O Novo Ensino Médio em São Paulo e o aumento da desigualdade educacional

Legenda: Ao invés de resolver os problemas das Educação Básica, o Novo Ensino Médio na verdade amplia as desigualdades educacionais entre as escolas públicas e privadas. Crédito: macrovetor. Fonte: freepik.com.

Anike Araujo Arnaud

Anike A. Arnaud foi aluna por toda sua vida em escolas e universidades públicas. É professora de Química e foi PIBIDIANA durante a graduação onde iniciou sua paixão por eventos acadêmicos e científicos. É mestre em Ciências pela USP e doutoranda no mesmo Programa de Pós-graduação. Investiga Currículo por fascínio e Políticas Públicas Educacionais por necessidade, pois não consegue (e nem quer) desvencilhar sua formação política da pesquisa que realiza. É filha, tutora do Bauman, noiva, nerd e viciada em organização. Está ansiosa pelo momento da sua defesa de doutorado e não vê a hora de contribuir para a formação de professores em uma universidade pública.

07 de agosto de 2023 | 10:00

O Novo Ensino Médio (NEM) começou a ser implementado no Estado de São Paulo juntamente à reestruturação do Currículo Paulista, em 2020. As primeiras turmas organizadas a partir da nova estrutura iniciaram em 2021, contemplando os alunos do primeiro ano do Ensino Médio (EM). Em 2022, foi a vez das turmas de segundo ano, enquanto em 2023, alunos do terceiro sofrem os efeitos dessa Reforma.

Buscando entender como as políticas curriculares se materializam na prática e no cotidiano escolar, conduzi uma pesquisa de doutorado durante quatro anos, de 2019 até 2023. A pesquisa tinha como protagonistas professores da educação básica que ministravam aulas em uma escola do Programa de Ensino Integral (PEI) e em uma escola regular localizada na periferia da cidade de São Paulo. Durante esses quatro anos, acompanhei a rotina das escolas, entrevistei professores e gestores, participei das aulas e produzi dados que ajudassem a compreender quais ações a Secretaria de Educação do Estado de São Paulo (SEDUC-SP) utilizava para implementar o NEM nas escolas paulistas. Esse texto é fruto das discussões que realizo na tese e que tento sintetizar.

Na análise que fiz e nas discussões que realizei durante esses quatro anos, pude perceber como a SEDUC-SP implanta suas políticas curriculares e como essas têm se consolidado na prática dos professores. Mas, mais que isso, pude perceber e dialogar com a literatura da área de ensino de ciências sobre quais são os principais efeitos que essa política produz nas escolas paulistas, principalmente considerando o contexto de implementação do NEM.

Um dos primeiros efeitos, descrito enquanto a política de Reforma do Ensino Médio ainda era estruturada no Ministério da Educação, é a ampliação das desigualdades educacionais entre as escolas públicas e privadas. A fissura entre as oportunidades de acesso ao conhecimento entre esses dois modelos de escolas alongou-se até tornar-se um abismo. Enquanto em escolas públicas não há professores, estrutura física e condições materiais para que a oferta dos itinerários formativos ocorra, em escolas particulares de elite da capital paulista os alunos optam por dois itinerários de aprofundamento, além das aulas eletivas, iniciação cientifica e outras oportunidades tão propagandeadas por essas escolas. Sem falar que a Formação Geral Básica também se amplia nas escolas particulares, uma vez que o foco é o ingresso de seus alunos no ensino superior, realidade que se torna cada vez mais distante para os alunos das escolas públicas.

Há também uma latente desigualdade entre os diferentes tipos de escolas públicas coordenadas pela SEDUC-SP, principalmente entre as escolas do PEI e as escolas regulares. Às escolas PEI são destinados mais recursos e, a despeito do aumento do número de aulas de cada componente, uma maior pressão por resultados. As escolas regulares, por sua vez, recebem os alunos que a SEDUC-SP não oportunizou vivenciar esse modelo de escola “ideal”. Dessa forma, o que se percebe é a oferta de itinerários formativos variados em escolas PEI, enquanto nas escolas regulares não há professores nem para oferecer a Formação Geral Básica.

Ao acompanharmos a implementação da Reforma do Ensino Médio em escolas básicas, percebemos uma outra forma de produção de desigualdade educacional pela gestão da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo: a desigualdade entre turmas de uma mesma escola. Tal desigualdade é resultado da gestão de matrículas da SEDUC-SP que vincula uma turma de um itinerário formativo à uma turma da Formação Geral Básica, ou seja, os alunos matriculados em determinada turma do itinerário formativo estudarão com os mesmos colegas na Formação Geral Básica. Isso implica agrupar alunos com as mesmas afinidades, consequentemente, com dificuldades próximas, em uma mesma turma.

Do meu ponto de vista, esse aspecto tem ocasionado desigualdade entre estudantes dentro de uma mesma escola, pois, em uma sala de aula heterogênea é comum encontrar alunos que possuem mais afinidade a uma área de conhecimento e, em geral, tem mais facilidade em entender os conceitos abordados. Os professores encontram nesses estudantes auxílio para os colegas com mais dificuldades. Por outro lado, ao tentar homogeneizar as turmas, a SEDUC-SP também aproxima os estudantes com mais dificuldades. Esse fator dificulta o trabalho dos professores, pois precisam se desdobrar para atender um número maior de dúvidas dos alunos e explicam o conteúdo de maneira mais vagarosa. 

