Mistura de sabores e saberes: uma horta interdisciplinar

Legenda: Em tempos de redes sociais e informações na palma da mão, a iniciativa de cultivar uma horta midiatizada no Instagram é um ótimo aperitivo para compartilhar assuntos transversais sobre alimentação, botânica e relações étnico-raciais. Fonte: Elaborada pela autora (2023).

Como uma horta midiatizada pode ensinar sobre alimentação, botânica e relações étnico-raciais?

Lais dos Santos Neri da Silva

Prazer, sou Lais Neri, licenciada em Ciências Biológicas e mestra em Genética e Melhoramento. Sempre gostei de aprender e compartilhar experiências. Desde 2020, me aventuro no mundo da divulgação científica, inclusive convido você a conhecer meu trabalho no Instagram @umabiologadisse. Estou aqui compartilhando meu primeiro, de muitos que virão, textos de divulgação científica, fruto da IV Oficina de Divulgação Científica em Ensino de Ciências promovida pela Equipe BALBÚRDIA. Sem mais delongas, chegue e se aconchegue. Desejo a todos uma ótima leitura!

14 de agosto de 2023 | 10:00

O artigo intitulado “Horta com consciência negra: relato da construção e discussão de postagens para a educação das relações étnico-raciais em uma horta escolar midiatizada”, publicado na Revista de Ensino de Biologia (Acesse aqui), aborda de forma interdisciplinar o ensino de botânica, educação alimentar e relações étnico-raciais por meio da divulgação científica do projeto “Horta Escolar”, vinculado ao Departamento de Extensão e Ações Comunitárias do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (CEFET-RJ). Essa horta foi criada em 2016 e, durante a pandemia, rompeu os muros e atingiu um público diverso no Instagram por meio do perfil @hortacefet. Essa iniciativa é coordenada por duas pesquisadoras, a professora de Biologia Drª. Luciana Ferrari Espíndola Cabral e a nutricionista Ma. Juliana de Oliveira Ramadas Rodrigues, e conta também com o protagonismo de uma equipe de sete alunos do ensino médio vinculados ao CEFET-RJ.

Uma pitada de consciência negra na horta

A discussão das relações étnico-raciais em uma horta midiatizada é importante para despertar não apenas o interesse do público leigo em relação ao papel da cultura alimentar afro-brasileira, mas também para levantar esses pontos no ambiente escolar. De acordo com as pesquisadoras, essa discussão tem potencial para contribuir com a implementação da Lei nº 10.639 de 9 de janeiro de 2003 que trata da inclusão da história e cultura afro-brasileira no currículo oficial de ensino. As autoras apontam também a urgente necessidade de dar visibilidade a essas ações, ainda mais em um país marcado pelo racismo estrutural que insiste em ignorar a contribuição do conhecimento científico e cultural da população negra e afro-brasileira influenciando inclusive os nossos hábitos alimentares. 

Imagine aprender em um único lugar informações nutricionais e receitas deliciosas além de características botânicas, formas de cultivo e curiosidades das plantas de origem africana que foram trazidas e incorporadas na nossa agricultura e alimentação? Sensacional, não é? Essa é a finalidade de uma série temática intitulada “Horta com Consciência Negra” produzida durante o mês de novembro de 2021 pelos alunos do projeto e divulgada no @hortacefet. O formato das publicações atende a todos os gostos, desde o carrossel (cards em sequência com textos e ilustrações) até o reels (vídeos curtos e dinâmicos). Conforme as coordenadoras do projeto, o objetivo foi sensibilizar os alunos e o público em geral para a discussão das relações étnico-raciais na nossa cultura alimentar. 

Mãos à obra na horta midiatizada

Antes de dar vida às publicações, a equipe de alunos, juntamente as orientadoras do projeto, Drª. Luciana Cabral e Ma. Juliana Rodrigues, debruçaram-se na leitura e na discussão do artigo intitulado “Navegando contra a corrente: o papel dos escravos e da flora africana na Botânica do período colonial” (Acesse aqui). Depois de realizar esse mergulho histórico, seguiu-se para o próximo passo: criar um selo “horta com consciência negra” exclusivo para registrar as futuras postagens que trazem à mesa uma espécie de planta de origem africana. 

É nessa perspectiva que foram apresentadas quatro plantas de origem africana em posts no formato carrossel. O cardápio contou com a presença do inhame, melancia, dendê e tamarindo. Conforme o levantamento de dados realizado pelas autoras até o dia 8 de março de 2022, o inhame foi campeão de curtidas, a melancia se destacou nos compartilhamentos e salvamentos, o tamarindo teve maior alcance de contas e o dendê trouxe mais seguidores para a horta midiatizada. Mas nem só de carrossel vive o @hortacefet há ainda os famosos reels, ou pequenos vídeos, com receitas de acarajé, vatapá e moqueca

Esses vídeos foram elaborados a partir de oficinas virtuais que tinham como objetivo discutir a presença da cultura afro-brasileira nas preparações culinárias além de desconstruir o preconceito de que alimentos de origem africana são mais gordurosos e pouco saudáveis. Para quem está disposto a experimentar novos sabores, foi realizado também uma oficina de guisado de folha de abóbora com os alunos para mostrar que partes alimentícias não usuais podem ser incorporadas na cultura alimentar. E não para por aí, conhecimento bom é conhecimento compartilhado, não é? Então chegou a vez da “horta divulga” que, segundo as coordenadoras do projeto, a finalidade é indicar outros perfis que trabalham com abordagens da culinária afro-brasileira no ambiente escolar. Por fim, a expressão “tem caroço nesse angu”, cuja origem está associado a um truque de sobrevivência dos negros escravizados no Brasil que consistia em esconder pedaços de carne e torresmos embaixo do angu, foi tema do quadro “horta explica”. O preparo de todas essas postagens engajou o público e o comentário de uma seguidora “Amando saber tantas informações legais que desconhecia” revela que a horta midiatizada está cumprindo sua missão: levar discussão das relações étnico-raciais à mesa das pessoas. 

Uma horta sem fronteiras

O protagonismo dos alunos na execução do projeto @hortacefet foi um tempero singular na implementação da Lei 10.639/03, no ambiente escolar. Trazer a interdisciplinaridade na construção de uma horta, seja ela física ou midiatizada, é fundamental para superar a visão fragmentada da ciência em pequenos potes. Sem dúvida, essa experiência oportunizou maior diálogo sobre as contribuições da cultura negra na nossa alimentação. Essa proposta pode ser adaptada na educação básica, nos cursos de formação e capacitação de professores e em projetos socioculturais que contemplem o público leigo, conforme o contexto e recursos disponíveis. Ampliar os horizontes e estimular o pensamento crítico da população em relação à influência africana nos hábitos alimentares do nosso país é crucial. Espero que a leitura deste texto de divulgação científica tenha deixado um gostinho de quero mais e convido você a conferir não somente o perfil indicado anteriormente, como também o artigo original na íntegra.  

Segue a referência completa do artigo!

CABRAL, Luciana Ferrari Espíndola; RODRIGUES, Juliana de Oliveira Ramadas. Horta com consciência negra: relato da construção e discussão de postagens para a educação das relações étnico-raciais em uma horta escolar midiatizada. Revista De Ensino De Biologia Da SBEnBio, v.15, nesp. 2, p.656–670, 2022.  https://doi.org/10.46667/renbio.v15inesp2.754.