100 anos de Paulo Freire: por luta e esperança na educação e divulgação científica

O painel CEFORTEPE - Centro de Formação, Tecnologia e Pesquisa Educacional Prof. "Milton de Almeida Santos", em Campinas/SP, faz uma representação do educador Paulo Freire. Créditos: Luiz Carlos Cappellano. Fonte: Wikimedia Commons.

BALBÚRDIA retrô: estamos publicando no site textos divulgados exclusivamente nos nossos números digitais anteriores. O texto do egresso do PIEC Rafael Vitame Kauano, divulgado no número 3, é uma homenagem ao centenário de Paulo Freire, comemorado em 2021.

“Só a esperança que nasce do hoje e no hoje desta luta confere sentido ao futuro, não como vaguidade alienada ou como algo predeterminado, mas ao futuro como tarefa de construção, como 'façanha da liberdade'”

(Paulo Freire, 1981)

Oi prazer, me chamo Rafael Vitame Kauano! Sou doutor em Ensino de Ciências pelo PIEC-USP, professor temporário na FE-USP atuante nas disciplinas de Metodologia de Ensino de Ciências e Biologia. Biólogo e ex-zoólogo de invertebrados convicto, encontrei na Educação em Ciências um campinho para preencher vazios outrora dados pela vida acadêmica. Trabalhei em minha tese com as articulações entre Aprendizagem Situada, Marx e Paulo Freire na investigação da prática de manejo de espécies invasoras como meio de aprendizagem sobre invasões biológicas em seus múltiplos aspectos – sociais, biológicos e políticos. Assim, me conecto com Freire e abro caminhos para meus estudos com CTSA e a articulação entre Educação Popular e Divulgação Científica que vem sendo desenvolvida dentro do coletivo Embraza.

01 de agosto de 2022 | 10:00

É com muita satisfação que escrevo este texto sobre Paulo Freire (1921 - 1997), cidadão brasileiro e do mundo que muitos chamam de “o andarilho da utopia”. Seu pensamento, sintetizado em sua vasta produção bibliográfica, é sem dúvidas uma das maiores contribuições teóricas e metodológicas para os estudos e práticas em educação por todo o planeta, nas diferentes (inter)disciplinas, da alfabetização, à formação profissional. Aqui, não pude deixar de reservar as primeiras linhas para que, ainda de forma genérica, reafirmar que estamos falando de um dos mais vívidos legados do Brasil para o mundo, que demonstra, sobretudo, a grandiosidade de um povo que tem a cada dia sua alegria e esperança roubadas por um projeto nefasto de nação - uns dizem verde amarela, eu digo cinza: cor de mato queimado, de corpo cremado e de uma vida sem esperança. 

À sombra desse imperioso projeto, que traço laços - não paralelos - entre Freire e a educação e a divulgação científica. Ora, se não faz parte de sua agenda o revisionismo histórico, cultural e científico. Ademais, vemos que esse projeto necropolítico, tal como se apresenta, nada mais é que a versão pouco palatável de uma mesma engenharia secular subserviente às elites intelectuais e econômicas ocidentais que, quando não sobrepostas, são oriundas de mesma raiz imperialista, mercantil, escravocrata e patriarcal.

Portanto, conectar-se ao pensamento freireano não é urgência apenas de uma reação ao negacionismo científico institucionalizado, mas também ao elitismo, neoliberalismo,  desenvolvimentismo, cientificismo e determinismo biológico - cofatores das opressões de gênero, sexualidades, classe, raça e capacitistas - forças históricas materializadas em uma sociedade opressora e normatizadora na qual se insere o trabalho científico e projetos educacionais em lealdade, conformidade ou reação.

É na reação que Freire se situa. Nas primeiras palavras da célebre Pedagogia do Oprimido (2018), Freire dedica sua obra aos “esfarrapados do mundo e aos que neles se descobrem e, assim descobrindo-se, com eles sofrem, mas, sobretudo, com eles lutam”. Posso afirmar, com o entusiasmo de um jovem educador e pesquisador, que nessas poucas palavras está a síntese de toda a teoria educacional freireana. 

As pessoas esfarrapadas, oprimidas, silenciadas e seduzidas pelo fatalismo - projeto domesticador - deverão ser a partida de qualquer projeto educacional revolucionário - não somente um currículo determinado por sábios especialistas, tampouco apenas a comunicação de métodos, resultados e discussões de trabalhos científicos. Logo, é na história das pessoas educandas forjada em estruturas opressoras, que pessoas educadoras podem reconhecer o chão em que se pisa, onde habitam os reais sentidos do conhecimento científico. Esse é o primeiro ato de humildade dentro da práxis educativa que irá abrir caminhos à dialogicidade, pela qual almejam-se consciências críticas de suas realidades em um processo político pedagógico dialético, ao mesmo tempo circular, entre pessoas educadora, educanda, conhecimentos e o mundo. Por isso, em uma perspectiva freireana, a educação configura-se enquanto um fazer político e humanístico.  

