“Não existe limite para o aprendizado. E é claro que é possível recuperar o ‘tempo perdido’ [na pandemia]”, diz Daniel Cara, professor da Faculdade de Educação da USP.

Legenda: No Brasil, argumentos contrários às medidas de controle da COVID-19, como a suspensão de aulas presenciais nas escolas, tiveram base econômica. Créditos: colagem realizada no canva.com a partir de imagens disponíveis em freepik.com e em redes sociais.

Em entrevista concedida à BALBÚRDIA, o professor Daniel Cara comenta sobre os impactos da pandemia na educação e a necessidade de fomentar políticas que visem recuperar o tempo perdido com a suspensão das aulas presenciais.

Daniel Cara é professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP), doutor em Educação (USP) e bacharel em Ciências Sociais (USP). Foi coordenador da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, e membro titular do Fórum Nacional de Educação. Membro da coordenação pela Campanha Global pela Educação e do Comitê Diretivo da Campanha Latino-Americana pelo Direito à Educação. Foi membro do Conselho Mundial da Juventude, sendo o primeiro vice-presidente deste órgão, representando a sociedade civil. Tem experiência de pesquisa nas áreas de educação, política, economia e sociologia, além de uma extensa participação em movimentos de defesa da educação pública e de qualidade.

Bate-bola da BALBÚRDIA

Um(a) cientista.
O pai da Ciência da minha área no Brasil, Florestan Fernandes.

Um(a) educador(a) ou professor(a) de Ciências.
Como eu considero a Pedagogia uma das rainhas das Ciências, como educador, Paulo Freire, como professora, bell hooks.

Um(a) divulgador(a) de Ciências.
Eu vou falar sobre aquilo que é uma das coisas que eu mais me interesso, e que não tive oportunidade de estudar, que é a paleontologia, então Aline Ghilardi, que para mim faz um trabalho incrível. 

Um momento da militância.
Menciono três momentos. Primeiro, a aprovação do Plano Nacional de Educação; segundo, a aprovação da política de cotas; e, terceiro, as aprovações do Fundeb em 2006/2007 e do Fundeb 2020.

Um livro.
"Dom Quixote de la Mancha" de Miguel de Cervantes e "Guerra e Paz" de Liev Tolstói.

Um local específico da USP.
A Praça do Relógio.

Uma memória da USP.
No dia que eu fui fazer a seleção para o doutorado e meu orientador, o Vitor Henrique Paro, com razão, falou que eu entendia muito de política educacional, mas precisava ler mais sobre pedagogia. Eu assumi que ele tinha razão e hoje eu sou um leitor voraz de todos os clássicos da Pedagogia e me tornei professor da USP.

Um sentimento sobre a USP.
A USP é para mim aquela mãe brava, que é muito dura com os filhos, que no caso é a comunidade, mas ela também é um espaço de promoção da Ciência, do conhecimento. Então é um ambiente que não é acolhedor, mas é um ambiente engrandecedor que eu recomendo e quero que se torne mais democrático, mais popular.

30 de maio de 2022 | 10:00

Por: Sofia Valeriano Silva Ratz

Nessa entrevista, convidamos o professor Daniel Cara, da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, para falar sobre a educação em época de pandemia, bem como os desafios que ainda estamos enfrentando. Por ser membro de diversos fóruns de debates sobre políticas educacionais, o foco da entrevista foi a gestão da educação em tempos pandêmicos, sobretudo durante o ensino remoto, que perdurou durante os anos de 2021 - por lei federal - e 2020, por meio de decretos estaduais e municipais. Pesquisador na área de economia e políticas educacionais, o professor Daniel Cara aponta que o modo como ocorreu a gestão da educação na pandemia sintetiza o drama dos debates da educação há tempos. Para o professor, a educação no Brasil é vista como redentora, não como direito - e foi esse viés salvacionista que fez com que políticos e parte da população brasileira criticassem as medidas para contenção da transmissão do vírus. Para além da solução imediatista e perigosa de reabrir as escolas sem levar em consideração as condições de infraestrutura e recursos humanos, o debate da educação na pandemia se ancorou na previsão autorrealizadora de que a aprendizagem é irrecuperável. Citando exemplos e autores, Daniel Cara nos aponta outros rumos para os debates e para as lutas por uma economia justa e políticas educacionais que favoreçam a aprendizagem de todos os alunos.

