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Autoprodução de Materiais de Abuso Sexual Infantil: Uma Introdução ao Grooming

Autoprodução de Materiais de Abuso Sexual Infantil: Uma Introdução ao Grooming

 

Carolina Christofoletti

Bacharela em Direito pela Universidade de São Paulo, Brasil, com menção honrosa. Fundadora e coordenadora e membra ativa do grupo de trabalhos Internet Governance and Crimes Against Children, Universidade de São Paulo, Brasil. Mestranda em Criminalidade Cibernética pela Universidade de Nebrija, Espanha e em Cumprimento Normativo pela Universidade de Castilla la Mancha, Espanha. Pesquisadora em temas de Materiais de Abuso Sexual Infantil pela Anti-Human Trafficking Intelligence Initiative, Estados Unidos. Autora de artigos em temas de Material de Abuso Sexual Infantil e Governança Cibernética.

Jorge André Domingues Barreto

 Investigador da Polícia Civil de São Paulo. Professor de Inteligência Cibernética do Ministério da Justiça e Segurança Pública. Instrutor de Investigação de Abuso Sexual Infantil pela Internet da CRC – Child Rescue Coalition, credenciado pela HSI – Homeland Security Investigation da Embaixada dos Estados Unidos. Bacharel em Engenharia Elétrica e Mestrando em Ciência da Computação pelo ICMC/USP – Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação da Universidade de São Paulo. Especialista em Investigação Policial. Co-autor dos livros: Tratado de Investigação Tecnológica e Enfrentamento da Corrupção e Investigação Criminal Tecnológica. Membro ativo do grupo de trabalhos Internet Governance and Crimes Against Children, Universidade de São Paulo, Brasil.

Hericson dos Santos

 Perito Criminal do Instituto de Criminalística de São Paulo. Professor titular de Investigação Policial da Academia de Polícia de São Paulo. Professor de Inteligência Cibernética do Ministério da Justiça e Segurança Pública. Instrutor de Investigação de Abuso Sexual Infantil pela Internet da CRC – Child Rescue Coalition, credenciado pela HSI – Homeland Security Investigation da Embaixada dos Estados Unidos. Bacharel em Ciência da Computação e Mestrando em Ciência da Computação pelo ICMC/USP – Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação da Universidade de São Paulo. Especialista em Redes e Telecomunicações e Especialista em Forense Computacional. Autor do livro: Deep Web Investigação no Submundo da Internet. Co-autor dos livros: Tratado de Investigação Tecnológica e Enfrentamento da Corrupção e Investigação Criminal Tecnológica. Membro ativo do grupo de trabalhos Internet Governance and Crimes Aagainst Children, Universidade de São Paulo, Brasil.

1.   Introdução

Autoridades policiais e membros da academia que vêm acompanhando, nos últimos anos, o desenvolvimento dos chamados fóruns de pornografia infantil ‘online’, os quais, para os fins deste artigo, serão denominados fóruns de produção e compartilhamento de materiais de abuso sexual infantil ou CSAM – Child Sexual Abuse Material, nomenclatura adotada pela comunidade internacional, sejam autoridades ou estudiosos do tema [1]. 

Tendo por equiparação a fenomenologia observada nos últimos anos, observa-se uma guinada substancial com relação aos tipos de materiais desta categoria que trafegam pelas esquinas escuras da Internet. Progressivamente, retratos de crimes gravados, muitas vezes, pelos próprios abusadores passam a ser substituídos por materiais de nudez ou masturbação enviados pela própria vítima através, por exemplo, de uma conversa no Instagram [2].

