“A Reforma do Ensino Médio naturaliza a desigualdade educacional”, enfatiza o professor Fernando Cássio.

Legenda: O acesso à educação gratuita e de qualidade deve ser concedido a todos os cidadãos brasileiros, sem nenhum tipo de distinção. Créditos: freepik. Fonte: Freepik.

Em entrevista concedida à Revista BALBÚRDIA, o professor e pesquisador Fernando Cássio fala sobre a naturalização da desigualdade e o cerceamento do direito à educação gratuita evidenciados pelo Novo Ensino Médio, além de defender a revogação da reforma.

O professor Fernando Cássio é bacharel e licenciado em Química, bacharel em Ciências Moleculares e doutor em Química pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente é professor adjunto na Universidade Federal do ABC (UFABC), cargo que ocupa desde 2014, e pesquisador na área de Políticas Educacionais. Foi um dos articuladores da criação da REPU, Rede Escola Pública e Universidade. O objetivo da Rede é o de realizar estudos, pesquisas e intervenções visando colaborar com o direito à educação de qualidade e socialmente referenciada na rede estadual de ensino. Recentemente a Rede publicou o livro “Escola Pública. Práticas e Pesquisas em Educação” (Editora UFABC, 2023), que busca apresentar uma análise crítica da política dos governos paulistas na área de educação, ao longo dos últimos 25 anos. O livro pode ser baixado de forma gratuita pelo link: <https://encr.pw/W8U8E>. Iniciou sua trajetória no Ensino de Ciências e aos poucos, adentrou no debate das políticas educacionais e curriculares, no qual se especializou. Desde então, vem atuando no debate público e escrevendo textos acadêmicos, livros de divulgação, bem como textos na imprensa. Instagram: @fernandocassio 

Bate-bola da BALBÚRDIA

BALBÚRDIA: Um livro. 

Fernando Cássio: A ilusão fecunda: a luta por educação nos movimentos populares, de Marília Pontes Sposito (Hucitec / Edusp, 1993).

BALBÚRDIA: Um sonho.

Fernando Cássio: Que a gente tenha uma educação de qualidade para todo mundo. E uma preocupação de sustentar, de investir adequadamente em uma educação pública e gratuita, que dispense a existência de uma educação privada no país.

BALBÚRDIA: Uma memória como educador/militante.

Fernando Cássio: Eu tenho uma memória muito feliz, apesar do momento em que estávamos vivendo, das ocupações secundaristas nas escolas no estado de São Paulo, momento em que aprendi muito sobre a importância dos movimentos sociais na luta pelo direito à educação. E que também deu origem à REPU, que é o que hoje dá sentido à minha vida na universidade e na produção do conhecimento. 

24 de julho de 2023 | 10:00

Por Caian Cremasco Receputi, Eliani Jordana da Silva Moreira, Luciene Fernanda da Silva, Sofia Valeriano Silva Ratz

A implementação do Novo Ensino Médio (NEM), instituído pela Lei n. 13.415/2017, tem suscitado diversos debates acerca de sua alegada capacidade de melhorar a última etapa da educação básica no Brasil. Em entrevista concedida à BALBÚRDIA, o professor e pesquisador Fernando Cássio discute sobre os desafios para promover a oferta de uma educação pública de qualidade e acessível a todos. Enfatiza que o NEM aprofunda as desigualdades escolares no país e corrói o projeto distributivo do direito à educação da Constituição Federal de 1988. Na entrevista, o professor apresenta alguns problemas estruturais ocasionados pelo NEM e detalha o seu posicionamento pela revogação do NEM.

BALBÚRDIA: Como a profissão professor te ajudou no ativismo e vice-versa? E como os professores poderiam se engajar na luta pelo direito à Educação?