BALBÚRDIA: Como você poderia resumir o seu currículo, toda a luta que você faz em prol da educação para que nossas leitoras e nossos leitores conheçam o Daniel Cara, qual é a sua principal luta, os movimentos que você tem participado?

Daniel Cara: É até difícil resumir essa questão da trajetória, porque algumas coisas aconteceram naturalmente. Quando eu era garoto, eu tinha dois objetivos fundamentalmente. Tentei ser jogador de futebol, como vocês percebem, não deu certo (risos) Até porque eu só consegui jogar no Palmeiras, no clube mesmo, eu jogava. E eu sou corintiano (risos). É… não deu certo. E depois eu tinha como objetivo atuar politicamente em favor da justiça social. A luta pela justiça social me levou à educação, mas tem um contexto familiar. Minha mãe e meu pai sempre valorizaram muito a educação. Minha mãe havia tido a experiência de educadora popular. Até uma história engraçada, porque ela foi alfabetizadora da minha avó, sogra dela. Ela conheceu meu pai por esse caminho. E por conta disso, a educação sempre foi um tema muito forte em casa. Então, a escolha pela educação é uma escolha pelo fato que eu considerava necessário… Trabalhei com várias questões. Trabalhei com educação, com empresas e responsabilidade social, com meio ambiente, com economia solidária e economia de solidariedade junto com Paul Singer1, nós fizemos um primeiro… Aliás, foi uma atividade desenvolvida junto à USP, porque eram amigos das Ciências Sociais que moravam, como eu, na região noroeste de São Paulo. Eu morava em Pirituba, eles moravam na Brasilândia e a gente monta um núcleo de economia de solidariedade. Eu trabalhei com segurança pública… Mas educação, desde que eu fui presidente do Grêmio 28 de março da Escola Técnica Estadual de São Paulo… Desde aquele momento, eu tive um trabalho de militância na área de educação, isso foi me encantando, e se soma ao contexto familiar e aí educação se torna a grande paixão, mas ao mesmo tempo a área que eu mais me dedico. Independentemente disso, continuo também atuando em outras áreas. Por exemplo, tive um papel forte, importante na área de políticas públicas de juventude. Então, educação é a luta constante. As outras áreas são lutas que vão se somando a essa estrutura pautada pelo direito à educação. Essa é a trajetória. E num determinado momento, eu considerei que era importante ingressar também na universidade, fazer um trabalho relacionado à formação de professores. Porque muita gente fala sobre educação, mas não conhece a área. Não conhece cientificamente a questão educacional, a questão pedagógica. E eu sentia também a necessidade de trazer toda essa luta, todas as conquistas que nós tivemos na Campanha Nacional pelo Direito à Educação para dentro da Universidade até para colaborar com a formação de professores e fazer também com que a universidade reconheça essas lutas. É uma trajetória que está no início, estou em estágio probatório na USP, que se encerra em março do ano que vem [2023], mas tem algumas coisas que mostram que esse caminho foi um caminho acertado.

BALBÚRDIA: Desde o começo da pandemia, a gente seguindo você, viu que você foi bem atuante nas críticas com relação à determinadas políticas públicas. Principalmente por conta dessas normas excepcionais sobre a questão do ano letivo, que foram necessárias naquele momento para o enfrentamento da COVID-19, com relação à essa emergência na saúde pública. Várias estratégias foram implementadas por diversas esferas governamentais para que os sistemas de ensino pudessem cumprir carga horária estipulada pela lei, tanto o ensino remoto, o ensino híbrido ou ampliação de carga horária diária, para diminuir o número de dias letivos. A gente sabe que você teve suas críticas em relação a isso. Quais foram as principais limitações dessas estratégias que foram implementadas nas diferentes esferas governamentais e diferentes sistemas de ensino?

