Em entrevista concedida à Revista BALBÚRDIA, Ivã Gurgel, professor do Instituto de Física da USP, fala sobre o tema negacionismo científico e ensino de Ciências, argumentando que o papel da escola deveria ser o de fomentar o debate de questões polêmicas.
O professor Ivã Gurgel é licenciado em Física pelo IFUSP (2004), mestre em Ensino de Ciências pelo PIEC-USP (2006) e doutor em Educação pela FE-USP (2010). Realizou estágio de doutorado no laboratório SPHERE - Sciences, Philosophie e Histoire do CNRS-França. Atualmente é professor no Instituto de Física da USP. Realiza pesquisa nas áreas de História da Ciência, Epistemologia e Educação, atuando principalmente nos seguintes temas: História da Física nos Séculos XIX e XX, História da Ciência no Brasil, Estudos Culturais da Ciência e Teorias Críticas de Currículo. É membro do Centro de História da Ciência da USP e coordena o Grupo de Teoria e História dos Conhecimentos (TeHCo) e o Acervo Histórico do IFUSP.
Bate-bola da Balbúrdia
Um físico famoso?
Lise Meitner.
Um Educador/professor de ciências?
Paulo Freire e Manoel Roberto Robilotta.
Um divulgador científico ou um projeto
O projeto Cecília, pois considero que é um projeto muito bonito e especial por fomentar a participação das mulheres jovens na Ciência.
Um livro (negacionismo científico)?
“Why Trust Science?” da professora de Harvard, Naomi Oreskes.
Um lugar específico da USP
O Bandeijão [Restaurante Universitário] Central.
Um sentimento sobre a USP?
A de que ela precisa continuar existindo, pois a universidade está sob ataque e não só um ataque político explícito com os cortes de verbas, algo que ocorreu mais nas Universidades Federais, mas ela está sob ataque sobre o que ela é. Nós temos que defender a universidade como um centro de produção de conhecimento, um conhecimento de interesse público.
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Em entrevista concedida à Revista BALBÚRDIA, Ivã Gurgel, professor do Instituto de Física da USP fala sobre os temas negacionismo científico e ensino de Ciências. Solicitamos ao professor que comentasse sobre a disciplina “Por que confiar nas Ciências? Epistemologias para o nosso tempo”, ministrada no final de 2020. O professor destaca que é preciso olhar para o negacionismo científico de outra maneira, é preciso ultrapassar o caráter demasiadamente lógico e epistemológico das Ciências e olhar para a perspectiva humana da atividade científica. Para Ivã, o primeiro passo para enfrentar o negacionismo é o de escutar as pessoas, tendo o cuidado de buscar compreender o que deve ser mobilizado para responder às inquietações em relação às Ciências. Neste sentido, o professor defende que o diálogo é o principal instrumento para superar a onda negacionista em que vivemos e, que ao contrário do que prega o movimento ‘escola sem partido’, a escola deveria ser o local privilegiado para a realização de debates sobre questões polêmicas. A entrevista foi realizada à distância, mais especificamente com a realização de uma videochamada, devido às restrições impostas pela pandemia de Covid-19.
BALBÚRDIA - Recentemente você organizou uma disciplina intitulada “Por que confiar nas Ciências? Epistemologias para o nosso tempo”. O que o levou a propor essa disciplina? Nos conte um pouco sobre ela, como foi estruturada, o que foi abordado ao longo da disciplina, quais foram os palestrantes e como foi a recepção dos estudantes.