Na concepção popular, os materiais de abuso sexual infantil somente existiriam com relação à imagens produzidas por um terceiro. E, pois que o conceito pode parecer complexo, pacificá-lo-emos desde já: um material sexual produzido contra um menor não deixa de ser ilegal pelo simples fato de ter sido produzido pela própria vítima. Muitas vezes, inclusive, a gravidade dos materiais autoproduzidos supera a gravidade dos materiais que povoavam, até então, a chamada Dark Web. [3] 

Do ponto de vista do tipo penal objetivo, a elementar do tipo determina que configurar-se-á “pornografia infantil”, para fins legais, toda e qualquer:

“cena de sexo explícito ou pornográfica” compreende qualquer situação que envolva criança ou adolescente em atividades sexuais explícitas, reais ou simuladas, ou exibição dos órgãos genitais de uma criança ou adolescente para fins primordialmente sexuais.” (Art. 241-E, Estatuto da Criança e do Adolescente)

Tampouco, subsiste qualquer dúvida, do ponto de vista legal, sobre se a criança ou adolescente poderia ser, ele/ela mesmo produtor de um dito material ilegal. Preenchido o elemento do tipo e perfeito o verbo, o tipo penal objetivo está preenchido. Outra questão – na qual não se entrará neste momento – é a punibilidade desta autoprodução. 

Independentemente da punibilidade da vítima, o fato é que aquele que recebe um dito material, divulga ou tão somente o guarda incorre, segundo a lei brasileira, em crime. Não obstante, se confirmada a tipicidade da autoprodução, confirmado também estaria o tipo do Art. 244-B do Estatuto da Criança e do Adolescente (corrupção de menores). É dizer, estaríamos diante de uma situação em que o aliciador está a incitar, por parte do menor, a prática de uma infração penal. Do ponto de vista jurídico, esta não parece ser, a priori, a melhor solução. 

Enquanto se discute o melhor enquadramento da tipicidade do grooming, conduta que se apresentará adiante, os fóruns de produção e compartilhamento de material de abuso sexual infantil na Dark Web estão lotados de instruções sobre como aliciar – eis o verbo- uma criança ou adolescente por meio de redes sociais, ludibriando-os – sob a promessa de uma sexualidade a ser descoberta – a se tornarem, eles próprios, os produtores de seus próprios materiais. [4]  

Aproveitando do caos jurídico que permeia o grooming, os criminosos aproveitam, ao nível internacional, a desnecessidade do contato físico com a vítima para, utilizando gravações de tela, solicitações e live-streamings [5], povoar os fóruns ilegais com materiais “gravados” sob suas credencias – como se, por fim, “assinassem” suas próprias obras criminosas – tal como foi observado, em mais de uma oportunidade, pela Polícia Civil do Estado de São Paulo e por pesquisadores. [6]

2. Grooming 

Transposto do verbo inglês “to groom”, o grooming se define – segundo o dicionário de Cambridge [7] – como o conjunto de coisas que se faz para garantir uma aparência limpa. Ao provocar a autoprodução de materiais de cunho sexual, os criminosos pretendem “lavar” a produção destes conteúdos ilegais sob o argumento de que não existiria aqui bem jurídico a ser tutelado. 

Não obstante, do ponto de vista prático, o conceito adquiriu um significado um pouco mais específico. No linguajar popular, o grooming é conhecido como sendo o ato de condicionar alguém a fazer algo em favor de quem o/a condiciona. No caso do grooming com vítimas crianças e adolescentes, esta “coisa” é, geralmente, praticar um ato sexual. ​​Curiosamente, das revisões legislativas globais feitas pelo International Centre for Missing and Exploited Children (ICMEC) em 2017 sobre o Grooming de crianças para fins sexuais, a revisão brasileira está ainda faltando [8]. 

O “convencimento” opera aqui de diversas maneiras: uma delas por meio de fraude. Outra, através de promessas como o pagamento de um bônus de videogame, por exemplo. Outra, com manipulações psicológicas do tipo “todo mundo já fez isso menos você”, dentre inúmeras outras estratégias utilizadas pelos aliciadores.

Nem sempre, todavia, o aliciamento morre como tal. Não raro, evolui como casos bastante perigosos de extorsão sexual em que, muitas vezes, as crianças e adolescentes são coagidos a captarem mais e mais “produtores” de materiais ilegais sob pena de terem suas imagens reveladas. 

