A democracia em nossas ações: a importância do olhar para a questão de gênero na Ciência

Determinadas brincadeiras podem influenciar meninas a julgarem que não têm lugar na Ciência. A Educação pode atuar para a superação desse estereótipo. Créditos: freepik.com

BALBÚRDIA retrô: estamos publicando no site textos divulgados exclusivamente nos nossos números digitais anteriores. No texto abaixo, divulgado no número 2, a egressa do PIEC Renata Rosenthal mostra a importância de enfrentarmos os estereótipos colocados sobre as mulheres, entre eles a da maternidade, que podem as levar a desistir de ocupar seus lugares na Ciência.

Renata Rosenthal é licenciada em Química pelo IQ-USP e mestra em Ciências pelo PIEC-USP. Trabalhou de 2004 a 2010 em escolas de São Paulo e de 2009 a 2019 em editoras produzindo materiais didáticos. Em 2020, mudou-se para Israel e atualmente continua trabalhando com Educação, pouco a pouco tentando encontrar-se na cultura e na sociedade israelense. Seu tema de trabalho do mestrado – sobre Mulheres na Ciência – rendeu diversos trabalhos interessantes e muitas oportunidades de falar sobre o tema dentro e fora da USP e de São Paulo. Nas horas vagas, é amante de vinho, culinária, café, mas sempre que possível, encontra uma forma de continuar a falar sobre gênero.

25 de julho de 2022 | 10:00

Há diversas leis brasileiras que propõem o olhar para a diversidade na Educação. Constituição Federal, artigo 206, que fala da liberdade e da pluralidade de ideias; Lei de Diretrizes e Bases para a Educação (LDB) de 1996, que também fala do respeito à liberdade; Plano Nacional de Educação (PNE) de 2014, que fala da necessidade da promoção da diversidade; Base Nacional Comum Curricular (BNCC) do Ensino Fundamental homologada em 2017, que fala da valorização da diversidade; e assim por diante.

Apesar das leis educacionais terem a diversidade como princípio, na prática ainda se tem muito a movimentar para que, de fato, tenhamos o tema realmente destacado e não repelido. Uma das discussões importantes quando falamos de diversidade é sobre a questão de gênero. É importante voltar a atenção à questão de gênero especificamente na Ciência, porque além de ela estar totalmente relacionada à Educação (desde sua origem), ela também está completamente conectada à formação humana, à concepção de ideias e de senso crítico das pessoas. Costuma-se falar que a Educação mudará o mundo, o que é verdade, mas eu ainda acrescentaria que a Ciência é capaz de andar lado a lado da Educação nessa empreitada.

Falando um pouco de história, por séculos só se permitiu às mulheres a Educação de primeiro grau e, ainda assim, voltada aos trabalhos do lar. Era proibido instruir as mulheres a ler e a aprender cálculos, por exemplo, que eram estudos direcionados aos homens.

A primeira demanda a surgir que levou as mulheres ao Ensino Superior foi no final do século XVIII, Revolução Industrial, no intuito de especializar os assalariados para manter as engrenagens do capitalismo girando. Dessa forma, cursos de formação de professores consolidaram-se no Brasil e a profissão de professor foi estabelecida como possibilidade a ser ocupada pelas mulheres, uma vez que elas estavam associadas a todas as funções relacionadas ao lar e, consequentemente, ao cuidado e ao ensino de crianças. O problema é que, a partir de então, as mulheres passaram a ocupar os cargos mais baixos da hierarquia do sistema educacional e muitos estudos mostram como isso contribuiu para fortalecer alguns estereótipos, como o da domesticidade feminina, e para a desvalorização do campo, uma vez feminizado1.

Hoje as mulheres já não são proibidas de ingressar em cursos superiores ou de trabalhar, mas ainda há uma discriminação que as direciona a determinados papeis. Há uma tendência de associação de funções supostamente “naturais” a mulheres, como se fosse da natureza das mulheres dedicar-se ao lar e às famílias, enquanto os homens são associados a papeis de instrução e de trabalho remunerado – o que culmina em estereótipos que definem “profissões de mulher” e “profissões de homem”.