Ivã Gurgel - Vou iniciar pontuando questões relacionadas à disciplina. O primeiro ponto que gostaria de destacar é uma certa compreensão da forma como eu vejo a Filosofia e a Epistemologia, indicando que elas possuem um papel social importante. Digo isso, porque ao conversar com as pessoas, é possível perceber que normalmente elas têm uma visão distante da Filosofia, ou como se a Filosofia fosse algo distante das nossas vidas. Mas não é bem assim, a Filosofia questiona as questões básicas de nossa vida, de nossa vida em sociedade, do que é o conhecimento, do que é a moral, por exemplo. Nesse sentido, a proposta da disciplina, que tem um título que tenta ser um pouco provocativo, em forma de questão “por que confiar nas Ciências?” e um subtítulo que busca indicar que a reflexão filosófica possui um papel social relevante “epistemologias para o nosso tempo”, justamente para fornecer elementos que nos auxilie a pensar nas questões da atualidade e, de certa forma, colocar por um lado, uma provocação, mas por outro lado, que não existe ainda uma resposta suficientemente completa. Temos que lembrar que esta não é uma questão nova, é uma questão que está na origem da Epistemologia, pois ela marca a própria natureza do que é a Epistemologia, uma área do conhecimento que se dedica a entender o que é o próprio conhecimento. Portanto, colocá-la como pergunta também é dizer que muitas respostas foram elaboradas ao longo dos séculos, por exemplo, se nós olhamos para o século XX, podemos perceber que há toda uma tradição da Filosofia da Ciência, com Karl Popper dentre outros que já lidaram com essa questão, mas que talvez com a situação atual do mundo e com os dilemas que nós temos enfrentado, as respostas apresentadas não sejam suficientes para respondê-la. Portanto, o título da disciplina tem a ideia de indicar que nós temos que construir respostas para essas questões, ou seja, não é só conhecer as respostas prontas, mas sim construir respostas e acreditar profundamente que elas ainda precisam ser formuladas e aperfeiçoadas. Essa foi a minha motivação para se organizar essa disciplina, a de criar um espaço onde pessoas possam se encontrar para repensar estas questões, propor coisas novas, colocar ideias em discussão.
Para isso, o principal critério para convidar os palestrantes foi o de trazer pessoas com diferentes olhares, pois a minha intenção foi a de trazer pessoas com visões muito diferentes entre si. Não vou negar que há um certo núcleo duro, que são pessoas da própria filosofia, nomes mais consagrados, por exemplo, o Alberto Cupani, o Antônio Augusto Videira, o próprio encerramento da disciplina foi marcado com o professor Michel Paty conjuntamente com alguns de seus ex-alunos, Olival Freire Júnior, Tatiana Roque, pessoas formadas por Paty, mas que hoje já são consagradas, portanto o encerramento teve um certo ar de grand finale. Mas como eu não tinha a intenção de encerrar a discussão sobre esse tema dentro de uma disciplina específica, fiz questão de trazer pessoas de diversas áreas. Tanto das humanidades, com pessoas da História, da Sociologia, que é um disciplina que muitas vezes não tem o papel de destaque que merece, pois normalmente se aborda a História e a Filosofia das Ciências, mas deixa-se a sociologia de lado, mas a considero como uma das mais importantes, ou a que mais nos conecta com o tempo atual, como também, pessoas que possuem toda a formação e carreira nas Ciências da Natureza. Isso porque muitos que trabalham com a História, a Filosofia e a Sociologia das Ciências possuem formação inicial nas áreas de Química, Física e Biologia. Por exemplo, o Paulo Artaxo, que é muito reconhecido porque atua no IPCC (Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas), e é um dos cientistas mais reconhecidos em relação ao assunto de mudanças climáticas, e o Rogério Rosenfeld, presidente da Sociedade Brasileira de Física (SBF), e que também participou da disciplina. E claro que esse critério amplo, quase um não-critério, refletiu um pouco como cada palestrante lidou com a própria questão, algo curioso foi que a questão de partida foi um pouco subvertida por cada pessoa para que ela pudesse trabalhar com os temas que se sentissem mais à vontade. Por exemplo, teve uma mesa redonda com dois físicos falando sobre física nuclear, este foi um exemplo muito concreto que os palestrantes optaram em abordar. Teve outras mesas que os palestrantes buscaram trazer uma teoria mais abstrata. Ou o pessoal da Biologia que discutiu sobre o Charles Darwin, focalizando no aspecto histórico, pois todos possuem uma carreira voltada para a História e Filosofia da Ciência. Esses palestrantes trouxeram exemplos muito concretos, abordando a Teoria da Evolução, contando todas as confusões em torno dela. Essa mesa foi muito legal, pois era composta de três grandes nomes, o Nélio Bizzo, a Maria Elice Prestes e o Gustavo Caponi, que concordavam em muita coisa, mas também discordavam em outras e, presenciar essas diferenças foi algo bem interessante. Então, para tentar sintetizar, ao mesmo tempo que alguns abordaram questões de cunho mais filosófico, mobilizando conceitos e tentando dar uma resposta racionalmente muito organizada, outros optaram por fazer uma retrospectiva da História e Filosofia das Ciências, fazendo comentários ao longo da exposição, outros ainda, como a Tatiana Roque que possuem certa militância política bem reconhecida que politizaram mais a questão, no bom sentido. Por fim, também teve colegas que trabalharam com temas mais específicos de suas especialidades.