Daniel Cara: Eu considero que a educação na pandemia sintetiza o drama da educação no Brasil. Não que ela sintetize no sentido de esgotar o problema, mas no sentido que ela aponta aquilo que existe de mais preocupante. A educação é tratada no Brasil não como um direito, ela é tratada quase que como uma salvação. As pessoas não acreditam na educação como um direito, mas acham que as pessoas podem se salvar pela educação. É uma contradição. No fundo, o que acontece é que o debate público brasileiro sobre a educação é  extremamente elitizado e fala sobre a escola pública quem nunca conviveu na escola pública. E o que acontece, Sofia? O fato é que a nossa posição, a minha posição é uma posição acompanhada pela Fiocruz. Aliás, a gente fez vários trabalhos em conjunto. Acompanhada pelo Observatório Brasil da COVID-19, pela Rede de Análise da COVID-19, pelos melhores infectologistas, que de fato estão na linha de frente. Porque tem infectologistas, ou médicos, que não estão na linha de frente e também desconhecem a realidade da pandemia. A questão concreta é a seguinte: pelo fato da pandemia ter ficado desgovernada no Brasil… E eu considero… inclusive eu perdi a conta do twitter (@DanielCara) por algumas horas, escrevi isso e fui bloqueado, fui suspenso: para mim, o governo Bolsonaro utilizou a pandemia em determinado momento como uma arma política de desorganização social. E ele precisa disso, pois se trata de um roteiro de fascismo miliciano pautado no caos, como qualquer atividade de milícia. É da natureza do Bolsonaro… Estou lendo um livro do Bruno Paes Manso2, que foi meu colega na USP, ele teve o mesmo orientador. Eu estava no mestrado e ele no doutorado, o Lúcio Kowarick3. E o Bruno mostra o que eram as milícias. O que acontece: ela era um instrumento político para Bolsonaro. E diante do descontrole da pandemia, reabrir escolas teria sido criminoso. E agora a gente tem que conviver com várias pessoas que também nunca pisaram numa escola pública dizendo “ah, mas o prejuízo das crianças é irrecuperável”. Em termos científicos, a questão pedagógica ensina, isso desde Erasmo de Roterdã4, lá atrás, na superação da Idade Média. Não existe limite para o aprendizado. E é claro que é possível recuperar o “tempo perdido”. Para dar um exemplo de uma pessoa que eu divirjo politicamente, mas admiro muito, Marina Silva5 foi alfabetizada, se eu não me engano, aos 11 anos. Meu orientador, professor Vitor Paro6, professor titular da Faculdade de Educação, também foi alfabetizado tarde. Claro que o  tempo se recupera. É claro que é possível recuperar o tempo perdido, o que aconteceu na pandemia. O que não dava era reabrir escolas em momento de pico infectológico e epidemiológico. E também não dava para ficar com discurso de que era necessário reabrir sem os governos darem nenhum tipo de suporte para professores e estudantes em relação à educação à distância. Então, essa foi a nossa luta e a gente venceu, porque a gente conseguiu controlar a pandemia… E o problema agora é que governadores e prefeitos, e muito menos o Governo Federal, não estão realizando um trabalho necessário de apoio aos professores, para que eles possam realizar processos pedagógicos que recuperem o tempo perdido. Por exemplo, eu não vejo sentido de não ter aula de retomada de vínculos, de não ter projetos de retomada de vínculos nas escolas aos finais de semana. Como oficineiros… a forma do aprendizado, os educadores científicos ensinam isso muito bem. E acho que vocês têm um trabalho pedagógico fundamental. É possível fazer de forma lúdica, até mesmo numa aula de percussão, a retomada de aprendizados, de conteúdos, por exemplo da Física, da Geografia, da História. A nossa História, inclusive musical, de origem africana tem a percussão como elemento central. Trabalha História, Geografia, Física, Língua Portuguesa, Matemática… Ou seja, o problema todo é que o sistema de ensino todo é pouco criativo. Está muito mais preocupado em tratar a educação como um problema do que ver na educação um caminho para o desenvolvimento do país. E eu não consigo imaginar, Sofia, um país que fica imerso num debate público que não reúne educação, ciência, tecnologia e inovação. Essa é uma falha da nossa sociedade. A gente tinha que ter essa capacidade de olhar para a educação como um direito, mas também como um meio do Brasil desenvolver complexidade econômica, de desenvolver uma economia que cresça com sustentabilidade, que procure soluções para o país. Eu imagino que a garotada tem muito tesão. Toda vez que eu trabalho com escola pública, fico impressionado. Com escola privada também… É que com escola pública são as que eu venho tendo um trabalho mais constante e eu de fato tenho verificado outro sangue nos olhos, um outro brilho nos olhos, uma vontade de mudar as condições de vida. São talentos que não podem ser desperdiçados. Dá para recuperar o tempo perdido na pandemia… Agora, eu não tenho dúvida que a gente acertou lá atrás em fazer uma defesa dura da manutenção da política de isolamento social, que significou naquele momento o fechamento de escolas, até o momento que se tornasse mais seguro em termos epidemiológicos. E conseguimos. Vacinação prioritária para os professores é conquista nossa. E a vacinação agora dos adolescentes e das crianças. Isso é conquista nossa, do nosso movimento, que é muito coletivo. Se dependesse apenas de quem faz discurso que escola é comparável com shopping e restaurante, com bar… a gente estaria em uma situação calamitosa da pandemia ainda. A Ômicron e outras variantes, a Delta… teriam um efeito muito mais grave no Brasil. Então, a luta por uma vacina para professores, estudantes, primeiro adolescentes e depois crianças, isso é uma conquista nossa e dos professores e profissionais da educação. 

