Quem é cientista? A visão limitada sobre a representação da pessoa cientista em livros didáticos

Cientistas que não se enquadram na visão estereotipada. Da esquerda para a direita, em primeiro plano: Sonia Guimarães, Katherine Johnson, Benjamin Banneker, Jacqueline Goes de Jesus e Vera Rubin; em segundo plano: Philip Emeagwali, Neil De Grasse Tyson, Donna Strickland, Abdus Salam, Annie Easley e Chien-Shiung Wu. Créditos: montagem de autoria própria realizada a partir de imagens do Wikimedia Commons.

Análise de representações de cientistas em livros didáticos aponta a presença de estereótipos que criam obstáculos epistemológicos ao ensino.

Sou Luciene Silva, licenciada em Física pela UNESP (2011), além de mestra (2015) e doutora (2019) pelo PIEC-USP. A paixão por ciência e educação vem do ensino médio, por isso me aventurei em fazer a licenciatura. Minhas primeiras experiências docentes foram na faculdade, em monitorias, estágios e no PIBID, onde fui bolsista do primeiro subprojeto de Física da UNESP. Desde que me formei, atuei em várias escolas e cursinhos populares até me tornar professora no IFRJ (campus Nilópolis), em 2016. Desde então, encaro também a responsabilidade de formar professoras e professores no curso de Licenciatura em Física. Não paro quieta, tenho diversos interesses dentro de minha área, que vão desde Formação de Professores até Divulgação Científica. Fora da Ciência e Educação, minhas paixões incluem também corrida, yoga, teatro e jornalismo!

Para saber mais!

Ampliando seus conhecimentos sobre mulheres na ciência e perspectivas contra hegemônicas: confira as indicações!

Vídeos do canal tekokuaba: “conhecimento das coisas” (iniciativa da Universidade Federal de Alfenas) aprofundam a discussão sobre a desigualdade do reconhecimento das mulheres na Ciência e Tecnologia no Brasil e no mundo.

Perfil do instagram @cientistasnegras apresenta cientistas negras brasileiras nas áreas de Física, Química e Matemática. O perfil indica vários filmes e livros que nos ajudam a conhecer o trabalho de outras personalidades pretas, além de nos apropriarmos de discussões sobre a educação antirracista.

Perfil do instagram @coletivodecolonialbrasil traz discussões que se articulam com a decolonialidade e a pluralidade dos saberes em diversas áreas. O perfil traz indicações de filmes, artistas, debates, livros, cursos e práticas contra hegemônicas. Visite o site do Instituto Coletivo Decolonial Brasil para saber mais.

Antes de ler este texto de divulgação científica, proponho a você um rápido exercício. Pare e pense: quem é cientista? Quais são suas principais características? Esse exercício traz a essência do Teste DAST (Draw a Scientist Test, ou, o Teste do Desenho de um(a) Cientista), proposto em 1983 por David Chambers, pesquisador estadunidense, com o propósito de identificar estereótipos e como são criadas as visões de quem é a(o) cientista. Os resultados da aplicação do teste em diferentes populações e em diferentes épocas indicam a permanência da associação da pessoa cientista com o sexo masculino e com a predominância da cor branca. E as pessoas pretas? E as mulheres? Elas não podem ser cientistas ou trabalhar com o desenvolvimento tecnológico? Onde essas pessoas estão?

De fato, mulheres e pessoas pretas contribuíram para o desenvolvimento da Ciência e Tecnologia no Brasil e no mundo, conforme aponta a figura que ilustra esse texto com diferentes personalidades femininas e/ou não-brancas da área em diferentes períodos históricos e na atualidade. Mas por que essas pessoas não são lembradas como cientistas? Nesse sentido, diante da importância de imagens presentes em livros didáticos para a construção do imaginário sobre a pessoa trabalhadora da Ciência e Tecnologia, as pesquisadoras Ana Paula Butzen Hendges e Rosemar Ayres dos Santos, da Universidade Federal da Fronteira Sul, analisaram, a partir dos recortes de gênero e cor, as representações de  cientistas presentes em livros didáticos de Física. E aí, com base na sua própria resposta ao rápido exercício proposto no início do texto: quais seriam suas hipóteses sobre os resultados encontrados pelas pesquisadoras?

O que (não) está presente nas representações dos livros didáticos

As pesquisadoras analisaram um total de 3266 imagens que retratavam alguma pessoa de doze coleções de livros didáticos de Física aprovados no Programa Nacional do Material e do Livro Didático (PNLD) de 2018. Para analisá-las, adotaram o referencial teórico-metodológico da Análise Textual Discursiva. Esse referencial indica etapas sucessivas de análise, que consistiram: na seleção de imagens de interesse para a pesquisa (com a escolha das chamadas unidades de significado, que no caso, têm a ver com a representação de pessoas envolvidas com a Ciência e Tecnologia); na categorização desse conjunto de imagens selecionadas e, por fim, na elaboração de uma síntese das compreensões adquiridas nesse processo de análise e em articulação com o referencial teórico adotado.