É nesse fazer-aprender político e humanístico que desvelam-se cotidianos a serem descodificados por todas as pessoas envolvidas no processo. Tomo aqui como base o coletivo Embraza Ciência de educação e divulgação científica popular no qual faço parte enquanto um dos membros fundadores. Primeiro, trabalhamos a partir dos temas geradores e palavras geradoras propostos por Freire (2018); temas que emergem de dada realidade a partir de um processo de investigação temática feito por uma equipe de pessoas educadoras posta em diálogos com pessoas educandas localizadas em determinado tempo-espaço, que assumimos aqui como territórios - incluindo a diversidade do ciberespaço - a serem desvelados com compromisso político e ético, portanto humanístico. 

Partindo desse pressuposto, buscamos em várias esferas compreender um problema central do nosso presente: a pandemia da COVID-19. Considero esse ponto importante para a compreensão da magnitude da educação e divulgação científica pautada em Freire, pois apesar de termos consensos científicos universais sobre o coronavírus e seus estudos filogenéticos, infectológicos, patológicos e epidemiológicos, a pandemia, enquanto um processo dinâmico e determinada por fatores sociais, não assume a tal posta neutralidade e universalidade científica representadas em curvas perfeitas de modelos estatísticos. A pandemia é diversa e se desenvolve enquanto processo multideterminado por contradições histórico-culturais em contextos diferentes; essa que está para nossos povos indígenas é completamente diferente da pandemia que se constitui para mulheres cis, trans e travestis trabalhadoras sexuais ou a que se impõe sobre pessoas trabalhadoras das quebradas de uma grande metrópole como São Paulo. Portanto, assumir um caminho de educação e divulgação sem olhar para tais especificidades do Sul Global - conceito de Boaventura Souza Santos para designar países oriundos de processos colonizadores e em desenvolvimento - é nada mais do que impor a autoridade de um conhecimento higienizado e antidialógico. 

As contradições específicas, requerem diálogos e estratégias específicas. Nesse ponto entendo que o tema gerador não é a pandemia, mas as pandemias que estão representadas em nosso trabalho no Embraza na palavra geradora investigada para se promover debates amplos e diversificados em suas vozes: as máscaras PFF2. Freire, em sua obra “A importância do Ato de Ler: em três artigos que se complementam”, traz a conceitualização de alfabetização como um processo dialógico e de relação intersubjetiva objetivando “entender o que se lê e escrever o que se entende” e com implicações na “autoformação da qual pode resultar uma postura atuante do homem em seu contexto” (FREIRE, 1989, p. 41). Aqui a palavra máscara, mais especificamente máscaras com certificação PFF2 é tomada como o objeto científico e tecnológico foco de alfabetização científica, a ser compreendido, entendido, apropriado com seus significados ampliados pela potencialização da leitura da palavra pela ação transformadora em contextos complexos e diversificados. Mais adiante, veremos que a ação não se resume apenas ao uso de máscaras de melhor qualidade.

Mas há de se ressaltar que nem tudo são flores. Falar de um projeto que surge com entusiastas das construções teóricas freireanas não é o suficiente para que criemos uma cultura de valorização de nossa maior referência teórica para o mundo. Desafio a todas as pessoas leitoras, em especial as que estão na área da educação em ciências, com um questionamento: o quanto fomos oportunizados em nossos processos formativos a conhecer de forma mais elaborada as teorias de Paulo Freire? Como nossas práticas, TCCs, dissertações e teses estão balizadas com contribuições freireanas? Deixo claro que isso não é um julgamento, mas um convite a uma reflexão pela qual questiono: em terra de Paulo Freire, a educação em ciências, salvo em grupos que se aprofundaram nesse debate, por exemplo, os oriundos de pesquisadores como Demétrio Delizoicov, José Angotti e Marta Pernambuco, ainda é reativa em se trazer profundidade teórica de seu pensamento, limitando-se por muito em vagas citações e elaborações superficiais; “colocar para dizer que tem”. Justifico: a metodologia de Freire é dialógica mesmo em sua construção teórico-epistemológica, seus preceitos como dialogicidade, consciência, práxis, ética, política, comprometem-se e muito com a diversidade de referências e teorias comumente usadas por nós educadores e pesquisadores em educação e divulgação científica; e nesse sentido muito vem sendo feito como a articulação entre o enfoque Ciência-Tecnologia-Sociedade-Ambiente (CTSA), ensino por investigação, educação não formal e, mais recentemente, divulgação científica.