O National Centre for Missing and Exploited Children (NCMEC), o qual serve também como uma hotline de denúncia de conteúdos de abuso sexual infantil (inclusive imagens), reconhece, entre as “bandeiras vermelhas” [9] que devem disparar um alerta para o grooming:

  • Envolver a criança em conversas ou jogos sexuais como um método de aliciamento, em vez de um objetivo.
  • Pedir à criança imagens sexualmente explícitas de si mesma ou compartilhar mutuamente imagens.
  • Desenvolver um relacionamento através de elogios, discutir interesses compartilhados ou “curtir” posts
  • Enviar ou oferecer imagens de si mesmo que sejam sexualmente explícitas.
  • Fingir ser mais jovem.
  • Oferecer um incentivo como um cartão presente, álcool, drogas, hospedagem, transporte ou comida.

3. O problema 

Do ponto de vista jurídico, o caos que permeia o aliciador é que, por fim, a solicitação de materiais de abuso sexual de menores não constitui, por si só, infração penal no Brasil. O grooming está, no atual estado de coisas, a ser ainda identificado não através de sistemas de cooperação ativa entre plataformas de redes sociais e as polícias nacionais, mas sim diretamente através das imensas galerias de materiais ilícitos que estampam, ainda, os corredores de coisas como fóruns de produção de compartilhamento de materiais de abuso sexual infantil – principalmente na Dark Web. [10]

Isto é, se conseguir chegar, alguma vez, à conclusão de que os materiais enviados pela vítima (muitas vezes através de aplicativos de mensageiria instantânea) foram literalmente “imprimidos, gravados ou salvos” pelo criminoso. Seja como for, o fato é que o grooming está sendo judicializado, hoje, através da tipificação da posse e distribuição de materiais de abuso sexual infantil: Isto é, caso a autoria desta distribuição seja, ela também, alguma vez encontrada. 

Em muitos dos casos, a “promessa de não divulgação” é justamente o elemento que os criminosos usam para ganhar e manter a confiança da vítima – que acaba produzindo, muitas vezes, materiais que atendem um grau de gravidade que os torna, inclusive para os fóruns dedicados, “materiais raros”. Nos fóruns de distribuição e compartilhamento de materiais de abuso sexual infantil, os groomers têm, entre os criminosos, geralmente a melhor reputação: Estes criminosos conseguem, por fim, fornecer ao fórum materiais produzidos, através do grooming, sobre a demanda. Isto inclui, por exemplo, determinar poses, objetos, participantes, entre outros. [11]

E, para aqueles que acreditam – como vários membros destes fóruns – que seu desejo sexual não é capaz de machucar as crianças, esta é a confirmação que os criminosos buscavam, “as crianças são seres sexuais”, como diz a assinatura de um dos criminosos operantes em um destes fóruns atualmente monitorados pela Polícia Civil do Estado de São Paulo. Eis a razão pela qual, do ponto de vista psicológico, os fóruns de produção e compartilhamento de materiais de abuso sexual infantil se viram soterrados por materiais desta categoria, tão logo a revolução tecnológica lhes concedeu a oportunidade. 

Hodiernamente, os criminosos estão onde as crianças e adolescentes também estão. Assim, nota-se que muitos desses materiais encontrados nos fóruns de produção e compartilhamento de materiais de abuso sexual infantil, para o desespero público, mantêm ainda a marca-d’água das plataformas em que se originaram: mídias e redes sociais, salas de bate-papo, plataformas de jogos [12] e aplicativos de mensageria. 

Com o aumento do acesso, por parte de crianças e adolescentes, às câmeras – principalmente através de aparelhos celulares-, os materiais de abuso sexual infantil autoproduzidos cresceram exponencialmente, a ponto de a Internet Watch Foundation – canal de denúncias de materiais de abuso sexual infantil sediado no Reino Unido – nomear o problema como “o caso da criança trancada, com um celular, no banheiro” [13]. A falta de conscientização tanto dos pais como das próprias crianças de uma tendência emergente no mundo criminoso é o que mais preocupa no atual contexto social.