Fernando Cássio: Eu tenho 9 anos de carreira como professor universitário, mas também fui, ao longo de vários anos, professor na Educação Básica, então eu ainda me considero um professor da Educação Básica. Para mim, vir para a universidade e sair da Educação Básica foi um pouco dolorido; então acabei nunca saindo, de fato, da Educação Básica. Talvez este tenha sido o motivo que me levou a buscar essa carreira de pesquisa em Política Educacional: permanecer vinculado às escolas como espaços de trabalho e de reflexão. E o trabalho escolar, o trabalho pedagógico do cotidiano da escola, a despeito de todas as tentativas e formas de torná-lo solitário, sempre mais individualizado, ainda é um trabalho coletivo. Não dá para se pensar em um trabalho educativo bem feito em uma escola que não seja um trabalho coletivo.

O que nós fazemos na REPU, eu e todos os professores e professoras do Ensino Superior e da Educação Básica, supervisores e diretores que dela fazem parte, é um trabalho coletivo. A REPU foi criada por várias pessoas que se encontraram na vida, que tinham uma necessidade de trabalhar na produção do conhecimento, um conhecimento mobilizável na luta política educacional e que fosse algo prazeroso, de sentar e fazer junto. Não é só a produção do conhecimento, mas também a disputa política. A REPU foi construída neste encontro de pessoas que acreditam na educação como projeto coletivo e, portanto, também acreditam na produção do conhecimento sobre a educação como um projeto coletivo. Nesta circunstância, o conhecimento produzido terá um impacto coletivo, ele irá incidir, irá intervir na luta política, pois ele é produzido a partir de uma crença de que o conhecimento educacional serve a um projeto coletivo, que é a educação, e a uma luta coletiva, que é a luta pelo direito à educação para todos.

BALBÚRDIA: Quais são os seus apontamentos sobre o Novo Ensino Médio (NEM)?

Fernando Cássio: No dia 17/05/2023, nós tivemos o seminário “Novo Ensino Médio”, organizado pela Comissão de Educação da Câmara dos Deputados. Na primeira fila do seminário estavam o José Mendonça Filho, que foi o Ministro da Educação no Governo Michel Temer e que assinou a Medida Provisória n. 746/2016 e, ao lado dele, a Maria Helena Guimarães de Castro, que era a secretária executiva do Mendonça Filho e uma das idealizadoras do NEM. Ontem, eu vim de Brasília para São Paulo pensando no que se passou nesse seminário, no qual eu evidenciei diversos aspectos negativos do NEM.

Em linhas gerais, a Reforma do Ensino Médio é altamente corrosiva ao direito à educação no Brasil. Ela naturaliza as desigualdades educacionais; e digo isso de forma muito séria, muito responsável. A Constituição Federal de 1988 é regida por um princípio de justiça social orientado para a igualdade entre as pessoas, e ela é muito enfática: ressalta a ideia da igualdade, por exemplo, quando menciona os direitos sociais no Art. 6º, e a própria função, o objetivo fundamental do Estado brasileiro no Art. 3º que é combater as desigualdades. Assim, a nossa Constituição é muito afirmativa em relação aos princípios da igualdade: tem artigos sobre gestão democrática, autonomia universitária… além de uma série de direitos sociais e princípios de liberdade. E isso tem uma razão de ser: trata-se de uma Constituição formulada após uma Ditadura Militar, um período de cerceamento dos direitos e das liberdades. Quando nós olhamos para a educação, percebemos o que derivou desta Constituição.

Vejamos o conceito de "modalidade" de oferta educativa, por exemplo: Educação de Jovens e Adultos, a Educação do Campo, a Educação Escolar Indígena, a Educação Escolar Quilombola – todos esses aspectos de diversidade partem de um solo comum de igualdade consubstanciado na ideia de uma Educação Básica gratuita e com acesso franqueado a todas as pessoas. Sem isso não é possível pensar a diferença, a necessidade, por exemplo, de se ofertar uma escola pública com uma pedagogia de alternância para lidar com as especificidades das populações do campo que trabalham na sazonalidade das colheitas, que não pode frequentar a escola durante todo o ano letivo. Essa possibilidade só existe, pois há na Constituição a garantia da educação básica gratuita e universal. Esse é o princípio fundador. A educação é um direito social, que deve ser gratuita, acessível e ter um padrão de qualidade mínimo. É isso o que o NEM corrói. 