As pessoas que participaram, em geral me deram retornos positivos, acredito que elas gostaram da disciplina, e acredito que a disciplina teve um público muito parecido com o que vocês têm na Revista BALBÚRDIA, que são alunos da pós-graduação e professores da Educação Básica. Quando eu contatei os palestrantes, sempre mencionei que eu acreditava que o público alvo da disciplina seriam os professores da Educação Básica.
É importante mencionar que a disciplina não foi um ciclo em que questões didáticas foram debatidas, inclusive, quando as pessoas me contataram para se inscrever na disciplina eu comentei isso para não gerar uma falsa expectativa. Em nenhum momento entrei no mérito da discussão de como promover esse debate em sala de aula, todos os vídeos estão no canal do youtube do TeHCo USP (Teoria e História dos Conhecimentos), mas esse não foi o foco. Por outro lado, não quer dizer que o debate realizado na disciplina não possa dar subsídio, uma base teórica para quem efetivamente está na linha de frente, fazendo esse debate com a sociedade, que são os professores e professoras que podem pegar uma turma de pessoas que podem ter muita desconfiança em relação às Ciências, que em certas ocasiões são por um bom motivo, pois não necessariamente a pessoa que tem alguma desconfiança é um negacionista ou faz parte de algum grupo negacionista. Quando falamos de uma educação crítica, temos que levar em consideração que faz parte da criticidade ser um pouco desconfiado, por isso que acredito que saber fazer esse debate seja algo fundamental e considero, que de certa forma, embora não fosse um ciclo sobre Educação, ele tinha um papel formativo importante para todos que lidam com a Educação.
BALBÚRDIA - Você considera que no final da disciplina as pessoas tiveram a impressão análoga ao de Alan Francis Chalmers sobre o livro que ele escreveu, “o que é a ciência afinal?”, embora ele considere que não tenha respondido a questão do título do livro, considera que ao final do processo o debate ficou mais refinado, mais bem fundamentado ou seja, no final da disciplina não se colocou um ponto final sobre a discussão do “por que confiar nas ciências”, mas as pessoas saíram da disciplina com uma fundamentação mais rica?
Ivã Gurgel - Exato, considero que a referência ao Chalmers é boa, pois no final nós não tínhamos uma resposta para a pergunta “por que confiar nas ciências”, na última apresentação não houve um momento em que nós falamos “então pessoal, agora chegou o momento, peguem seus cadernos e anotem ciência é…”, isso não aconteceu. Porém, o objetivo da disciplina foi o de trazer ideias, subsídios, conceitos que, posteriormente, terão a possibilidade de formar o seu imaginário e criar as suas próprias respostas. Mas considero que no livro do Chalmers, embora ele não apresente uma resposta, ele já consegue tratar a questão em um contexto mais delimitado, as balizas ficaram um pouco mais claras. Já na disciplina a questão foi posta de uma forma um pouco mais aberta, portanto a variedade de ideias acabou sendo um pouco maior do que a esboçada por Chalmers. Até porque a questão do porquê confiar nas ciências é algo ainda pouco trabalhado, ainda está muito latente, muito em aberto.
BALBÚRDIA - Pela fala dos palestrantes, dos estudantes e pela própria bibliografia que você disponibilizou para a disciplina, é possível perceber que há diferentes perspectivas sobre o que é Ciência e o que constitui a lógica e a Natureza das Ciências. Você considera que uma interpretação equivocada ou de má fé sobre os resultados desses estudos pode ter influenciado a percepção de parte da população sobre os aspectos da atividade e do conhecimento científico?