Esse fator implica outra forma de desigualdade entre as turmas de EM: dentro de uma mesma escola é possível perceber que algumas turmas terão acesso a mais conhecimento que outras. Por exemplo, as turmas que estão determinadas para os itinerários de Ciências da Natureza e Matemática ficam mais “a frente” no conteúdo, ou seja, os professores abordam um número maior de conceitos. Por consequência, as turmas que estão alocadas para os itinerários de Ciências Humanas e Linguagens estão “atrasadas”, o que faz os professores deixarem de ministrar alguns conteúdos.

Há ainda a ampliação das desigualdades de ensino-aprendizagem entre diferentes modalidades de EM nas escolas paulistas, principalmente com relação ao EM noturno e diurno. A expansão da carga horária no ensino noturno da rede paulista de ensino foi realizada mediante a utilização do Centro de Mídias da Educação como plataforma que substitui as aulas com os professores nas escolas. Isso implica que para parte dos alunos matriculados na rede são oferecidas aulas com professores que os estudantes não conhecem e com pouca ou nenhuma relação com o contexto de sua escola.

Ao invés de investir em aulas com interação presencial entre professor e alunos, a SEDUC-SP optou por utilizar uma plataforma onde as aulas são predominantemente expositivas, sem margem para questionamentos, com graves erros conceituais, e onde os alunos são colocados em uma posição passiva, sem o protagonismo tão ressaltado nos próprios documentos orientadores da Secretaria. Isso pode resultar não somente em maior evasão escolar, mas também no baixo aprendizado dos estudantes que cursam essa modalidade de ensino. 

Também observei que a SEDUC-SP produz desigualdades educacionais entre seus alunos, dificultando o acesso ao ensino superior, por meio de outros mecanismos, como: a ênfase no Projeto de Vida, um currículo que não faz sentido, e o aumento da carga de trabalho dos professores. 

O componente Projeto de Vida tem se tornado o centro das escolas paulistas, principalmente nas escolas PEI. Além de justificar as atividades pedagógicas, ele passou também a ser a justificativa para a escolha e direcionamento dos itinerários formativos. Esses fatores ocasionam dois aspectos observados nas escolas que acompanhei: 1) os professores atribuem ao Projeto de Vida a justificativa para ensino dos conteúdos; 2) os alunos não veem sentido em estudar conteúdos que não estão atrelados ao seu Projeto de Vida.

Essa centralidade do Projeto de Vida encontrou na implementação dos itinerários formativos um terreno fértil para a desvalorização dos conceitos abordados na Formação Geral Básica. Se a justificativa da escolha do itinerário formativo é devido ao Projeto de Vida, e o Projeto de Vida assume a centralidade das atividades da escola, não há então necessidade de aprender outros conceitos, na visão dos alunos. Os professores têm encontrado dificuldades em se desvencilhar da lógica instaurada e justificar a aprendizagem de outros conceitos não relacionados ao Projeto de Vida.

É preciso acrescentar que a SEDUC-SP sobrecarrega seus professores de maneira que eles dificilmente conseguem se envolver em atividades que promovam a solução para essas desigualdades. Por exemplo, uma das professoras que acompanhei durante a implementação do NEM, descreve que, em 2020, ministrava aulas para o primeiro do ano do EM, mas com a Reforma, ela passou a ministrar aulas tanto na Formação Geral Básica no primeiro e segundo ano, quanto em dois itinerários formativos. Isso implica que os professores precisam planejar e/ou se adequar a uma nova sequência de abordagem dos conceitos, prescrita pelo Currículo Paulista.

Por fim, busquei mostrar nesse texto como a gestão da SEDUC-SP na implementação do NEM tem produzido desigualdades educacionais entre as escolas públicas paulistas. Alguns dos fatores que destaquei me parecem possíveis de serem resolvidos, como as matrículas dos alunos e o desencontro entre os currículos da Formação Geral Básica e dos itinerários formativos. Outros fatores, no entanto, me parecem que foram implementados justamente com essa função, como o caso do Centro de Mídias da Educação que surge como proposta para levar escola de menos qualidade para a população mais pobre paulista. Além disso, a centralidade do Projeto de Vida nas escolas está associada à desvalorização dos conhecimentos que não se limitam à formação voltada ao trabalho.

Esses são alguns dos motivos que me fazem lutar pela revogação do NEM não só no Estado de São Paulo, mas em todo o território brasileiro. Lutar pela revogação de uma política fruto de um golpe político-midiático é também em defesa de uma educação transformadora, cuja desigualdade não seja a consequência.

A revogação é também necessária para que as escolas possam construir currículos baseados em suas realidades e esperanças de futuro, algo que busquei defender ao longo da tese que gerou esse texto. As escolas e os professores constroem currículos, não apenas implementam reformas e políticas acriticamente. E é nessa potência das escolas e dos professores que os escritores e editores da revista BALBÚRDIA, todos nós, depositamos nossa confiança.