Na década de 1980, durante o processo de elaboração da Assembleia Nacional Constituinte, era mais viva a dicotomia entre universalização e focalização nas políticas públicas. A Reforma do Ensino Médio rompe em definitivo com a ideia de universalização. Os defensores da reforma argumentam que é conservadora a ideia de achar que todo mundo tem que ter a mesma formação escolar, mas não é disso que se trata. A questão é que todos têm que ter uma formação escolar mínima. A educação é uma política distributiva, orientada para a igualdade, busca equalizar as condições da população. O NEM rompe sistematicamente com o caráter distributivo da educação pública no Brasil, pois é uma reforma que está estruturada, do ponto de vista da legislação, para o estreitamento curricular com a justificativa de que é preciso garantir todas as escolhas e todas as diversidades. Entretanto, esta justificativa está fundamentada sobre nada, uma vez que não se estabelece a necessidade de garantir uma formação básica e generalista para a população a partir da qual seja possível, em um segundo momento, fazer escolhas, ter uma parte diversificada do currículo, disciplinas eletivas e itinerários de aprofundamento acessíveis e que contemplem as diferenças dentro dos sistemas de ensino. 

Acredito que ninguém seja contra a ideia de que o currículo escolar deva ter um aspecto de escolha e de diversidade. Porém, esta não pode ser a base do currículo, pois estamos falando de um país que possui um sistema educacional estruturalmente desigual e, se não tivermos uma política educacional voltada primordialmente à equalização, assumiremos a fragmentação curricular sobre um sistema de partida que é totalmente desigual. É deste modo que o NEM naturaliza a desigualdade. Rompe com o caráter distributivo da educação pública, fragmenta o currículo e faculta acessos diferenciados à escolarização a quem sempre teve oportunidades diferenciadas e, no limite, corrói o direito à educação consagrado na Constituição Federal de 1988.

O efeito amplificador de desigualdades da reforma do ensino médio, desta forma, não é um acidente de percurso e nem decorre de falhas de implementação ou de falta de articulação federativa para a implementação. Este é um efeito sistêmico, regular e ordinário da reforma, uma vez que ela rompe com o caráter equitativo e distributivo da educação pública no Brasil. Ao fazer isso em um sistema que já é profundamente desigual, não há um outro caminho que não seja o aprofundamento das desigualdades, com o consequente descumprimento de um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, que é a redução das desigualdades. É o Estado trabalhando contra ele próprio.

Estamos falando de uma reforma educacional pensada por pessoas que não dão o devido valor à distributividade da educação pública, que empregam falácias do tipo “é uma ilusão pensar que as pessoas terão a mesma formação”, confundindo equalização e homogeneização de forma deliberada. Quando você utiliza um “currículo flexibilizado” numa rede estadual em que todos os alunos estudam por uma mesma apostila, isto é homogeneização, o que não tem nenhuma relação com equalização. 

Até o discurso da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) sobre a garantia do “direito de aprender” (tenho sérias restrições a essa ideia, já que tal direito não é definido juridicamente e, portanto, não suplanta o direito à educação), é calcado numa ideia de equalização. O NEM, deste modo, entra em conflito até com a BNCC que, em tese, suportaria a reforma do ensino médio. A reforma do ensino médio é o pior erro educacional que presenciamos nas últimas décadas. Há quem diga que esta é a reforma educacional mais perversa já feita no Brasil, posto que é um retrocesso que nos leva de volta ao século passado; a uma época em que o ensino secundário não era universalizado. Eis a razão pela qual as propagandas do "Novo" Ensino Médio desde 2016 foram tão enfáticas em afirmar que a reforma traria a educação brasileira para o século XXI.