Ivã Gurgel - Essa é uma questão que já me colocaram algumas vezes e que tem sido um pouco recorrente. Eu diria que é comum as pessoas aceitarem que, de certa forma, posturas filosóficas excessivamente relativistas em relação ao conhecimento científico, seriam, em parte, as raízes do problema em que nós vivemos hoje em relação ao negacionismo. Há pessoas que, inclusive, gostam de colocar o Thomas Khun como o ser diabólico que tenha provocado tudo isso, outras pessoas preferem olhar mais para a sociologia do conhecimento científico ou falar que foi o David Bloor ou a antropologia do Bruno Latour, já outras pessoas fazem mais referência ao pós-estruturalismo. Eu acredito que não há uma relação direta, pois considero que o que nós vivemos hoje, e isso nós não podemos perder de vista, é muito mais do que um movimento intelectual. Eu diria que é muito mais do que um movimento cultural no sentido mais amplo, quando, por exemplo, se estuda um determinado período, o começo do século XX e conseguimos perceber o modernismo nas artes, uma série de coisas acontecendo, uma expansão do movimento cultural, mas eu não considero que seja bem isso. Acredito que o que nós vivemos hoje é um problema social muito mais generalizado, não é algo que nós conseguimos circunscrever, olhar os limites e dizer onde está localizado este movimento, pois está na sociedade como um todo, está na fala do cidadão comum, que está mais distante do debate sobre a natureza do conhecimento. E eu insisto nesse ponto, pois não dá para dizer que a pessoa que está indo participar de um protesto sem usar máscara, se aglomerando, defendendo o comércio, dentre outras coisas, está informada. O que eu quero dizer é que são discursos que estão muito longe da população e, portanto, considero um grande equívoco tentar localizar as raízes do problema nesses movimentos.
Por outro lado, e considero que indiretamente, possa ser que nós, e eu me coloco como grupo de pessoas que se dedica a discutir o que é Ciência, tenhamos pecado um pouco em não termos nos antecipado e ter construído um contra-discurso mais ou menos organizado, pois esse problema explodiu agora, mas não é novo. Se nós olharmos para a História e Filosofia da Ciência do século XX, pode-se perceber que, tipicamente, há uma redução dos autores sobre a definição do que é Ciência, em um processo que aponta cada vez mais o quanto ela não é algo que produz conhecimento 100% confiável. Portanto, a atitude crítica em relação à Ciência, essa ideia de ir desconstruindo todos os mitos, todos os critérios de demarcação muito rígidos, certamente foi a tônica de todo o debate. Por isso que considero que nós pouco nos mobilizamos para a formulação de um discurso que possibilitasse uma resposta positiva para a pergunta “por que confiar nas Ciências?”.
Hoje nós vivemos um período de inflexão na própria História e Filosofia da Ciência que é o de começar a ter um movimento mais construcionista, no sentido de que nós já fomos demolindo a Ciência para não se ter uma imagem muito idealizada dela. Isso nós já fizemos bastante e nos auxiliou a não ser tão ingênuos, a não dar respostas simplistas sobre o que é Ciência. Mas agora nós precisamos parar e dar uma reformada, temos que ver o que sobrou em pé, quais os critérios comuns. Até porque há uma sensação generalizada de que a Ciências merece um tipo de confiança, pois quando debatemos esse assunto, não há muita dúvida de que há motivos para se confiar na Ciência.
Mesmo vários dos autores acusados de terem promovido a descrença na Ciência, atualmente têm reforçado a importância de se confiar nas Ciências. Por exemplo, se você assistir as entrevistas atuais do Bruno Latour, ele diz “então pessoal, vamos com calma, o que eu disse não era bem isso” e ele mesmo diz “nós precisamos combater esse negacionismo”. Paul Feyerabend, vinte anos após escrever o livro Contra o Método, por volta dos anos 1990, tinha uma postura mais ponderada. Estas obras foram escritas nos anos 1970. Naquela época fazia sentido as pessoas serem mais provocativas, de dizerem “olha, a Ciência não é esse ideal que vocês possuem”. Mas já se passaram 50 anos, por isso que nós temos que contextualizar o texto desses autores com a época em que eles viviam, nós precisamos mostrar por que às vezes as coisas estão pintadas de certas cores para aquela época, mas hoje nós precisamos reequilibrar o discurso. Portanto, considero que nós temos um desafio difícil, o de construir uma visão construtivista que possibilite a formulação de respostas a essa questão.
BALBÚRDIA - O que os professores da Educação Básica e do Ensino Superior, podem fazer para fomentar uma reflexão mais profunda da atividade e do conhecimento científico, tanto com os alunos, como também com a comunidade escolar e acadêmica?