Um dos vídeos mais marcantes a que estes autores tiveram acesso, trata de uma criança entre 8 e 10 anos de idade, cujo conteúdo sexual autoproduzido destinava-se a uma plataforma de rede social, uma aplicação avançada de criação e edição de vídeos com diferentes filtros que permite aos usuários compartilharem seus vídeos por transmissão ao vivo para seus seguidores em troca de bonificações que podem ser utilizadas em jogos. Da transcrição do texto, tiramos o seguinte trecho:

“Oi pessoal. Hoje vou estar gravando um vídeo para você em várias posições, mas principalmente de quatro […] Eu vou ligar o chuveiro para meus pais não ouvirem […] Deixem um like, comentem, pois estarei fazendo mais vídeo para vocês[…]”

A remuneração aqui parece ter cunho emocional, “deixem um like”- botão este que também existe nos fóruns dedicados. O perigo do botão de “like” em tempos de material de abuso sexual infantil e “comentários abertos ao público” se observa, como se vê, na esquina a frente. 

Na prática, o grooming geralmente não possui um roteiro pré-calculado. Ele evolui conforme o grau de permeabilidade da vítima e, por que não, conforme o grau de oportunidade concedido ao criminoso. Do ponto de vista emocional, o grooming explora o campo de vulnerabilidade da vítima, onde quer que ele esteja: financeiro, emocional, qualquer que seja.

Em um caso visto por estes autores no Estado de São Paulo, Brasil, descobriu-se que cerca de 400 vítimas foram aliciadas, através de um perfil falso em uma plataforma de rede social, por um colecionador e vendedor de materiais de abuso sexual infantil na Dark Web. O criminoso se passava por uma personalidade famosa no mundo “teen”, os quais as vítimas estariam potencialmente interessadas em “namorar” e colaborar, enviando imagens extremamente abusivas autoproduzidas. Tanto que, na própria Dark Web, o criminoso em questão era conhecido pela singularidade e volume de suas coleções.  

Ainda que geralmente o aliciador demonstre ter preferências quanto ao sexo ou faixa etária de suas vítimas, tampouco este roteiro é calculado: Os fóruns dedicados, aceitam, por fim, todo tipo de material. A política, nestes locais, é contributiva. Enquanto um dos criminosos presos no Estado de São Paulo, Brasil, por aliciar menores para fins de produção de material ilegal tinha vítimas meninas como foco, outro, preso no Estado de Santa Catarina, Brasil, possuía uma preferência sexual por meninos, fazendo uma média de 600 vítimas através desta mecânica. Os dois casos foram acompanhados de perto por estes autores. 

Em um terceiro caso igualmente observado por estes autores e ocorrido no interior de São Paulo, Brasil, um abusador utilizava perfis falsos em redes sociais de adolescentes do gênero masculino e feminino para obter conteúdo de exploração sexual infantil tanto de meninas quanto de meninos. Em sendo assim, observa-se que não há um perfil capaz de delimitar, com precisão matemática, o perfil do agressor nos casos de grooming.

O que se segue neste parágrafo é uma dura realidade: do ponto de vista da atuação das autoridades policiais, a falta de uma cooperação adequada com as plataformas digitais para se proceder com atividades efetivamente investigativas – com o intuito de identificar, por exemplo, perfis falsos gerenciados por criminosos – em seus canais é ainda um ponto de torção importante. 

Sabendo dessa dificuldade, os criminosos têm a certeza de estarem protegidos pelo manto de “privacidade em primeiro lugar” e beneficiados, por fim, pela política de algoritmos operantes hoje nas principais redes sociais, política essa que se soma às políticas de segurança infantil ainda deficientes que operam, principalmente, em plataformas menos “populares”. 