Isso, é claro, vai muito além do processo de elaboração da Medida Provisória no governo Temer e dos atores privados (fundações e institutos empresariais) que estavam lá em 2016 e que continuam junto ao Ministério da Educação (MEC) agora. Mais do que a formação de mão de obra desqualificada e barata (ela também tem esse objetivo), a reforma modifica a concepção de educação como bem público, acessível a todas as pessoas.

BALBÚRDIA: Na sua opinião, é preciso revogar ou é possível reformar o Novo Ensino Médio? 

Fernando Cássio: Essa reforma é irreformável, não existe a possibilidade de ser reformada. Por tudo o que já expus, afirmo que não há outro caminho para essa reforma que não seja a produção e o aprofundamento de desigualdades – a menos que isso não seja um problema, evidentemente. No seminário da Câmara dos Deputados, o ex-ministro da Educação que assinou a MP n. 746/2016 me disse: “Olha, os problemas apontados por você não são desta reforma, eram problemas estruturais que já existiam na educação brasileira”. A minha resposta a ele foi “sim e não”. Sim, a educação brasileira é estruturalmente desigual, mas a reforma definitivamente piorou esses problemas.

Ou seja, se existem desigualdades estruturais na educação brasileira, devemos aceitar uma reforma educacional que piora objetivamente esses problemas? Se a resposta for positiva, posso afirmar que aquela pessoa é movida por princípios de justiça e defende um projeto societário diferentes dos meus. Entendo que uma política pública não pode impedir o Estado brasileiro de realizar a sua função precípua de reduzir desigualdades. Como pesquisador, rechaço todos os argumentos dos que dizem que a reforma ainda está sendo iniciada, que é preciso ter paciência, pois ainda iremos observar os seus efeitos. Os efeitos já estão aí: uma tragédia educacional sem precedentes.

Ano passado, fizemos um levantamento no estado de São Paulo e observamos o efeito da geração de desigualdades do NEM de forma muito evidente. Refizemos o estudo esse ano e vimos a mesma coisa. Não é questão de otimismo ou de pessimismo, de boa ou má-fé. É de saber, analisando a implementação de uma política que promete flexibilização curricular, ensino profissionalizante universal e expansão de carga horária sem construir uma única sala de aula, sem uma política de permanência estudantil e sem mudança substantiva e objetiva de condições de trabalho, salário e carreira de profissionais da educação, que ela não irá produzir nada do que prometeu. Não há achados inesperados nos resultados de nossas pesquisas sobre a implementação do NEM nas redes estaduais (que concentram 88% das matrículas de ensino médio no país).

Enquanto os defensores da reforma esperam que ela produza efeitos benéficos que nunca virão, quantas gerações de estudantes brasileiros passarão pela escola pública sem ter acesso ao conhecimento das ciências naturais, das ciências humanas, das artes, da cultura? A revogação do NEM é o começo da conversa, não o final.

BALBÚRDIA: Como vocês estão se articulando bastante, indo por vários locais, conversando com bastantes pessoas, nós também gostaríamos de entender como você observa a percepção de outros professores e profissionais da educação acerca do Novo Ensino Médio?

Fernando Cássio: No meio do ano passado, produzimos uma carta aberta pela revogação do Novo Ensino Médio que circulou pelo Brasil inteiro. Coletamos assinaturas institucionais de grupos de pesquisa, associações científicas, sindicatos, entidades estudantis, movimentos sociais, coletivos; e ultrapassamos 650 assinaturas institucionais, desde associações de professores indígenas de diversas partes da Amazônia até as centrais sindicais e os grandes sindicatos. Entidades e grupos de pesquisa das mais variadas matrizes teóricas e ideológicas, todo o campo educacional reprova a reforma do ensino médio. Não conheço um grupo de pesquisa, um programa de pós-graduação, uma organização estudantil, um pesquisador que trabalhe com educação e que seja favorável à reforma do ensino médio nos termos em que ela se apresenta. Não existe. Então, quem é a favor da reforma do Ensino Médio? Somente os seus formuladores vinculados ou a governos ou aos setores empresariais.