Ivã Gurgel - Eu sempre tenho medo dessa pergunta, não por que de certa forma ela seja legítima, pois ela é, mas eu tenho medo dela, pois é fácil de se cair em uma receita de bolo. Então eu que estou podendo trabalhar em casa em um certo conforto, falo para o professor “olha, você faz A, depois B, depois C”. Eu acho que não é bem assim, pois a questão é complexa.
Recentemente a Elysandra Figueredo Cypriano do IAG (Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas, da USP) me questionou “Ivã, por que você não faz um vídeo curto, de uns 15 a 20 minutos, sobre porque confiar nas Ciências” e eu pensei “ai meu Deus, agora vou ter que dar uma resposta para a pergunta que eu mesmo falo que não tem resposta?”, mas eu achei que valia a pena encarar o desafio, então no vídeo eu tento deixar claro que não há resposta definitiva, mas o que eu tentei fazer, e que pelo menos dá alguma luz, foi o de tentar fazer um movimento que fomente a mudança da percepção das pessoas de que não é necessário responder positivamente à pergunta sobre o “por que confiar nas Ciências”, no sentido de essencializar a Ciência. Por exemplo, a de que existe um método que não falha ou a de que o método pode falhar de vez em quando, mas se nós reproduzirmos várias vezes o experimento, dará certo. Ou ainda, dizer que os cientistas são sempre iluminados pela razão e, portanto, você pode confiar no cientista. Eu acredito que a Ciência é humana em todos os sentidos, nos bons e nos ruins, portanto, se nós olharmos para a história da Ciência fica muito claro que por diversas vezes sobressaíram as necessidades humanas, as pulsões humanas. Se voltarmos alguns séculos na História das Ciências, podemos perceber algumas pessoas errando, outras sendo mau caráter, podemos perceber preconceitos, ou seja, é possível ver de tudo. Portanto, nós precisamos evitar idealizar as Ciências, de construir um caminho que seja do tipo “certificado de garantia ISO 9000”. Algo que nós normalmente tentamos fazer, a de ir por uma via demasiadamente lógica e epistemológica para responder a pergunta, e embora essa perspectiva seja relevante para fornecer respostas, nós também precisamos olhar para o problema de outra maneira. E é desta outra maneira que eu tenho tentado sensibilizar as pessoas, que é o de olhar para as Ciências em sua perspectiva humana, pois se os problemas das Ciências vem de sua natureza humana, então vamos olhar a Ciência por um viés mais sociológico, antropológico e psicológico. Às vezes, por mais contraditório que se pareça, são por essas perspectivas que nós encontramos respostas do porquê confiar nas Ciências. Por exemplo, eu confio mais nas instituições científicas do que nos cientistas, pois acredito que os cientistas estão muito mais propensos a erros do que as comunidades científicas. Hoje, com a pandemia, fica muito clara essa diferença, pois você pode ver casos de cientistas, individualmente, defendendo de tudo, porém não se vê nenhuma sociedade científica séria defendendo algo como a Hidroxicloroquina. São nesses casos que fica evidenciado que é interessante olhar para a Ciência como um constructo que tem instituições, tem modos de organização e modos de legitimação que são próprios a ela, pois assim é possível perceber que socialmente há pontos de garantia que, embora não dê certezas, ajudem esses processos a serem mais interessantes. Em um artigo que eu escrevi recentemente com a Graciella Watanabe, utilizamos o termo ‘epistemologia social’ para caracterizar o contexto atual, referente à esta epistemologia do conhecimento, a qual é preciso olhar para a Ciência com um olhar mais amplo, como um constructo da comunidade científica.
