O que professores e alunos podem aprender com a observação da queima de uma simples vela?

Assim como as sombras projetadas pela luz do sol, em O Mito da Caverna, de Platão, a queima de uma vela pode ser fonte de grandes controvérsias, e isso é benéfico ao processo ensino-aprendizagem em ciências. (Créditos da imagem: David Monje on Unsplash)

Análises de eventos argumentativos, que surgiram a partir da reflexão sobre a queima de uma vela, levantam pontos importantes sobre a relação entre as ações de professores em sala de aula e o desenvolvimento da argumentação dos seus estudantes.

 

13 de julho de 2021 | 10:00

Jonathan Augusto da Silva é atualmente discente do curso de Licenciatura em Química no Instituto Federal de Alagoas e bolsista CAPES pelo Programa Residência Pedagógica. Ao longo do curso também participou de dois projetos de pesquisa relacionados à Educação: um com foco em ensino-aprendizagem e outro com foco em currículo. Formou-se Técnico em Química pelo mesmo instituto e trabalha na área, atualmente.

Apesar de duramente criticado, o Ensino de Ciências ainda permanece centrado na transmissão de conteúdos estanques ou acabados, entrando em contradição com a própria natureza da Ciência. E essa, infelizmente, não é uma realidade da qual foge o Ensino de Química. Por um lado, isso se deve à falta de consciência docente de que o desenvolvimento da argumentação está estreitamente relacionado ao planejamento docente e a condução didática em sala de aula - coisa que acaba por descobrir intuitivamente. Por outro, está relacionado a uma falsa oposição entre ensinar a argumentar e ensinar conceitos científicos, o que levaria professores a optarem pelo último caminho para atender às demandas curriculares que prezam pelo ensino de conceitos.

Indo além dessa dualidade, as pesquisadoras Stefannie Ibraim e Rosária Justi, doutoras em Educação em Ciências e professoras da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), na área de Educação Química, propõem um estudo no qual analisam cinco eventos argumentativos que ocorrem durante uma aula a respeito dos aspectos cinéticos envolvidos nas reações químicas, em uma turma de segundo ano do ensino médio. O objetivo? Avaliar as implicações que as ações da professora responsável pela turma tiveram sobre o envolvimento dos estudantes em processos argumentativos relacionados à produção de conhecimentos. No estudo, publicado na Revista Química Nova na Escola, no primeiro trimestre de 2021, as autoras chegam à conclusão de que as ações da docente acompanhada conseguiram mobilizar os estudantes para participarem das discussões e, além disso, promoveram a reflexão tanto sobre a construção de evidências, quanto sobre a validade das afirmações científicas.

 

O caso da queima da vela

“Eu fico pensando qual é o verdadeiro papel da parafina na vela, se é só para deixar o barbante em pé ou se é para não queimar tudo [retardar a queima da vela]”. Esse é o questionamento de uma das alunas de Ana (nome fictício dado à professora). 

Diante do questionamento, Ana tinha duas opções: dar a resposta “correta” aos alunos ou explorar o potencial de aprendizagem presente no questionamento. Ana optou pelo segundo caminho e solicitou aos estudantes que realizassem o experimento da queima de uma vela e, se possível, avaliassem a queima de velas de diferentes espessuras. A aula destinada à discussão sobre este experimento foi o momento escolhido pelas pesquisadoras para analisar.

Assim, Stefannie e Rosária resolveram relatar em artigo cinco eventos argumentativos, registrados em vídeo, que ocorreram na aula. O objetivo foi tentar compreender como as ações manifestadas pela professora poderiam ter contribuído com o envolvimento dos alunos na prática científica de argumentar. Para tanto, as ações da professora foram analisadas de acordo com um quadro analítico que apresenta um conjunto de 48 tipos de Ações Favoráveis ao Ensino Envolvendo Argumentação (AFEEA), que foi elaborado por uma das autoras, Stefannie Ibraim, e que categoriza as ações em quatro temas: Processo, Estrutura, Função e Suporte. 

Mas por que desenvolver a prática de argumentação científica em estudantes? Para responder a questão, as autoras partem do pressuposto de que a argumentação está intrinsecamente ligada ao fazer científico, e, sendo a Química uma disciplina científica, é contraditório que seu ensino, na Educação Básica, se realize predominantemente de forma transmissiva.