Todo mundo que sabe o que é uma escola, que frequenta a escola, que entende o que significa organizar uma escola, o cotidiano de uma escola, uma sala de aula, uma rede de ensino, sabe que essa reforma é impraticável. Ela torna os sistemas de ensino inadministráveis, ingovernáveis. O NEM tem um caráter profundamente desorganizador das redes. Desorganiza a sala de aula, a atribuição de aulas, as escolas e até os sistemas de registro e de escrituração escolar. Diante de tantos efeitos concretos, já não é mais possível falar da reforma do Ensino Médio em abstrato.

Há quem ainda argumente que “a ideia é boa, que não podemos jogar fora o bebê com a água do banho”, que é interessante ter “liberdade de escolha, a possibilidade de sonhar, de escolher os seus caminhos, de ter curso técnico na escola, de ter uma carga horária maior, de estudar numa escola de tempo integral”. Em tese, essas seriam coisas desejáveis. O problema é que essa reforma não produz nada disso, não garante nada disso; e pior: veda as melhorias e "liberdades" para quem mais precisa. 

Na prática, estamos diante de uma reforma educacional que piora a qualidade da educação dos mais pobres, que dá menos escola para quem mais precisa de escola. É nesse sentido que eu entendo que não há como fazer uma "reforma da reforma". A reforma do Ensino Médio altera a LDB em 54 lugares diferentes. Quais são os pontos do NEM que os seus defensores desejariam manter? A ampliação da carga horária de 2.400 horas para 3.000 horas letivas totais? Temos dados que comprovam que, no estado mais rico do país, as escolas estaduais não cumprem as 1.000 horas letivas anuais, seja pela falta de professores, seja porque parte do ensino é ofertada à distância e em condições precaríssimas. Os itinerários formativos esdrúxulos, com aula de brigadeiro e empreendedorismo, é um problema menor, considerando que nem mesmo a carga horária mínima vem sendo cumprida. Estamos diante de uma situação de uma oferta educativa irregular. Nem aula os estudantes têm.

BALBÚRDIA: Como os itinerários estão sendo interpretados e colocados em prática? Há diferenças entre escolas públicas de diferentes esferas, da pública e da particular?

Fernando Cássio: A primeira coisa é que o grosso das matrículas no Ensino Médio está nas redes estaduais (88%, de acordo com o Censo Escolar 2022 do Inep). Estou analisando dados de diversas redes estaduais para entender a estrutura e a oferta dos itinerários formativos. Tem rede que chama de "trilha de aprofundamento", outras, de "itinerário", "aprofundamento" ou, ainda, "componentes curriculares de aprofundamento". De toda forma, a ideia costuma ser mais ou menos a mesma.

Precisamos inicialmente diferenciar os níveis de geração de desigualdades da reforma. Existe primeiro uma desigualdade prévia importante entre as escolas privadas e as escolas públicas. E o que é o NEM na escola privada? Um pretexto para a ampliação da carga horária de atividades optativas no contraturno, que constituem novos diferenciais no mercado concorrencial das matrículas privadas. A liberdade de escolha é um dado de partida na escola privada. A reforma não altera nada de relevante na escola privada, à exceção, talvez, das condições de trabalho do professorado, sempre mais precarizadas inclusive nas particulares. Quem tira aula de Física e de Química para colocar aula de brigadeiro não é a escola privada. Nesta, se o aluno tiver aula de brigadeiro, ela será feita no contraturno em uma cozinha experimental. Na escola pública, a aula de brigadeiro tomará o lugar da aula de Sociologia. E vejam, não estou falando mal da aula de brigadeiro; brigadeiro é ótimo! Só entendo que a aula de brigadeiro não pode ser feita no lugar da aula de Física.