4. Os Gigantes Corporativos 

Em termos de Internet, muitos pais tendem a confiar exclusivamente nos moderadores de conteúdo das plataformas para manterem seus filhos seguros on-line. Enquanto os times de segurança de plataformas como Facebook [14], YouTube [15] e outros quebram a cabeça para fins de montar o quebra-cabeça por detrás do qual foi possível formar, através de grooming, extensas coleções de pornografia infantil em seus canais, as atualizações constantes das políticas de segurança das plataformas conduzem à falsa impressão de que tudo estaria, na medida do possível, sob controle. 

Os botões de ajuda, construídos para auxiliar a moderação de conteúdo em plataformas que possuem adultos (compradores) como seu público-alvo, são ainda dificilmente acessíveis à imensa quantidade de crianças que, diariamente, ainda acessam – de forma muitas vezes não supervisionada – esses mesmos canais. [16] Enquanto isso, o compartilhamento de materiais sexuais se torna normalizado pelos menores [17], que passam a colocar-se, através destes compartilhamento, em um risco sem igual: Uma vez compartilhadas, as imagens dificilmente abandonarão a Internet. Enquanto isso, o número de materiais de abuso sexual auto-produzidos encontrados pelas polícias aumenta [18]

Em geral, o que se pode afirmar é que os criminosos estão onde a vítima também está. Em assim sendo, plataformas de jogos (Roblox, Minecraft, Brawl Stars e outros) e redes sociais ou aplicativos de mensageria bastante interativas (Instagram, Facebook, TikTok, Telegram e WhatsApp  ou mesmo do TikTok),  tendem a ser alvos constantes destes criminosos – os quais tentarão iniciar, muitas vezes, ainda que “acidentalmente”, um contato sexualizado com a vítima a fim de medir o grau de resistência. 

O exemplo clássico é enviar a foto de uma de suas partes íntimas para testar a reação da criança.  É importante que não só os pais, como também as crianças e adolescentes sejam devidamente instruídos para poderem identificar estes sinais.  

Em percebendo isso, as principais plataformas de rede social e de jogos iniciaram, junto às suas equipes de segurança, uma ampla revisão em seus protocolos e políticas internas de moderação, uma tentativa de conter o avanço descomunal deste tipo de prática dentro de seus canais. 

Sabendo disso, os criminosos passaram a utilizar essas plataformas apenas como “pescarias”, locais em que se identifica a vítima em potencial, conduzindo-a em seguida a uma plataforma menos monitorada como é o caso de alguns aplicativos de mensageria. Tal solicitação, faça-se por dito, é um dos muitos sinais vermelhos que devem ser imediatamente identificados.

5. Considerações jurídicas preliminares

Em matéria penal, o grooming se tornou, sem dúvida alguma, um tema bastante complexo. E, para fins de se poder analisá-lo de acordo com a metodologia legal adequada, é necessário fragmentá-lo em algumas considerações relevantes. Ainda que grande parte dos processos de grooming resvalem, efetivamente, na produção guiada de materiais de abuso sexual infantil, estes dois conceitos não se confundem, senão vejamos:

Existe, no ordenamento jurídico brasileiro, uma conduta penal tipificada pelo Art. 241-D do Estatuto da Criança e do Adolescente que consiste em aliciar, por qualquer meio, criança com o fim de praticar com ela ato libidinoso. Eis os primeiros sinais de uma tipificação que independe, por fim, do encontro ou não de qualquer material sexual. 

Todavia, vez que a lei penal interpretar-se-á literalmente, existe efetivamente uma questão hermenêutica por detrás da pergunta sobre como se deve interpretar o dito “com os fins de com ela praticar ato libidinoso”. Há duas saídas neste caso:

​​A primeira delas é interpretar o Art. 241-D do ECA de modo que a finalidade de provocar o envio de materiais de cunho sexual por parte da criança (conforme se verá adiante) seja suficiente  para fins de configurar o fim libidinoso da​​ conduta – isto é, o propósito específico. Seria desnecessário, assim, o fim de praticar ato sexual mediante contato físico com a criança para fim de se configurar a conduta do Art. 241-D. Bastaria, neste caso, que a conduta tivesse a simples finalidade de instrumentalizar a criança (através de imagens) para os fins libidinosos do autor. 

