu interesse. Ou seja, eles variam o seu comportamento quando não obtêm o que querem. As mulheres, por outro lado, têm inúmeras contingências específicas, de maneira que elas têm que aprender a responder diferencialmente de acordo com cada contexto.

Ademais, segundo Morais, a hipersexualização do corpo da mulher acontece muito desde cedo, e os meninos têm acesso a conteúdo pornográfico precocemente. Então, o emparelhamento de estímulos em relação ao corpo feminino e à atividade sexual costuma começar prematuramente. No entanto, isso não é culpa da mulher, mas, sim, de como esse processo é socialmente construído.

Às vezes, mulheres são criticadas, julgadas e se sentem envergonhadas não necessariamente pelas roupas que usam, mas por algo sobre o qual elas não têm nenhum controle: seus próprios corpos.

Por todos esses fatores, Morais e Nicolodi explicaram que as mulheres, muitas vezes, confundem privilégio com poder, quando, em verdade, elas têm acesso e não controle estrutural sobre os reforçadores.

Funções do Feminismo

Nesse sentido, entra a necessidade de resistência. Conforme cita Gerda Lerner, em seu livro “A criação do Patriarcado” (1986), o Feminismo tem duas definições que se complementam: é uma conquista de igualdade entre homens e mulheres em todos os setores da sociedade e é um movimento de emancipação feminina, que visa à autonomia, à autodeterminação e à abolição de restrições opressivas impostas por sexo.

DSC 0100Dessa forma, Nicolodi descreveu que o feminismo entra nesse cenário combatendo os comportamentos discriminativos que, em função do gênero, restringem escolhas. A pesquisadora justificou essa necessidade dizendo que todos os estímulos que constituem a diferença entre homens e mulheres, e geram desequilíbrio de acesso e detenção de reforçadores entre os gêneros precisam ser eliminados.

Assim, em termos comportamentais, Nicolodi falou sobre a necessidade de um contra-controle, de modo que o Feminismo mudaria as contingências de opressão e restrição impostas ao sexo, contingências estas responsáveis por limitar o acesso a reforçadores que as mulheres têm. Em outras palavras, a psicóloga acredita que a função do Feminismo seria acabar com o controle social exercido sobre as mulheres, que fiscaliza os comportamentos femininos e, não raro, pune esse gênero.

Nicolodi evidenciou que contra-controlar é tentar equilibrar o poder, justamente diminuindo o poder do opressor. Por isso o Feminismo não nasceu para agradar aos homens, porque ele procura emancipar as mulheres, fazendo com que os homens reconheçam seus privilégios e abram mão deles. E essa situação de “redistribuição” de poder ainda causa muito desconforto.

Mas o que o feminismo tem a ver com a prática psicológica?

DSC 0046Segundo Morais, é preciso rever os valores dos psicólogos relacionados ao bem-estar humano, porque, segundo o código de ética do psicólogo, são intrínsecas à função desses profissionais a atuação com responsabilidade social e a análise crítica da realidade e das relações de poder nela existentes.

Por conseguinte, a pesquisadora afirmou que seria necessário utilizar o Feminismo nas intervenções psico-terapêuticas, uma vez que a descrição das práticas machistas e opressivas precisa participar do trabalho clínico e educacional, porque ela é fundamental para se compreender a violência praticada contra o gênero feminino.

Psicoterapia feminista

E como uma terapia feminista funciona? De acordo com Morais, ela busca o compromisso com a transformação social e procura entender a falta de representatividade, combater a invisibilização das variáveis e a culpabilização das vítimas. Ou seja, uma terapia feminista critica as terapias tradicionais, atentando para as questões particulares de cada paciente e baseando as análises em princípios e conceitos feministas.

Morais, revelou que “todos os nossos atos são políticos, já que o comportamento de todos, inclusive dos terapêutas, é afetado pelas contingências. Por isso é impossível ser neutro”.

Nicolodi, então, finalizou a palestra elucidando que “diante de uma situação de violência, a omissão significa conivência. Então, quando um psicólogo é neutro, é como se ele fosse conivente com o problema”.

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Tamiris da Silva Cantares é doutoranda de Psicologia Social Comunitária da PUC – Campinas e integrante do Espaço de Convivência, Ação e Reflexão (ECOAR), um grupo de estágio e pesquisa que, ligado à graduação e à pós-graduação, trabalha a prevenção da violência no contexto escolar.

Laís Nicolodi é Mestranda no programa de Psicologia Experimental no Instituto de Psicologia na Universidade de São Paulo. Amanda Morais é Mestranda em Análise do Comportamento pela Universidade Estadual de Londrina. Ambas fazem parte do Coletivo Marias & Amélias de Mulheres Analistas do Comportamento.

Texto e fotos por Anátale Garcia
Edição por Islaine Maciel

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