Para além das desigualdades entre escolas públicas e privadas, a reforma cria uma série de mecanismos de estratificação dentro das redes públicas. Estudante mais pobre e estudante de município mais pobre vai ter menos acesso ao conhecimento, vai ter menos itinerários formativos à escolha. Estamos falando de uma reforma que piora – dentro das redes públicas – as condições de escolarização de quem já era prejudicado por ter uma escola com infraestrutura mais precária, frequentada por famílias com escolaridade e renda mais baixas. Estamos falando de uma reforma que não apenas aumenta o fosso entre escola privada e escola pública, mas que cria diversos mecanismos de estratificação dentro das redes públicas, um problema muito mais relevante, já que a maioria esmagadora das matrículas de Ensino Médio está nas redes estaduais.

BALBÚRDIA: Os grupos a favor do NEM acusam aqueles que querem revogá-lo, de não apresentarem uma proposta alternativa para a educação brasileira. Gostaríamos de saber o que você pensa sobre esse argumento. Nós, enquanto professores e pesquisadores, já temos uma alternativa construída e implementada na nossa educação?

Fernando Cássio: Esse argumento é falso. No dia 16 de maio de 2023, inclusive, foi protocolado um Projeto de Lei na Câmara de Deputados de revogação da reforma do Ensino Médio e sua substituição por um outro modelo de Ensino Médio. Eu mesmo participei da elaboração do PL n. 2.601/2023, cuja existência desmonta o argumento de que não existe uma proposta alternativa. Tanto existe, que ela já foi protocolada na forma de um Projeto de Lei para tramitar na Comissão de Educação da Câmara de Deputados. Existe proposta, existem ideias e existe disposição legislativa para defender essas propostas. O autor do PL é o deputado Bacelar (PV/BA), que é vice-líder do Governo Lula na Câmara dos Deputados. Propostas existem. O que é necessário é coragem política e disposição por parte especialmente do MEC para debater o assunto com a devida seriedade.

BALBÚRDIA: Quais eram as propostas de uma educação que atenderia a maioria, como dito 88% das matrículas estão na escola pública, em detrimento de alguns privilegiados?

Fernando Cássio: Vou concentrar essa resposta em dois pontos. O primeiro ponto é o seguinte, que o PL já propõe. A lei da reforma do Ensino Médio (Lei n. 13.415/2017) estabeleceu “uma ampliação da carga horária de 3.000 horas letivas totais”. O objetivo dessa ampliação, em tese, é corrigir uma distorção histórica entre os períodos diurno e noturno (o Ensino Médio noturno tem carga horária, em média, 40% menor que o diurno). Só que a reforma estabelece algo extremamente perverso: as redes de ensino só podem oferecer para os estudantes um máximo de 1.800 horas de Formação Geral Básica, dentro das 3.000 horas. O resto são os itinerários formativos. As reformas curriculares sempre estabeleceram o mínimo de formação básica, nunca o máximo.

Ou seja, com o NEM, se alguma rede de ensino quiser oferecer mais aulas de Matemática ou Sociologia, ela não poderá. Uma das bases do PL n. 2.601/2023 é justamente estabelecer um mínimo de formação geral básica não de 1.800 horas, mas 2.400 horas, correspondente à carga horária anterior à reforma. Um princípio de não retrocesso, portanto. Isso significa que as redes de ensino podem, se quiserem, oferecer um itinerário formativo que ensina a plantar bananeira ou um curso técnico, mas precisam garantir um mínimo de 2.400 horas de formação geral básica presencial. Presencial! E este é um segundo ponto a ser considerado, já que a reforma do Ensino Médio abre a porteira e flexibiliza o ensino a distância na Educação Básica, com a mesma qualidade duvidosa do ensino remoto ofertado de forma emergencial durante a pandemia.