Nesse percurso, assumo enquanto compromisso pessoal de docente na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP), trabalhar no tempo que por lá estiver, já que estou como professor temporário - diga-se precarizado - elementos teóricos freireanos na educação em ciências nas licenciaturas de ciências biológicas e pedagogia. Trago em minha práxis pedagógica, como principal referencial, a articulação entre a educação CTSA e o pensamento de Paulo Freire na construção de uma proposta latino americana de se pensar/fazer a educação em ciências. Destaco, para além de Delizoicov, Angotti e Pernambuco (2002) e seus respectivos trabalhos, as contribuições de pesquisadores como o, já falecido, Wildson Santos e Décio Auler, Christiane Muenchen e Simone Gehlen. Um caminho que, ao meu entender, deveria ser tomado, ao menos em disciplinas optativas ou eletivas, em todas licenciaturas que envolvem as Ciências da Natureza. 

Concluo trazendo Paulo Freire à luz de debates sobre a importância na construção de uma cultura científica pautada nas complexas realidades latino-americanas, que priorizam o compromisso ético-político para a superação das contradições e opressões históricas em uma visão que é contraposta à apresentação do conhecimento científico e tecnológico pré-determinado e (im)posto de forma bancária e anacrônica em currículos totalizadores para que em algum momento possam nortear as famosas tomadas de decisões baseadas em evidências pelo dito “bom cidadão”. Retorno à pandemia. Ela vem nos deixando claro que a cidadania, de que falamos e pela qual almejamos a partir do conhecimento científico oriundo de processos de alfabetização científica, não se resume a pequenas ações que talvez sejam satisfatórias em países preocupados apenas com regulação social. As orientações científicas para o enfrentamento da pandemia na esfera individual como o ato de vacinar-se, ficar em casa e usar máscaras, não devem e jamais serão a necessária cidadania do povo latino-americano, do nosso diverso povo brasileiro. 

Precisamos entender, enquanto educadores, pesquisadores e divulgadores, que a cidadania em um país com quase meio milhão de mortos por COVID-19 é um processo de participação e luta popular, daí a importância de um referencial educativo mobilizante, estruturante de outra cidadania, a participativa, na busca por um vasto repertório de direitos básicos ainda não conquistados em nosso país, entre eles o simples direito à vida. Vacinas, distanciamento social, máscaras são conceitos e/ou objetos mediadores que podem mobilizar o reconhecimento e apreensão crítica das opressões estruturantes de nossa história. Com isto, rumar a propostas de superação a partir de consciências críticas em um processo que Freire denomina de síntese cultural (FREIRE, 2018) - saberes, conhecimentos, vozes em diálogo - que deve ser construída em um esperançoso e mobilizante novo samba enredo que pautará uma nova realidade, de novo colorida, para as relações entre ciência, tecnologia, sociedade e ambiente que destinará a partir da presença da riqueza e diversidade de nossa sociedade uma nova proposta de soberania popular, científica e tecnológica.

Rafael Vitame Kauano - FEUSP
Doutor em Ensino de Ciências - USP
Mestre em Zoologia - UFPR
Licenciado em Ciências Biológicas - UFPR

 

Referências

DELIZOICOV, D.; ANGOTTI, J. A.; PERNAMBUCO, M. M. Ensino de ciências: fundamentos e métodos. São Paulo: Cortez, 2002.

FREIRE, P. Ação cultural para a liberdade. 5 Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981

FREIRE, P. A importância do Ato de Ler: em três artigos que se complementam. 23 Ed. São Paulo: Cortez, 1989.

FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 66 Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2018.

O Embraza é formado por um coletivo de educadoras/es e cientistas que acreditam na educação científica como um dos meios para transformação social e emancipação popular. Para nós, conhecer a ciência é entender a construção do mundo tal como conhecemos; determinado por avanços, reproduções históricas e, evidentemente, retrocessos. Além disso, não basta entender seus métodos, sua linguagem, seus produtos presentes, embora muitos destes despercebidos, de alguma forma em nosso cotidiano. Precisamos localizar a ciência e a tecnologia, entender seu uso, sintonizá-las com nossos saberes e cultura, decidir coletivamente sobre suas aplicações e pedir por alianças e diálogos entre cientistas e a sociedade trabalhadora para a construção de um Brasil justo. Assim nos apresentamos, para além de tudo, como um grupo político que acredita na educação e no poder da democratização do conhecimento científico em sintonia com a realidade do povo brasileiro, para alavancar e embrazar a construção daquilo que Paulo Freire chama de “Ser Mais”; a ciência na boca do povo é poder popular!