A Viagem do Beagle, de Charles Darwin: relatos para despertar o gosto pela exploração científica

A bordo do navio Beagle por cinco anos em meados do século XIX, Darwin visitou vários continentes, narrando sobre os fósseis de quadrúpedes na Patagônia, a famosa tartaruga gigante de Galápagos e a crueldade da escravidão negra no Brasil: uma viagem que daria um belo roteiro de filme

20 de julho de 2021 | 10:00

 

Anderson Ricardo Carlos é doutorando em Ensino de Ciências (PIEC-USP), financiado pela bolsa FAPESP (Processo no. 2020/10406-8, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), com especialidade na linha de pesquisa em História da Biologia. É biólogo, formado pela UNESP (Botucatu), com período sanduíche na Radboud University (Holanda), através do programa “Ciência Sem Fronteiras”. Amante de cinema, história, política e de passeios ao ar livre em meio à natureza.

Instagram: @andersonr.carlos

E-mail: andersonr.carlos@usp.br

A Viagem do Beagle é um registro precioso e minuciosamente relatado de uma viagem de cinco anos, entre 1832 e 1836, feita por Charles Darwin (1809-1882)[1], um dos nomes mais conhecidos da História da Ciência e que viria a ter papel central para a popularização das teorias evolutivas biológicas a partir de meados do século XIX.  Darwin aceitou o convite de John Stevens Henslow (1796-1861), seu professor de botânica em Cambridge - onde estudou na Inglaterra[2] - para fazer um levantamento hidrográfico amplo pelo mundo. A bordo do Beagle com o capitão Robert FitzRoy (1805-1865) e uma tripulação de ajudantes, Darwin produziu relatos detalhados que representaram uma de suas primeiras publicações científicas.  Além de chamar atenção por sua duração, a viagem teve uma extensão grandiosa: o Beagle navegou por praticamente todos os continentes, passando desde a América do Sul à Oceania, incluindo suas famosas paradas pelo arquipélago de Galápagos, pela Patagônia, pela Austrália e mesmo pela costa brasileira do Rio de Janeiro[3].

Um dos argumentos para que a leitura de relatos tão antigos possa contribuir para os leitores atuais, sobretudo cientistas ou professoras e professores de Ciências, é ver o quanto Darwin se fundamentava em uma diversidade de saberes científicos, não observando apenas um aspecto dos fenômenos naturais de forma focada e restrita. Para compor suas análises da natureza, ele tratava de uma diversidade de perspectivas dentro das definições da biologia atual e indo para muito além dela (como geologia, economia e filosofia[4]). Tal pluralidade pareceu enriquecedora para cunhar sua futura famosa teoria evolutiva, que se iniciou com a publicação de “A Origem das Espécies”, em 1859, quase uma década depois de sua jornada pelo mundo. Leitor de Charles Lyell e os “Princípios da Geologia”, o naturalista analisava com propriedade as formações geológicas durante as paradas da viagem, tendo um arcabouço teórico bem robusto sobre os tipos de minerais e de rochas, examinando as influências do clima e do tempo. Ao estudar os fósseis na Patagônia, como de um grande quadrúpede, Darwin já começava a notar a proximidade entre animais extintos encontrados e as atuais lhamas da região[3].

É interessante também notar que os relatos narrados na viagem do Beagle, através de uma hábil e minuciosa observação do naturalista inglês, digna dos padrões descritivos de Aristóteles, abordavam uma variedade de tipos de animais exóticos. Entre eles, estão lesmas, lulas, lagartos e, sobretudo, as tartarugas gigantes do Arquipélago de Galápagos, as quais, particularmente para mim, são as descrições mais impressionantes. O britânico discorre sobre a reprodução desses grandes répteis, seu trajeto árduo e longo para beber água e seu preparo pela população local para a culinária tradicional, incluindo a inusitada retirada da água da bexiga urinária para a ingestão. Todavia, o naturalista não limita à análise circunscrita ao que seria a zoologia atual: há relatos de plantas, com trabalhosa dedicação na coleta, a dissecação de animais e análise de seu comportamento. Darwin se impressionava sobre a mansidão das aves de Galápagos, inocentemente dóceis, e buscava compreender como essa característica era adquirida[3]. Claro que devo alertar que algumas descrições são tão minuciosas que podem se tornar cansativas, porém, creio que isso não deva tirar o fascínio de ver as palavras e o raciocínio do próprio Darwin.