BALBÚRDIA: Você considera que foram necessárias essas medidas, mas as limitações estão muito relacionadas ao fato de que elas parecem ter deixado a escola de lado. Quer dizer, o problema estava, vamos dizer assim, na escola. Mas ela foi a última a ser consultada sobre o que fazer… Os últimos a serem consultados (se o são!) são os profissionais da escola.

Daniel Cara: Exato, esse é o ponto. O que acontece? Eu falei no Jornal Nacional, no início da pandemia, e muita gente me criticou… Eu falei que o ano de 2020 seria mais que perdido, não por conta do esforço dos professores… Os professores fizeram o máximo que podiam, como sempre fazem. É claro que dentro de um conjunto de 5 milhões de profissionais de educação básica pública no Brasil…  Essencialmente professoras, inclusive… É claro que você vai ter numa área tão grande… Como vai acontecer com o jornalismo, com a Academia, enfim, em qualquer área da vida social, no futebol… você vai ter profissionais que são muito dedicados e outros que não são tão dedicados… mas a grande maioria dos professores mergulhou nessa tarefa, deram aula até no Whatsapp quando não tinham outro caminho. Fizeram tudo que podiam para garantir o vínculo dos estudantes da escola com o aprendizado. Mas os gestores não acompanharam. Então, eu dizia naquele momento, que 2020 seria mais que um ano perdido no sentido que os gestores iriam “patinar” e falei em que pese os professores estariam fazendo um esforço hercúleo, os gestores públicos iam fingir que estavam organizando os sistemas de ensino, trabalhando… mas as crianças não iam fingir que aprenderam. Elas de fato não estariam aprendendo como deveriam aprender. E isso se comprovou. Agora, é tão grave isso o que você está dizendo, Sofia, e tão correto, que se a gente observar o que aconteceu nos exercícios orçamentários de 2020 e 2021: as prefeituras e governos estaduais não gastaram os 25 % mínimos constitucionais… A Constituição é clara: você tem que investir 25 % das receitas de estados e municípios e 18 % dos impostos da União em educação. Estados e municípios não cumpriram, principalmente no ano de 2021. Ou seja, mantiveram as escolas fechadas, aí não teve funcionamento, reduziu o custo. Acumularam recursos, querem a anistia, querem que não sejam obrigados a pagar esses 25 % que é constitucional. Eles não investiram 25 % em 2020, 2021, isso significa crime de responsabilidade, e eles querem ter uma anistia. Mas o fato é que não fizeram nada em termos de apoiar os professores e dar suporte aos alunos em relação à educação à distância, fazer aquisições, reformar as escolas. Imagina, Sofia, a gente voltar agora, por exemplo, o ano letivo, e as escolas estarem lindas para receber os alunos. Isso geraria emprego para a população brasileira na construção civil. Isso geraria enorme prazer aos estudantes, melhoraria as condições de trabalho dos professores… E nada foi feito. E nada foi feito, por quê? Porque os gestores tratam a educação como um problema.