Nesse sentido, o que eu diria para os professores é que é preciso estar mais sensível para abordar sobre o porquê confiar nas Ciências, é preciso abordar essa questão com diferentes perspectivas. Algo importante para mim, e é claro que é o meu lado freiriano falando um pouco mais alto, é preciso ouvir os estudantes, porque normalmente quando vemos uma atitude de um jovem que não é muito favorável às Ciências a nossa tendência é de se assustar, em primeiro lugar, e, logo em seguida, de ter um espírito combativo e, mesmo que não se cometa nenhum tipo de agressão e a situação se transcorra com alguma normalidade, às vezes é um discurso impositivo, o que é péssimo porque nós acabamos nem ouvindo o estudante. Portanto, o primeiro passo é o de ouvir o aluno e tentar entender o porquê de ele estar com alguma dúvida em relação à Ciência, e ouvir com um certo cuidado para saber o que precisa ser mobilizado para responder a inquietação dele. Em muitos casos o aluno tem mais predisposição de confiar nas Ciências do que nós tenhamos percebido a priori, e faz parte, nós temos dúvidas. O que nós, professores, precisamos saber fazer é localizar na fala dos alunos essas dúvidas para saber como abordá-las.
BALBÚRDIA - Nas suas falas você já direcionou para algumas ações que o professor pode fazer caso o aluno o questione sobre o porquê confiar nas Ciências, mas pergunto se você quer complementar essa pergunta ou passar algum relato de algum aluno ou se você também vivenciou isso enquanto professor.
Ivã Gurgel - Sim, como eu já citei o Paulo Freire, autor que eu gosto muito. Para mim, Paulo Freire é um filósofo e digo isso não somente para tecer um elogio, mas também chamar a atenção para como nós podemos olhar para a obra dele. Considero que ele tem uma obra que constantemente aborda questões educacionais, mas também de epistemologia. Ele fala sobre o que é o conhecimento, e digo isso para chamar a atenção que o diálogo para o Paulo Freire é mais do que uma maneira de troca de conhecimento, é parte da construção do conhecimento, e isso é muito profundo, pois às vezes nós achamos que o diálogo é uma maneira de ser mais educado, de se estabelecer uma relação mais afável, de estar mais próximo ao estudante e, portanto, construir uma relação pessoal e interpessoal mais interessante. O conhecimento, utilizando um termo mais atual, perspectivo - pois nenhum conhecimento dá conta de tudo que existe na realidade, portanto, o conhecimento ser perspectivo - significa que às vezes é só pelo diálogo que nós conseguimos aprender e mudar de perspectiva, no sentido de você olhar por um outro viés e dizer “hum, agora eu entendi”. Em muitos casos nós falamos sem parar, mas a pessoa não está no mesmo canal que você, então a jogada do trabalho didático é a de mudar de canal.
Quando eu falo da Ciência, das instituições científicas, a Ciência criou as instituições, as academias científicas foram criadas no século XVII justamente porque as pessoas precisavam debater, portanto, uma das coisas que mais caracteriza a Ciência é o debate. Não é o que se faz dentro do laboratório, são esses momentos onde as pessoas debatem e criam um discurso justificado. Ou seja, uma atitude fundamental para alguém que está na Ciência é o mínimo de humildade, embora muitas pessoas que nós conheçamos não pareçam muito humildes. Quando um estudante vai defender o doutorado, o que ele faz é submeter a sua tese para uma banca, é preciso se colocar em julgamento, portanto, é parte do processo aceitar o julgamento e responder tudo o que perguntarem. Esta mesma ideia sobre a defesa de um doutorado está presente quando eu vou em um congresso, quando eu submeto um artigo e vem um parecer. Por mais que eu discorde do parecer que foi dado, se eu quero publicar, terei que responder aquele parecer, então é preciso aceitar essas regras do jogo para se inserir na comunidade, caso não aceite, você está fora. No dia a dia isso é chato, pois todo mundo odeia receber um parecer muito crítico ou quando estamos defendendo o doutorado, é horrível receber umas pauladas da banca, não é nada confortável. Mas voltando à Paulo Freire, o que é legal é que no fundo é o diálogo acontecendo e esse diálogo é justamente o diálogo do conhecimento, o diálogo onde um consegue chamar atenção e fazer o outro perceber coisas que ele não percebia. Eu, por exemplo, sempre que estou em uma banca tento conduzir o diálogo de uma maneira mais agradável possível, pois eu também acho que isso ajuda a construir os laços, mas independente disso é que o diálogo ocorra e que ele ocorra de uma maneira onde os pontos de vistas serão colocados, debatidos e revistos, pois nesse contexto eu sou obrigado a justificar o meu posicionamento. Portanto, voltando para a questão didática, eu adoro quando o aluno me pergunta algo, inclusive algo que me desestrutura, pois muitas vezes é a pergunta de um estudante em sala de aula que me fez pensar em algo que eu nunca havia pensado e isso me obriga a refletir e correr atrás da resposta. Essas perguntas se davam nas aulas de Física tanto quando eu era professor na Educação Básica, como agora que sou professor no Ensino Superior.