Assim, elas chegaram à seleção de 752 imagens que foram posteriormente agrupadas em duas categorias. Na primeira, a qual contempla a grande maioria de imagens, a Ciência e Tecnologia é apresentada como masculina, de cor branca e produzida em séculos passados. A respeito da segunda categoria, que compreende menos imagens, analisa-se a presença de mulheres ligadas à Ciência e Tecnologia. No que diz respeito às imagens diretamente relacionadas à área, as quais compreendem um total de 691 representações, as pesquisadoras verificaram que apenas 30 (ou 4,3% delas) representavam exclusivamente mulheres. Raramente as coleções tiveram um número de representações femininas que ultrapassaram 10% do total de imagens analisadas, o que confirma a predominância de figuras masculinas em cada coleção. Em uma delas, nenhuma imagem apenas com mulheres foi identificada! Além disso, do total, apenas 43 imagens (ou 5,7%) foram de pessoas não-brancas.

Consequência das ausências: obstáculo epistemológico

Em seu estudo, de acordo Ana Paula e Rosemar: “a generalização da profissão cientista enquanto carreira masculina e para pessoas de cor branca, ao ser internalizado nos livros didáticos, mesmo que inconscientemente, pode ser encarado como um bloqueio a outras possibilidades de representação e visões de mundo, constituindo-se em um obstáculo epistemológico” (p. 596). Dessa forma, as ausências identificadas na análise (de representações de mulheres e de pessoas não-brancas) reforçam o obstáculo epistemológico que o filósofo francês Gaston Bachelard denominou de Conhecimento Unitário e Pragmático. 

De acordo com Bachelard, obstáculos epistemológicos podem ser entendidos como resistências oferecidas pelo conhecimento do senso comum à construção do conhecimento científico-tecnológico. No caso, o obstáculo epistemológico do Conhecimento Unitário e Pragmático aponta uma generalização extrema a partir de uma indução pragmática e utilitária dos fenômenos. Ou seja, ao observar um determinado fenômeno, criamos uma resposta única, direta e generalizada a um questionamento. Logo, os livros didáticos analisados passam a impressão de que homens brancos são as pessoas mais relevantes da Ciência e Tecnologia.

As implicações da manutenção desse obstáculo são muitas. Por exemplo, no contexto do ensino superior no Brasil, apesar das mulheres serem a maioria em número de matrículas em cursos de graduação e de mestrado e doutorado, elas ocupam poucos cargos de poder na estrutura institucional: são poucas as professoras titulares ou com cargos de liderança como coordenações de pesquisa, segundo fontes citadas pelas autoras1. Além disso, em escolas de todo o Brasil, meninas podem se sentir desestimuladas a seguir carreiras científico-tecnológicas, por não se identificarem com esse campo profissional. 

Superar o obstáculo: Ciência e Tecnologia sobre outros olhares

Ana Paula e Rosemar destacam a importância de um posicionamento crítico diante das imagens dos livros didáticos no processo educacional em relação à igualdade de gênero e raça na Ciência e Tecnologia. Nas palavras das autoras: “uma consideração explícita de tais obstáculos pode ajudar a questionar concepções assumidas de forma acrítica e aproximar-se de concepções mais adequadas que podem ter incidência positiva sobre o ensino” (p. 605). Apontam como estratégias práticas, a criação de grupos de estudos com professoras e professores em formação inicial e continuada sobre a temática, bem como a criação de materiais que complementam as lacunas identificadas nos livros didáticos. 

Para ampliar a discussão apresentada pelas pesquisadoras, faço menção às ideias da filósofa feminista Donna Haraway. Segundo a autora, a objetividade na Ciência não é alcançada pela noção – patriarcal – de afastamento entre sujeito e objeto, mas, pelo contrário, é alcançada a partir da especificação de quem produz o conhecimento e a partir de qual lugar, isto é, o saber localizado. Assim, o conhecimento produzido pelas pessoas subjugadas (mulheres, pessoas não-brancas) tem maior potencial de promover visões mais adequadas e – principalmente – transformadoras de mundo, por vir de pessoas que têm posições com menor probabilidade de negarem a crítica e o núcleo interpretativo do conhecimento (assumindo-o como parcial e limitado). 

 

Ficou interessada(o) no tema? Aprofunde seus conhecimentos acessando as referências:

HENDGES, Ana Paula Butzen; SANTOS, Rosemar Ayres dos. Obstáculos epistemológicos em livros didáticos de Física: o gênero na Ciência-Tecnologia. Caderno Brasileiro de Ensino de Física, v. 39, n. 2, p. 584-611, 2022. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/fisica/article/view/85678 Acesso em: 15 out. 2022.

HARAWAY, Donna. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu, v. 5, p. 07-41, 1995. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/1773 Acesso em: 15 out. 2022.

Nota de rodapé

1São elas, as reportagens da BBC News Brasil, “Mulheres são maioria nas universidades brasileiras, mas têm mais dificuldades em encontrar emprego”, escrita por Paula Idoeta e publicada em 10 de setembro de 2019 ; e da Folha de São Paulo, “Na pós-graduação, mulheres são maioria entre estudantes, mas minoria entre docentes”, escrita por Sabine Righetti e Estevão Gamba e publicada em 12 de março de 2021.  Além do artigo de Jacqueline Leta, “As mulheres na ciência brasileira: crescimento, contrastes e um perfil de sucesso”, publicado na revista Estudos Avançados em 2003.