No Brasil, relatam-se alguns dos únicos desentendimentos entre Darwin e o capitão do Beagle, FitzRoy: a questão da escravidão. Mesmo dentro da mentalidade de um homem branco da elite inglesa do período vitoriano, na qual visões preconceituosas eram frequentes[5], Darwin questionava a escravidão, dado que ele vinha de uma família de tradição abolicionista e considerando que, à época, o Brasil ainda era um país escravocrata. O naturalista britânico se incomodava, sobretudo, pela crueldade que se tratavam os negros no Brasil, postura abolicionista que parecia enfurecer o capitão do Beagle. Um curioso fato sobre essa passagem: ainda no país, quando era levado por um escravo negro brasileiro dentro de um barco durante uma expedição, Darwin relata que apontou a direção com o braço. Chocado, o naturalista britânico percebeu que o brasileiro se agachou achando que levaria uma pancada[6].

No trecho conclusivo sobre sua longa viagem, Darwin fez um balanço sobre os triunfos e as inconveniências de sua viagem. Ao passo que ele reconhece as mazelas de se privar de qualquer luxo – ao qual estava acostumado - da música e de descansos longos, enfrentando constantes enjoos causados por duradouras viagens à barco ao mar, o naturalista não parece romantizar a viagem.  Aventuras também têm seus entraves. Contudo, os relatos balanceiam esses pontos fazendo tudo parecer valer a pena: conhecer culturas variadas, povos diversos, paisagens naturais ao céu aberto, seres desconhecidos das florestas e dos mares. Ao fim, Darwin fecha dizendo que aprendeu a desconfiar das pessoas e, ao mesmo tempo, fez grandes descobertas: conheceu populações tão amáveis, oferecendo  assistência espontaneamente, mas que talvez nunca mais as veria[3]. Em suma, é um convite para qualquer cientista que tenha um fascínio especial pelo trabalho de campo ou, de forma mais ampla, para qualquer professor(a) curioso(a) e admirador(a) do ato de explorar a natureza dos seres vivos, sejam eles quais forem.

 


[1] Para a leitura das viagens de Darwin sob o Beagle, caso você queira se aprofundar e ler as fontes primárias escritas pelo próprio naturalista, sugiro a leitura dos capítulos 1 (p.10-15), 8 (p.16-26) e 19 (p.27-53) do Narrative of the Voyage of the Beagle. Acesso em português no link. Caso você queira algo mais curto e mais fluido, que trata da história de Darwin mais amplamente, incluindo a viagem do Beagle, sugiro a leitura do capítulo 1 do livro “A Origem das Espécies: uma biografia”, escrito por Janet Browne, professora da Universidade de Harvard. Tais leituras fizeram parte da bibliografia da disciplina “A Origem das Espécies, de Charles Darwin”, do IB-USP/ PIEC-USP, ministrada pelas professoras Maria Elice Brzezinski Prestes e Lilian Al-Chueyr Pereira Martins.

[2] De acordo com a historiadora da ciência, Janet Browne, após abandonar os estudos em medicina, para desgosto de seu pai, Darwin decide estudar no Christ's College, em Cambridge, para adquirir um grau ordinário para ser vigário na Igreja. Contudo, foi em Cambridge que Darwin teve contato com vários naturalistas renomados da época, como Henslow, que o convidou para a viagem no Beagle.

[3] DARWIN, Charles. Narrative of the Surveying Voyage of His Majesty’s Adventure and Beagle Between the Years 1826-1836, Describing Their Examination of the Southern Shores of South America and The Beagles Circumnavegation of The Globe in III Volumes. London: Henry Colburn, 1839.

[4] Sobre economia e filosofia, Darwin se fundamentou nos pressupostos teóricos de autores a exemplo de Thomas Malthus (1766-1834), Adam Smith (1723-1790) e Herbert Spencer (1820-1903), cujas ideias foram mais incorporadas em suas futuras obras, como “A Origem das Espécies” (1859) e “A Origem do Homem” (1871).

[5] Apesar de Darwin ser assumidamente abolicionista e considerado progressista para sua época, a nova historiografia da ciência reconhece, em “A Origem do Homem” (1871), visões sexistas de Darwin ao falar de seleção sexual humana, além de racistas e imperialistas ao falar de povos indígenas ao redor do mundo. Contudo, é importante lembrar que visões assim eram majoritárias em cientistas do século XIX. Para ler mais sobre essas polêmicas, sugiro o livro da historiadora Kimberly Hamlin, intitulado “From Eve to Evolution: Darwin, Science and Women’s Rights in Gilded America (2014)” e o artigo “Charles Darwin on human evolution (2009)”,  de filósofo da ciência Michael Ruse, publicado “Journal of Economic Behavior & Organization”

[6] BROWNE, Janet. Capítulo 1: O Começo, p. 15-41. In: BROWNE, Janet. A Origem das Espécies de Darwin: Uma Biografia. Rio de Janeiro: Zahar, 2007