O BBNJ e o Tribunal Internacional do Direito do Mar: perspectivas e desafios para o futuro

Foto: Klaus Stiefel (Flickr)

O início do ano de 2023 foi marcado pela conclusão do novo Tratado Internacional sobre o Direito do Mar. Entre os dias 20 de fevereiro a 3 de março de 2023, ocorreu a Quinta Sessão da Conferência Intergovernamental sobre um instrumento internacional juridicamente vinculativo ao abrigo da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar sobre a conservação e utilização sustentável da diversidade biológica marinha de áreas além da jurisdição nacional (Resolução n. 72/249 da Assembleia Geral da ONU), que resultou na criação do “Acordo sobre a Conservação e a Gestão Sustentável da Biodiversidade Marinha em Áreas além da Jurisdição Nacional” (BBNJ, na sigla em inglês).

O BBNJ é resultado de um trabalho desenvolvido no âmbito das Nações Unidas (ONU) entre os anos de 2018 e 2023. Foram cinco sessões da Conferência com diferentes negociações, aos efeitos de concretizar um instrumento jurídico internacional como o BBNJ, que dispõe um conjunto de regras para a conservação e uso sustentável da biodiversidade marinha em áreas além da jurisdição nacional, ou seja, em áreas que não estão sob a soberania de nenhum país em particular. Um dos pontos mais importantes do BBNJ é a criação de um mecanismo de implementação e cumprimento do tratado por meio de um arcabouço institucional robusto (Part VI Institutional Arrangements) e do endereçamento ao Tribunal Internacional do Direito do Mar (ITLOS, na sigla em inglês) de questões controversas relacionadas à biodiversidade marinha em áreas além da jurisdição nacional.

Destaca-se que o ITLOS é um Tribunal Internacional criado pela Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar de 1982 (UNCLOS, na sigla em inglês) para lidar com questões jurídicas relacionadas ao mar. É composto por 21 juízes independentes eleitos pelos Estados Partes da UNCLOS, que têm mandato de nove anos e não representam seus países de origem. Forte nisso, o papel do ITLOS no contexto do BBNJ será o de interpretar e aplicar as disposições do tratado, bem como resolver disputas que surgirem entre os Estados Partes. Isso inclui questões como a interpretação das obrigações de conservação e uso sustentável da biodiversidade marinha em áreas além da jurisdição nacional, a proteção de ecossistemas vulneráveis, a exploração de recursos genéticos marinhos, entre outros temas relacionados.

Não obstante, o ITLOS passa a deter o poder de emitir ordens, decisões e opiniões consultivas para os Estados Partes relacionados ao BBNJ. Isso garante que as obrigações estabelecidas pelo tratado sejam efetivamente cumpridas e que as disputas sejam resolvidas de maneira justa e imparcial. Em suma, o BBNJ representa um avanço significativo na proteção da biodiversidade marinha em áreas além da jurisdição nacional e consolida a relevância do ITLOS como um mecanismo para as disputas internacionais, especialmente considerando que o artigo 55 parágrafo 4º do BBNJ elenca o ITLOS como um dos meios para a solução pacífica de controvérsias sobre a interpretação ou aplicação do novo acordo do mar. A possibilidade de aceder ao ITLOS foi estendida inclusive aos Estados não partes da UNCLOS, os quais estão facultados a escolher o tribunal como foro de solução de controvérsias por meio de declaração escrita no momento da assinatura, ratificação, aprovação, adesão ao BBNJ, ou em a qualquer momento depois disso.

Controvérsias internacionais podem ter as mais variadas causas. Está, porém, no fundamento dos compromissos internacionais tentar impedir que surjam conflitos entre Estados e, quando isto não seja possível, buscar a resolução por meios amistosos.

Nem sempre esta foi uma tônica, contudo. As quatro Convenções de Genebra sobre o Direito do Mar não contiveram artigos sobre a resolução de disputas por meios arbitrais ou judiciais. O receio de interpretações unilaterais, a desigualdade entre as partes e a prevenção de conflitos impulsionaram[1], nas negociações que se sucederam, a elaboração de dispositivos específicos relativos à solução pacífica de controvérsias na UNCLOS, inserindo, portanto, a agenda no panorama de resposta à humanidade ao uso da força no âmbito internacional.

Nesse sentido, a UNCLOS prevê que as controvérsias relativas à interpretação ou aplicação das disposições da Convenção devem ser solucionadas por meios pacíficos, devendo as partes escolherem caminhos que viabilizem um consenso, seja por meio de acordos, troca de opiniões e negociação, conciliação, ou qualquer outro instrumento. Caso a controvérsia não tenha sido solucionada mediante a aplicação desses instrumentos, o Tribunal Internacional do Direito do Mar apresenta-se como um meio essencial para a solução das controvérsias relativas à interpretação ou aplicação da Convenção, dispondo de jurisdição contenciosa e consultiva.

Por certo que o tema dos procedimentos relativos à resolução de controvérsias também foi sensível ao BBNJ. Destaca-se, nas linhas introdutórias, uma clara busca por alinhamento com a UNCLOS ao destacar que as partes devem cooperar a fim de prevenir conflitos e que, caso estes existam, as partes obrigam-se a solucioná-los por meios pacíficos. Registra-se também que os litígios relativos à interpretação ou aplicação do acordo serão resolvidos conforme as disposições para a resolução de litígios previstas na Parte XV da UNCLOS, incluindo-se e destacando-se especial papel ao Tribunal Internacional do Direito do Mar (art. 55).