BALBÚRDIA: Uma ou outra pia foi instalada, vamos dizer assim…

Daniel Cara: E se muito! Eu acompanho alguns municípios, para não falar que são todos, eu tenho… dos 5 580, eu tenho contato com quase 1000 municípios, de conhecer prefeito e tudo o mais. Olha, vou dizer, se muito, uns 15 me falaram que estavam fazendo coisas, no sentido de melhorar a chegada dos alunos para retomar os vínculos, abrir a escola no final de semana, que é o que eu tenho recomendado. Eu tenho falado para abrir no final de semana, fazer atividade ao ar livre, trazer divulgadores científicos… Fazer projeto. Está sobrando dinheiro? Compartilha esse recurso. Faz um edital de divulgação científica, de atividades culturais, de atividades esportivas, movimenta! A tendência deles é deixar… “deixa que eu deixo”… Governador deixa para prefeito, prefeito deixa para governador. Isso é tão verdadeiro que por conta da implementação do programa de Ensino Médio Inovador do João Doria7, por exemplo, aqui na cidade de São Paulo... No estado inteiro, na verdade, na cidade é mais grave… 5 mil crianças de ensino fundamental estão sem matrícula, porque não foi feita a programação para receber essas crianças. Por que não construiu escola? Tem terreno na periferia! O fato é que a minha impressão concreta é que a gestão pública brasileira não trata a Educação com o respeito que a Educação deveria ser tratada por ser um direito, escrito no art. 6º da Constituição. Tem um capítulo inteiro a partir do artigo 205 até o 214 de artigos que tratam da educação na Constituição Federal e os governantes não a tratam como direito, tratam como um problema que têm que resolver. Porque tratam os cidadãos como cidadãos de segunda classe. A escola pública é sempre a escola do povo e nunca a escola do gestor. O resultado disso é que ela nunca é tratada com o respeito que merece. 

BALBÚRDIA: Vou pegar esse gancho que você comentou, Cara. A escola pública não é a escola do gestor. Não é a escola daqueles que estão no poder. Pois há uma diferença entre escola particular e escola pública muito grande no nosso país, infelizmente, vamos dizer assim. E em algumas entrevistas, você chegou a comentar que as desigualdades aumentariam entre esses dois tipos de escolas. Eu queria que você comentasse um pouco mais para nosso(a) leitor(a). Quais eram essas desigualdades e por que elas foram agravadas agora na pandemia?