A segunda delas é interpretar a solicitação para envio de materiais de cunho sexual  com base no crime do Art. 217-A do Código Penal (estupro de vulnerável), para a qual a questão já se torna mais polêmica. Afinal, aceito o Art. 217-A, a conduta somente estaria tutelada no momento em que as fotografias foram, enfim, enviadas, momento no qual o ato sexual ter-se-ia tido como perfeito. No mais, a discussão doutrinária aqui sobre coisas como a constituição de tentativa, desistência voluntária e outros elementos da Parte Geral imbrica por campos pouco claros. 

A imputação do estupro de vulnerável a distância independe, também, do encontro de qualquer material sexual. A título de curiosidade, esta foi exatamente a solução francesa para, justamente, os casos de live-streaming de abuso sexual de menores. [19]

Ínsito mencionar que existe, igualmente, uma lacuna jurídica explícita com relação ao fato de que o aliciamento para fins de praticar ato libidinoso somente será considerado criminoso quando a vítima for, nos termos do Estatuto da Criança e do Adolescente, criança (Artigo 241-D do ECA) e, consequentemente, menor de 12 anos (Artigo 2.º do ECA). Segundo os dados da Internet Watch Foundation [20] – organização britânica que se ocupa, já a mais de uma década, em mensurar estes dados e receber denúncias correlatas -, cerca de 80% dos materiais de abuso sexual autoproduzidos vistos pelo canal de denúncia em 2020 retratavam vítimas entre 11 e 13 anos, o que coloca a legislação brasileira em um limiar que é, no mínimo, perigoso, já que deixa a deriva justamente a faixa etária que parece ser, segundo as observações feitas por estes autores em campo, a preferida dos groomers brasileiros.

6. Conclusão

Em suma, o presente artigo não tem a pretensão, e nem poderia ter, de exaurir um assunto tão complexo, não obstante, tem a pretensão de iniciar uma discussão urgente: é necessário encontrar, dentro do ordenamento jurídico brasileiro, um espaço adequado para o grooming e, se for o caso, ampliar discussões legislativas para a tipificação penal específica desta ação delitiva. Fato é que, com os fóruns de compartilhamento e distribuição de materiais de abuso infantil repletos de materiais produzidos dessa maneira, ignorar o problema não é uma solução. O debate jurídico não termina aqui. Inicia-se, somente.

 

7. Referências Bibliográficas: 

[1] ​Terminology Guidelines for the Protection of Children from Sexual Exploitation and Sexual Abuse Adopted by the Interagency Working Group in Luxembourg, 28 January 2016. ECPAT International​

[2] Segundo uma reportagem feita pelo jornal britânico The Telegraph, o Instagram assistiu, em três anos de análise, um aumento de 70% dos casos de grooming infantil ocorrendo em seus canais. Ver: Hymas, Charles. Instagram fuels 70 per cent rise in online grooming of children. The Telegraph. 24 de agosto de 2021. Acessado em: 26 de Agosto de 2021. Disponível em:https://www.telegraph.co.uk/news/2021/08/24/instagram-fuels-70-per-cent-rise-online-grooming-children/

[3] Segundo o reporte anual da Internet Watch Foundation, 68,000 dos conteúdos de abuso sexual infantil analisados pela hotline inglesa em 2020 (44% do total) eram compostos de material de abuso sexual autoproduzidos.; Trend: ‘Self-generated’ content. IWF Annual Report 2020. Acessado em: 13 de julho de 2020. Disponível em: https://annualreport2020.iwf.org.uk/trends/international/selfgenerated 

[4] Christofoletti, Carolina. CSAM Dark Web yellow submarines moored in Surface Web’s quays. Linkedin. 24 de agosto de 2021. Acessado em: 26 de Agosto de 2021. 