Em outros termos, reforça-se aqui o papel do ITLOS não apenas às disputas que se relacionam às tradicionais delimitações dos espaços marítimos sob jurisdição nacional, mas também para aquelas controvérsias que não necessariamente relacionam-se aos direitos soberanos ou jurisdição sobre áreas terrestres ou marítimas, o que denota uma integração dos mecanismos de solução de controvérsias sob uma base cada vez mais sólida que é o arcabouço jurídico-normativo que rege o direito do mar.

Seguindo nessa linha, além das diversas possibilidades de solicitação de opinião consultiva previstas no regulamento do ITLOS (artigo 138 do Regulamento Interno), uma nova via de acesso é estabelecida com o advento do recente Tratado do Alto Mar. De acordo com o artigo 48(6) do BBNJ, a Conferência das Partes (COP) – arranjo institucional que sustenta o acordo – pode solicitar ao ITLOS parecer consultivo sobre uma questão legal que envolva o BBNJ e a respeito de qualquer assunto dentro de sua competência.

A Conferência das Partes será responsável por funções necessárias à implementação do tratado, dentre as quais: adotar decisões e recomendações (artigo 48.5, a); revisar e facilitar a troca de informações relevantes (artigo 48.5, b); e promover a cooperação e a coordenação com outros instrumentos e regimes jurídicos relevantes, assim como com outros órgãos internacionais, visando à promoção da coerência entre os esforços para a conservação e a utilização sustentável da diversidade biológica marinha de zonas fora da jurisdição nacional (artigo 48.5, c). Ressalte-se que tal como nas COPs[2], em geral, a Conferência das Partes do BBNJ terá papel relevante na concretização dos princípios, regras e dos dispositivos previstos no tratado, atuando no auxílio de sua implementação, em outras palavras, funciona como uma estrutura de concertação em encontros periódicos[3].

É de destacar que opiniões consultivas emitidas por cortes e tribunais internacionais, em sua essência, representam o entendimento do órgão jurisdicional que, embora desprovidas de caráter vinculante[4], desempenham um papel importante no desenvolvimento do direito internacional, ao passo em que interpretam a legislação existente, elucidam obrigações e expectativas de direito no campo do direito internacional e influenciam no comportamento de Estados[5]. E a matéria ainda ganha maior relevância quando se considera o posicionamento inovador do ITLOS[6] de conferir à opinião consultiva efeito jurídico – ou seja, reconhecimento como fonte de direito[7].

É diante desta perspectiva que o BBNJ já nasce como uma peça de engrenagem fundamental para o regime jurídico do mar inaugurado desde a UNCLOS. A integração dos mecanismos de solução de controvérsias já existentes na tutela compartilhada das áreas marinhas além da jurisdição nacional permite cada vez mais a sistematização normativa do direito internacional do mar. Somado a isso, o BBNJ não deixou de trazer expresso em suas disposições aquele que é o vetor da proteção jurídica internacional dos mares: o princípio do patrimônio comum da humanidade (artigo 5, princípios gerais e abordagens). Desse modo, a contínua evolução do tratamento jurídico da matéria dependerá da evidenciação fidedigna dos preceitos jurídicos que compreendem este princípio. E para isso, o ITLOS terá importante papel através da sua jurisprudência.

[1] TORRES, Paula Ritzmann. O Tribunal Internacional do Direito do Mar: Funcionamento, Jurisdição e Jurisprudência. Belo Horizonte: Editora Arraes, 2019, p. 68.

[2] Conferências das Partes, ou COPs, são comuns em tratados sobre meio ambiente, geralmente adotados por meio da técnica de convenções-quadro, a exemplo da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (1992), a Convenção sobre Diversidade Biológica (1992), entre outros.

[3] ARBOUR, Jean-Maurice. LAVALLÉE, Sophie. SOHNLE, Jochen. TRUDEAU, Hélène. Droit international de l’environnement. 3ed. Montréal: Éditions Yvon Blais, 2016, p. 65.

[4] ADVISORY OPINIONS. In: Max Planck Encyclopedia of Public International Law. Oxford Public International Law, Oxford University Press. Hugh Thirlway. 2006. Disponível em: <https://opil.ouplaw.com/display/10.1093/law:epil/9780199231690/law-9780199231690-e4>. Acesso em: 31 mar 2023.

[5] MAYR, Teresa F. MAYR-SINGER, Jelka. Keep the Wheels Spinning: The Contributions of Advisory Opinions of the International Court of Justice to the Development of International Law. Heidelberg Journal of International Law, v. 76, n. 2, 2016, pp. 425-450, p. 446 e 448. Disponível em: <https://www.zaoerv.de/76_2016/76_2016_2_a_425_450.pdf>. Acesso em: 31 mar 2023.

[6] INTERNATIONAL TRIBUNAL FOR THE LAW OF THE SEA. Press Release. Dispute concerning delimitation of the maritime boundary between mauritius and maldives in the indian ocean (Mauritius/Maldives). 28 January 2021.

[7] CONTESSE, Jorge. The Rule of Advice in International Human Rights Law. In: BRADLEY, Curtis A.. HELFER, Laurence R. (Ed.). American Journal of International Law. V. 115, n. 3. Cambridge University Press, 2021, pp. 367–408, p. 375. Disponível em: <https://doi.org/10.1017/ajil.2021.22>. Acesso em: 28 mar 2023.