Daniel Cara: A desigualdade na educação começa na creche. Por quê? Porque as famílias… Até no Plano Nacional de Educação8 a gente escreve essa questão… As famílias de renda mais baixa têm acesso muito menor à creche do que as famílias de renda mais alta. E olha Sofia, a distorção… Não falando que em todo o Brasil é assim, mas em todas as grandes capitais é assim. As melhores creches que existem são as creches públicas mantidas pelas prefeituras. As creches públicas da cidade de São Paulo, para falar da minha cidade, são as melhores do mundo, sem exagero. Se fizesse uma análise, uma avaliação diagnóstica das creches do mundo, as públicas de São Paulo estariam no topo. E assim acontece com vários municípios brasileiros, municípios com renda, com bom poder orçamentário. E inclusive essas creches públicas de melhor qualidade, atendem classe média e alta, na prática, a elite. É só uma maneira de a gente dizer que existe uma elite que é muito mais rica, que são as 200 mil famílias que têm a maior parte da riqueza brasileira entre 200 milhões de habitantes. 200 mil famílias que têm tudo, contra 200 milhões de habitantes que sofrem todos os anos pela sobrevivência. E o que acontece? Essas creches públicas, quando atendem, atendem a classe média, alta, com capacidade de encontrar outras alternativas. Mas tudo bem, porque é um direito, a creche pública tem que ser para todos, essa que é a nossa luta. Mas é claro, deveria beneficiar mais as pessoas que não têm renda, que não têm renda suficiente. E depois da creche, a gente vai vivendo várias esferas de desigualdade. Por exemplo, no ensino fundamental, a desigualdade já não se dá por matrícula, as matrículas são bem distribuídas no ensino fundamental. Mas o progresso, o fluxo dos estudantes, por exemplo, brancos, é muito maior e muito melhor do que os estudantes não brancos, o que determina que a escola continua sendo racista. Aliás, não é que ela continua, ela sempre foi. O sistema de ensino é um sistema racista. As meninas progridem mais, mas elas têm menos valorização sobre o trabalho escolar que elas realizam. E isso a gente vai ver, por exemplo, na distribuição de vagas na Academia. O Brasil é um país onde a educação é uma área eminentemente feminina e só teve uma ministra da Educação [Esther de Figueiredo Ferraz9] que foi alçada ao cargo na ditadura militar. No mandato de Figueiredo10 ainda, já no final, no crepúsculo da ditadura. As desigualdades, portanto, são reiteradas. E com a pandemia, isso se acentuou, porque as famílias mais vulneráveis, tiveram uma dificuldade muito maior de manter os seus filhos nas escolas, porque virou uma situação de sobrevivência. Era preciso, inclusive, iniciar novamente trajetórias de trabalho infantil para essas famílias. O que é terrível: para a criança, para a economia, para a família. A humilhação da família, da criança ter que ajudar a obter alguma forma de renda. Então, se você me perguntar, para além de iniciar várias políticas públicas, o método de vínculo dos estudantes com as escolas, usando os finais de semana, criando projetos, estratégias gostosas de estímulo ao retorno à escola… Uma questão é fundamental, Sofia. Eu também tive a oportunidade no dia 05 de janeiro [de 2022] de falar isso no Jornal Nacional. Não adianta discutir educação apenas, tem que compreender que é preciso distribuir renda no país, porque a gente não vai ter um retorno qualificado, qualitativo dos estudantes nas escolas se a família passar fome. E uma refeição na escola não é suficiente para um adolescente também. Porque muita gente cínica tem dito “ah, mas na escola, pelo menos o estudante come”. Uma refeição! Quem fala isso tem três refeições e se quiser, faz dois lanches. 

BALBÚRDIA: Que cabeça ele tem de estar se alimentando nas escolas, sabendo que a mãe, os irmãos podem estar com dificuldade…

Daniel Cara: Com fome! Exatamente! É muito desconhecimento sobre a realidade brasileira. Então, o quê precisa ter: a compreensão de que nesse momento, a questão educacional também é econômica! E vou dizer bem claramente: nunca deixou de ser. Vou dar um exemplo que todas as teses e dissertações da nossa Faculdade de Educação têm comprovado quando fazem análises econométricas. Eu tenho uma orientanda estudando a educação de tempo integral e ela também conclui essa questão. Quanto maior for a renda da família, e maior estabilidade econômica a família tem, melhor é o aprendizado da criança. Nossa, que descoberta! (irônico) Uma descoberta que é óbvia, é que a gente tem que comprovar, e a gente comprova. Só não percebe isso quem não conhece a vida real, porque… Uma família que passa fome, não tem como a criança aprender. Não tem! Uma família que o pai está desempregado, não tem como a criança aprender. E a gente sabe, que quando o pai está desempregado, que normalmente as mães encontram… Hoje, a chefia da maior parte das famílias é feminina… As mães encontram alternativas, porque é uma característica da realidade. As mulheres são muito mais dispostas. Eu fiz várias pesquisas, de 2000 a 2005, ajudando o Lúcio Kowarick, pesquisa sobre a sociologia urbana. E as mulheres buscam várias alternativas, elas fazem de tudo para a família, o que não acontece com os homens, que, muitas vezes, ficam desempregados e ficam no bar fazendo conta no fiado, vivendo, compartilhando a tristeza e fracasso com seus amigos. Mas isso também gera violência familiar, por conta de toda estrutura machista da sociedade brasileira… E o resultado disso tudo é o seguinte: não dá para abdicar da discussão econômica. A gente precisa de fato construir uma economia no Brasil que seja a serviço do povo brasileiro. E a história brasileira… e aliás, a história mundial, mas no Brasil é mais grave, é que são as pessoas que estão à serviço da economia. E elas deveriam ter a consciência de que é justo que a economia esteja a serviço das pessoas. Esse caminho é estrutural. E para melhorar a educação, a gente também tem que percorrê-lo. Aliás, a educação, lá na frente, beneficia a economia. Se for uma economia a serviço das pessoas, isso vai gerar distribuição de renda.