 

Um pouco da análise: a queima da vela

A discussão inicia com a solicitação de que os alunos apresentem suas observações a respeito da queima da vela. O foco se volta para entender se a parafina teria desaparecido ou não. A professora demanda uma justificativa para as observações, e isso faz o discurso da sala mudar, levando a uma análise dos fatos à luz do conhecimento científico, isso fica evidente quando um dos alunos usa uma lei científica para deslegitimar a hipótese do desaparecimento da parafina. Sem justificar, um outro aluno apresenta a conclusão de que a parafina teria participado da reação. Apesar da conclusão estar correta, Ana não ficou contente com a resposta e diante disso estimulou a elaboração de teoria alternativa, ou seja, uma explicação diferente.

Neste momento, há abundância de ações de suporte e processo. As ações de suporte possuem a finalidade de prover condições para a ocorrência de argumentação; algo que é muito necessário no início da discussão, por contribuir com a criação de um ambiente favorável à argumentação. Essas ações ficam explícitas quando a professora solicita que os estudantes apresentem suas observações, quando os pergunta se concordam com as ideias expostas e quando os encoraja a assumirem um posicionamento diante do que está sendo exposto. As ações de processo, por outro lado, fomentam o envolvimento dos alunos no processo argumentativo, estimulando-os a argumentar, a avaliar afirmações à luz da ciência, a apresentar argumentos, teorias e refutações. No desenvolvimento do primeiro evento, o uso dessa ação fica marcado nos momentos em que Ana solicita justificativas, quando os incentiva a analisar os dados disponíveis e a elaboração de teoria.

Os movimentos de transição entre ações de suporte e ações de processo, realizados pela professora, assumem aqui um papel essencial, pois criam um ambiente favorável à discussão no qual fica explícita a falta de clareza inicial sobre as conclusões formuladas, levando os discentes a se engajarem.

 

A vela queimou e o que aprendemos?

Como você deve ter observado na apresentação do primeiro evento, as AFEEA não são nenhum bicho de sete cabeças. Ao contrário! Muitas dessas ações já são conhecidas por nós, professores, no cotidiano da sala de aula, e talvez tão “naturalizadas” que consideramos banais. Quando pensamos “desenvolver argumentação nos estudantes”, tal como previsto na Base Nacional Comum Curricular (BNCC), podemos imaginar algo mirabolante, mas, como se vê, não precisa ser assim, o que não significa que seja um processo fácil!

Mobilizar os estudantes em um processo reflexivo e argumentativo é algo que envolve contestar os modelos educacionais com os quais estamos acostumados. Um ambiente argumentativo é um ambiente de mais incertezas do que certezas; é um ambiente de conflito, contradição e disputa, e envolve a necessidade de ruptura com o modelo tradicional que delimita papéis claros no ambiente de sala de aula: um transmite “a verdade”, outros absorvem “a verdade”.

Por uma questão de espaço, limitei-me aqui a apresentar apenas um pouco do evento 1, que com certeza não dá conta de explorar toda a riqueza deste trabalho. Ao longo da análise dos cinco eventos, realizada pelas autoras, é bastante notável que a professora observada sempre buscou fomentar a participação e engajar os alunos no processo reflexivo e argumentativo, tentando, sempre que possível, desviar da solicitação dos alunos de que ela forneça as respostas “certas”.

O trabalho das autoras é bastante pertinente e nos faz refletir sobre o processo de estímulo à argumentação no ensino de ciências (e, em especial, no Ensino de Química), que se estrutura a partir de fatos, construção de evidências, hipóteses e argumentos. Apesar de ter como objeto de estudo o Ensino de Química, o trabalho das autoras apresenta muitas contribuições para o estudo da argumentação no ensino das diversas áreas do conhecimento, uma vez que a análise das AFEEA não se limita a uma área específica.

É importante destacar que de modo algum as ações favoráveis devem ser tomadas de forma mecânica, estruturando-se, por exemplo, um roteiro utilizando as ações e identificando em que momento cada uma deverá ser usada. Tal processo é inconcebível em sala de aula, dada a sua singularidade, e principalmente no processo de ensino da argumentação, que demanda um espaço marcado pela imprevisibilidade.

No mais, espero ter despertado seu interesse pela leitura do artigo em sua íntegra. Diante do cenário anticientífico em que vivemos, atualmente, ensinar a argumentar talvez seja equivalente a acender a luz que precisamos para iluminar as trevas do negacionismo.

 

Curioso para saber o que mais as pesquisadoras observaram? Leia o artigo original:

IBRAIM, Stefannie de Sá; JUSTI, Rosária. Contribuições de ações favoráveis ao ensino envolvendo argumentação para a inserção de estudantes na prática científica de argumentar. Química Nova na Escola, São Paulo. v. 43, n.1, Fev. 2021. Disponível em: <http://qnesc.sbq.org.br/online/qnesc43_1/04-AEQ-80-20.pdf>.