Um exemplo que tem muita relação com essa discussão refere-se à disciplina que ministro, intitulada Introdução à Epistemologia. O objetivo do curso é debater o que é a Ciência. Claro que ao longo da disciplina eu constantemente faço esse debate com os estudantes e no primeiro dia eu já os alerto para qual será a questão da prova. No último dia do curso os alunos fazem uma redação sobre o que é Ciência. Eu já podia falar da questão da prova no primeiro dia, pois há múltiplas respostas para essa pergunta e, portanto, cada aluno iria esboçar uma resposta distinta. Após o curso, depois de eu ter apresentado o Popper, o Feyerabend, o Khun, sempre tendo o cuidado de evidenciar como os diferentes autores responderam a essa questão, os alunos me intimaram e disseram “professor, nós não vamos encerrar esse curso sem você dar uma aula dizendo o que você acha que é a Ciência”. Eu achei aquilo muito legal, pois não estava nos meus planos lecionar aquela aula, mas como eu fui intimado eu tive que organizar uma série de coisas para tentar responder a pergunta. Isso e as perguntas que os alunos fizeram ao longo da aula me fizeram refletir para questões que eu nunca havia me atentado. Portanto, eu dei esse relato para realçar que é o debate que permite a construção do conhecimento, uma das coisas que eu acho mais importante, que tem um valor epistemológico mais importante é o debate, esse debate de trocas.
Eu abordei essas questões para dizer que, como eu já fui professor na Educação Básica, sei que os alunos nos confrontam, os alunos do ensino médio sabem colocar questões ácidas, que nos abala e não é nem um pouco fácil lidar com esse tipo de situação. Mas o que nós temos que aprender como professor, é lidar com esse tipo de situação e isso não é nada simples, mas é possível, por isso que eu não gosto das receitas. Eu fui aprendendo a lidar com essas situações com o tempo. Já como professor da Educação Básica eu gostava de trazer algumas questões, de fazer provocações para os estudantes. Às vezes eu até era um pouco corajoso demais, eu lembro que em uma aula para o ensino médio eu discuti com os alunos se o átomo existe e, para minha surpresa, eles diziam que não, diziam “eu sei que você está explicando bonitinho o modelo atômico e tal, mas para mim isso não existe”, então eu comecei a questionar o porquê de eles não acreditarem. A partir daí o debate foi acalorando de um jeito que no final enquanto um aluno dizia que não acreditava em átomo, pois não conseguia vê-lo, o outro contra-argumentava dizendo que ele acreditava em Deus sem também o ver, e eu no meio gerenciando tudo isso e é essa a habilidade que tem que ser construída.
Tenho certeza que entre mortos e feridos, e apesar das dificuldades de se lidar com esses debates, são justamente esses debates que devem ser feitos, pois eles tem um potencial de discussão. O que nós devemos aprender, e digo aprender como sociedade, é reconhecer a escola como esse espaço de debate. Se nós reconhecermos a escola dessa forma, a vida do professor da Educação Básica será mais fácil, pois se existir um projeto ‘escola sem partido’, algo que é um retrocesso sem tamanho, mata o debate, e o professor dirá, “assim eu não vou fazer o debate” e ele estará correto. Portanto, nós temos que fazer o oposto do ‘escola sem partido’, nós precisamos como sociedade, ter claro que o papel da escola é o de debater questões polêmicas. No momento em que a sociedade estiver convencida disso, será o momento em que o professor estará na sala de aula com muito mais tranquilidade. Ele até pode ficar nervoso com o aluno que deu uma alfinetada exagerada, mas isso será devido às dificuldades do dia a dia, das relações humanas, algo normal. Portanto, eu sei que o que eu proponho enfrenta problemas com o atual contexto político, fica muito mais difícil. Eu ainda tenho tentado ter fôlego para fazer, pois mesmo nas universidades esses debates já não tem sido muito fáceis. Entendo que muitos professores não queiram fazer, mas o que nós devemos fazer, como já mencionei, é ter claro como sociedade que esse é o papel da escola.