Esses estereótipos acabam moldando supostos “lugares permitidos” para cada um de nós. O que se entende por “lugar de mulher” na sociedade abrange uma série de restrições, desde a forma de se vestir, falar e se comportar, até o que se espera dos desejos, da sexualidade, do corpo, das vontades, das profissões, dos cargos, da vida como um todo.

A exposição de meninos e meninas a determinadas atividades – como jogos, brincadeiras e outras situações desde muito cedo – já conduz a alguns problemas que podem influenciar meninas a acreditarem, por exemplo, que não teriam vocação para a Ciência. Assim, a Educação pode manter esse sistema em funcionamento, na medida em que muitas vezes pode não incentivar meninas e meninos da mesma forma. Claro que não é só esse o problema, há de se mudar toda uma estrutura social (que vem mudando, o que é ótimo, porém ainda há bastante para transformar); mas a Educação faz parte desse processo de maneira muito significativa, seja para contribuir com o sistema, seja para quebrá-lo.

Entre muitos desafios que enfrentam as mulheres que rompem os estereótipos a que são submetidas durante toda a vida e ingressam na carreira científica está a maternidade. Em meu mestrado2 no Programa Interunidades em Ensino de Ciências da Universidade de São Paulo (PIEC-USP), pesquisei sobre a questão de gênero na Ciência. Basicamente, meu trabalho foi entender melhor alguns dos fatores que poderiam conduzir as mulheres à desistência da área científica e que fossem obstáculos para sua ascensão às posições de maior destaque nesse campo de trabalho ou quais os mecanismos que elas possivelmente desenvolvem para permanência na carreira.

Para isso, entrevistei mulheres cientistas. O interessante foi que tanto as cientistas com filhos, quanto as sem filhos citaram, de alguma forma, a maternidade em seus relatos, o que permitiu a reflexão a respeito das posições ocupadas por elas na carreira, para além do corpo feminino – o que significa, em outras palavras, poder ser cientista (ou quem quiser ser) independente de querer ou não ser mãe. Fazendo um paralelo com justamente o ponto chave do meu trabalho, não ter que optar por ser mulher – sendo ou não mãe – ou ser cientista. E aqui é importante dizer que não se trata de ser mulher ou não em relação à feminilidade ou masculinidade, mas de questionar aquele lugar que o “ser mulher” ou o “ser mãe” pressupõe na sociedade e na carreira.

Sou egressa do mestrado do PIEC. Iniciativas como essa revista vêm para mostrar que não só temos espaço para falar sobre tudo isso, como temos a possibilidade, ainda, de homenagear todas as mães do PIEC e todas as mulheres cientistas que passaram e passam por todas as maravilhas e as dificuldades que permeiam o ser mãe e/ou ser mulher na Ciência, na Educação e na sociedade.

Obrigada às mulheres que nos ensinam todos os dias a cada vez mais abrir espaço para esse tipo de discussão para, pouco a pouco, sermos as protagonistas da mudança que tanto gostaríamos de ver no mundo.

Referências

1. SOUSA, C. P. et al. Memória e autobiografia: formação de mulheres e formação de professoras. Revista Brasileira de Educação, 1996. Disponível em: <https://www.researchgate.net/publication/283212791_Memoria_e_autobiografia_formacao_de_mulheres_e_formacao_de_professoras>. Acesso em: 17 nov. 2020.

2. ROSENTHAL, R. Ser mulher em Ciências da Natureza e Matemática. 2018. Dissertação (Mestrado em Ensino de Química) - Ensino de Ciências (Física, Química e Biologia), Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018. Disponível em: <https://teses.usp.br/teses/disponiveis/81/81132/tde-10072018-141247/pt-br.php>. Acesso em: 17 nov. 2020.