Quando propomos estabelecer as 2.400 horas como mínimo de formação básica presencial, entendemos que o Ensino Médio anterior é o ponto de partida. Nós não estamos falando: vamos voltar ao Ensino Médio anterior. Estamos dizendo: o Ensino Médio anterior é o mínimo necessário. A partir dele é que podemos diversificar, criar, flexibilizar, autorizar ensino a distância, fazer itinerário formativo. O que não pode acontecer é tirar a formação geral dos estudantes da escola pública para colocar nada no lugar. O PL n. 2.601/2023 repõe as condições mínimas de igualdade a partir das quais as redes de ensino terão autonomia para pensar as suas estratégias de flexibilização curricular. A flexibilização não é um problema em si, o problema é suprimir a formação geral que constitui o lastro equalizador da educação básica

BALBÚRDIA: Qual o caminho para conseguirmos revogar o Novo Ensino Médio?

Fernando Cássio: Não podemos parar de protestar. O fato de termos uma consulta pública no MEC, um seminário na Câmara, uma subcomissão na Comissão de Educação para analisar a questão, um grupo de trabalho no Senado Federal. Tudo isso ocorreu em função de três elementos: 1) as pesquisas que comprovam que a reforma do Ensino Médio é deletéria para o direito à educação no Brasil; 2) a vivência prática da tragédia do NEM nas escolas públicas por estudantes, profissionais da educação e famílias; e 3) a expectativa política de desfazimento dos retrocessos dos últimos anos, materializada na eleição de um governo com perfil progressista e plataforma política democrática. É por isso que temos protestos, estudantes nas ruas, carta aberta, audiência pública, manifestações de repúdio e muitos outros movimentos na sociedade para revogar a reforma do ensino médio. 

Os governos petistas se especializaram em institucionalizar conflitos sociais com vistas à construção de consensos. A consulta pública do MEC é um desses mecanismos de institucionalização. Entendo que qualquer movimento de revogação da reforma só vai acontecer a partir de uma profunda mobilização da sociedade. Não podemos esperar que o ministro da educação vá acordar de manhã e resolver revogar a reforma do ensino médio. Ou achar que um grupo de deputados federais vá fazer isso. Os poderes Executivo e Legislativo precisam ser pressionados.

Estamos disputando com fundações e institutos empresariais vinculados a grandes interesses econômicos. E já conseguimos, é bom lembrar, tirar desses agentes privados a possibilidade de defender incondicionalmente o NEM, como vinham fazendo desde 2016. Esta é uma vitória nossa, das lutas que encampamos. Foi a nossa tenacidade que nos trouxe até aqui, e é ela que vai nos levar rumo à revogação ou, pelo menos, a mudanças profundas no conteúdo da Lei n. 13.415/2017.

O movimento aparentemente positivo do governo federal de institucionalizar os conflitos na forma de instâncias de participação social também engloba estratégias de cooptação política e de arrefecimento dos descontentamentos sociais. Precisamos nos manter firmes. O MEC começou o ano de 2023 elogiando a reforma do Ensino Médio nas redes sociais e foi achincalhado. O Governo Federal, o Legislativo, as fundações e institutos empresariais foram obrigados por nós a reconhecer os problemas da reforma que eles mesmos criaram. Então não podemos retroceder! As pessoas até podem até achar que é muito radical pensar na revogação do NEM. Mas se não fosse a pauta da revogação, nós nem estaríamos aqui tendo esta conversa.

BALBÚRDIA: Aqueles que se interessarem pelos trabalhos da REPU, como podem entrar em contato com vocês?

Fernando Cássio: Basta entrar no site da REPU: www.repu.com.br. Tem muitos materiais e o e-mail para contato. A REPU é um coletivo de pesquisa, um espaço aberto, um lugar onde se trabalha na perspectiva de uma agenda que coloca o conhecimento educativo a serviço da luta pelo direito à educação.