[5] Os casos de livestreaming são a chamada produção de materiais de abuso sexual infantil por demanda, em plataformas de transmissão simultânea de vídeo – geralmente, mediante pagamento. Sobre os casos de livestreaming, veja: Online Sexual Exploitation of Children in the Philippines: Analysis and Recommendations for Governments, Industry, and Civil Society. International Justice Mission and ICAT. Report Summary. 2020. 

[6] Christofoletti, Carolina. How posters built their reputation: “Signed” CSAM files. Linkedin. 5 Agosto 2021. Acessado em: 26 de julho de 2021. 

[7] Grooming. Cambridge Dictionary, Acessado em: 12 de julho de 2020. Disponível em:https://dictionary.cambridge.org/us/dictionary/english/grooming

[8]Online Grooming of Children for Sexual Purposes: Model Legislation & Global Review. International Centre for Missing and Exploited Children. 1 edition. 2017.

[9] Online Enticement. National Centre for Missing and Exploited Children. Acessado em: 13 de julho de 2021. Disponível em: https://www.missingkids.org/theissues/onlineenticement

[10] Região oculta da Internet, somente acessível através de softwares específicos. 

[11] Tais como, conforme observou a Internet Watch Foundation, materiais de abuso sexual infantil produzidos com irmãos. Veja: IWF Annual Report 2020, ibidem nota [3]

[12] Sobre a questão das plataformas de jogos, veja: Gaming and Grooming: How Minecraft and Fornite could be dangerous. Innocent Lives Foundation. Acesso em: 1 de Agosto de 2021. Disponível em: https://www.innocentlivesfoundation.org/gaming-and-grooming-how-minecraft-and-fortnite-could-be-dangerous/

[13] Veja a menção da Internet Watch Foundation, em seu reporte anual de 2020 (nota [3]), sobre criminosos que conduzem crianças a inserirem objetos em suas partes intimas a fim de gravá-las, finalmente, nestas posições. 

[14] Plataforma de rede social que conta, entre as políticas de segurança, com métricas variadas que se dizem capazes de identificar comportamentos suspeitos na plataforma a fim de poder melhor proteger seus usuários crianças. Veja: David, Antigone. Preventing Child Exploitation on Our Apps. Facebook. 23 de fevereiro de 2021. Acesso em: 21 de juho de 2021. Disponível em: https://about.fb.com/news/2021/02/preventing-child-exploitation-on-our-apps/

[15] Plataforma de acesso e streaming de conteúdo que, em 2019, vivenciou um grande escândalo com relação aos comentários feitos em posts infantis. Alexander, Julia. YouTube still can’t stop child predators in its comments. The Verge. 19 de fevereiro de 2019. Acesso em: 2 de agosto de 2021. Disponível em: https://www.theverge.com/2019/2/19/18229938/youtube-child-exploitation-recommendation-algorithm-predators

[16] Christofoletti, Carolina. How much philosophy is needed to report Child Sexual Abuse Materials? Linkedin. December 2020. 

[17] Thorn Research: Understanding sexually explicit images, self-produced by children. Thorn. 9 de Dezembro de 2021. Acesso em: 2 de julho de 2021. Disponível em: https://www.thorn.org/blog/thorn-research-understanding-sexually-explicit-images-self-produced-by-children/

[18] Self-produced material: The experience and perspective of the Police. Netclean. 2018. Acesso em: 2 de julho de 2021. Disponível em: https://www.netclean.com/netclean-report-2018/insight-1/

[19] Gautronneau, Vicent; Pham-Lê, Jéremie.  Viols à distance en streaming : un Français jugé pour complicité d’agressions sexuelles. Le Parisien. 17 de julho de 2021. Acesso em: 3 de agosto de 2021. Disponível em: https://www.leparisien.fr/faits-divers/viols-a-distance-en-streaming-un-francais-juge-pour-complicite-d-agressions-sexuelles-17-06-2019-8095482.php

[20] Internet Watch Foundation, Annual Report 2020, conforme nota [3]