Você já percebeu a quase ausência do feminino entre os elementos químicos?
Doce docente entre diversos saberes, da confluência entre as ciências naturais e sociais. Freireano, amorosamente intercultural e transdisciplinar... Licenciado em Química (UFC, 2003), Mestre em Ensino de Ciências Naturais e Matemática (UFRN, 2013), ex-aluno de doutorado no PIEC. Recentemente tem se aproximado mais da Biologia, como instrutor de mergulho livre.
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01 de julho de 2024 | 10:00
Acaso estaríamos tão acomodados ao machismo estrutural, que nem percebemos o machismo gramatical ou científico? Há alguns anos, Chassot (2003) intitulara um livro seu com o questionamento: A Ciência (fem.) é masculina?
Diante dessa limitação ortográfica e principalmente sociocultural, ao pensar na tabela que é, infelizmente, um dos assuntos mais lembrados por quem estudou a Química escolar, tão masculinizada, resolvi cunhar esse neologismo.
Poucas pessoas que aprendem ou ensinam os conteúdos químicos, sequenciados e apresentados há décadas do mesmo modo, já observaram que em nossa tão bem (ou mal) lembrada tabela periódica, existem apenas dois elementos com nomes femininos dentre os mais de cem atuais e continuando a contar.
Atrevo-me a imaginar que um dos mais famosos pensadores da Antiguidade, imerso na “democracia” masculina excludente grega, Aristóteles, ao divulgar as ideias de Empédocles, também nunca tenha percebido um detalhe curioso sobre aqueles quatro elementos. Apresentavam igual quantidade de palavras masculinas e femininas... Água, onipresente na Terra, contrastava bem com Fogo e Ar…
Irônico, se não fosse trágico, que mesmo a União de Química Pura e Aplicada – IUPAC, tendo reconhecido vários outros, desde que estudei aquela centena, na escola, de elements (no inglês, parece não haver polêmicas “linguísticas”), as mesmas duas “elementas” continuam lá. A questão, definitivamente, não é sobre palavras!
Irmã siamesa da Astronomia, desde as épocas babilônicas, as relações com a agora desprezada “ciência oculta” serve de metáfora interessantíssima para outra área de conhecimento ainda desprezada como “não científica”. Psicanalistas empregam metáforas astrológicas para características comportamentais das propriedades da água (emocional), terra (físico), fogo (espiritual) e ar (mental).
Como teria sido se nos acostumássemos desde sempre a nomear as duas “menores partes” da vida de carbona e hidrogênia? Soa esquisito, pode parecer absurdo para muitos (para muitas, talvez não), mas não deveríamos também considerar um absurdo que a palavra atribuída à nação da mulher que descobriu esse e outros elementos, seja Polônio e não, Polônia?
Não deveriam perceber e também se indignar, quem estuda a bendita tabela e um mínimo de História da Química, ao refletir sobre a “homenagem” à notável cientista polonesa (que assim como a maioria das mulheres até hoje) adotou o sobrenome do marido, francês?
Marya (leia-se Mária), trocou o nome para “Marie”, de acordo com a grafia francesa, quando estudou na França (McGrayne, 1994). Marie Curie, como ficou conhecida, foi escolhida pela IUPAC para dar nome às partículas com 96 cargas positivas, com o masculinizado nome de Cúrio. Pode-se imaginar a quantidade de mulheres na “União” que atribuiu esse nome.
Quanta carga negativa…
Ah, minha querida Química, tu que és tão feminina, descendente de tua ancestral bruxa, a Alquimia, cuja essência são transformações (fem.) de substâncias (fem.)... Que mesmo sendo Ciência (fem.) e da Natureza (fem.), conseguiram te saturar de regras machistas.
Benditas sois as únicas duas femininas, Prata e Platina. Se o princípio feminino une e integra, é pela composição de hidrogênio (gerador de água) e oxigênio (gerador de ácido) que se forma a vital substância feminina. Talvez sua masculinização não tenha sido possível por travar as línguas dos homens (tentem pronunciar águo).
Prefiro não me intitular químico (masc.). Para além de qualquer discussão epistemológica ou histórico-filosófica, relembro o que escrevi na minha placa de formatura, ao me “licenciar em Química, porém com o sentimento transcendente de alquimista”, assim como cientista, comum a dois gêneros.
Permito-me o devaneio de imaginar que essa história com tantos nomes e pessoas, muitas das quais, mulheres, pudesse realmente ter se iniciado com a deusa Ísis e os anjos, que não tem sexo. Não mesmo? Ou será mais uma tentativa de masculinizar as entidades celestiais... ou as infernais…
Que novas Hipatias e Marias se revelem... Nem que tenham que roubar o fogo sagrado dos deuses... Mas que jamais sejam queimadas...
REFERÊNCIAS
CHASSOT, Attico. A Ciência é masculina? São Leopoldo, RS: Unisinos, 2003.
McGRAYNE, Sharon B. Mulheres que ganharam o prêmio Nobel em Ciências: suas vidas, lutas e notáveis descobertas. Trad. Maiza F. Rocha e Renata B. de Carvalho. São Paulo: Marco Zero, 1994.