BALBÚRDIA: Falando um pouquinho dessa questão de investimento, e relacionando educação com economia, um relatório produzido pela OCDE (Education at a Glance) apontou que o Brasil foi um dos poucos países que não aumentaram o investimento na educação na pandemia. Você já comentou sobre isso, nos estados e municípios, não gastaram nem o mínimo. E fomos também um dos países que mais demoraram para fazer a volta presencial. Você enxerga uma relação entre esses dois pontos, além de toda a desordem, vamos dizer assim, planejada, para que o caos fosse mesmo instalado?

Daniel Cara: Olha, a desordem planejada durou até o momento em que nós tivemos, como sociedade, de enfrentar o bolsonarismo em favor das vacinas. Essa foi a virada do jogo. Então, a gente quebra o Bolsonaro. A CPI [da COVID-19] que não serviu para praticamente quase nada, mas ajudou como um veículo, foi mais uma variável em realizar uma pressão em favor das vacinas, a gente começa a virar esse jogo e a partir daí tem todo o desgaste de Bolsonaro. O fato concreto que a OCDE denuncia no caso brasileiro, é que existe todo o problema do bolsonarismo, mas existe também uma coisa que é marcante na nossa sociedade… O José Murilo de Carvalho11, um grande historiador, vai dizer que é uma compreensão de que existe uma cidadania e uma cidadania de segunda classe. O meu orientador de mestrado, o Lúcio Kowarick, vai dizer que o Brasil promove a subcidadania. Na prática,  os gestores públicos brasileiros consideram que a educação do povo brasileiro é a educação do outro. Eles não se consideram, inclusive, povo brasileiro. E por mais que você tenha uma trajetória de político, uma trajetória de ter vindo de camadas populares… E é claro que aqui não estou falando de todos os políticos. Indiscutivelmente, as pessoas podem ficar incomodadas, mas se teve uma pessoa que fez, na minha opinião, não o suficiente, mas infinitamente mais do que outros, quando foi presidente da República, em relação às universidades, escolas técnicas, foi o presidente Lula12. Mas ele foi uma exceção. Há poucas exceções no Brasil. A regra é que, mesmo quando os políticos saem das camadas populares e ingressam na política, eles perdem, ao ascender economicamente, eles perdem vínculos com a sua origem. Como resultado, a educação é simplesmente ignorada. E o retrato que a OCDE traz é assustador, porque imagina… Eu sou professor de Economia da Educação, Política Educacional e Educação Comparada, na Universidade de São Paulo. A gente faz uma análise com vários países. Eu tenho contato com outros pesquisadores ou movimentos sociais de redes de ensino na Ásia, na Europa, na África, e em outros países da América Latina. Para dar um exemplo bem claro, o esforço que foi feito no Uruguai… Tudo bem, o Uruguai é um país pequenininho, não dá a Zona Leste de São Paulo, em termos populacionais.  Mas o esforço que foi feito no Uruguai, foi muito maior, sendo que o Uruguai já era o país com maior vínculo tecnológico entre a educação e as tecnologias da informação. Quer dizer, o Uruguai era um país de ponta, é um dos países mais conectados, com a educação mais conectada do mundo, junto com a Finlândia. São os dois maiores com conexão. E o Uruguai investiu muito mais. Olha, a gente já tem tudo isso, mas a gente precisa fazer muito mais. A província de Salamanca em Espanha já tinha uma política de educação à distância. Em 2013, foi implementada, em caso de crise… eles previam que iam ter uma crise. Em 2020, surgiu a pandemia, e eles tiveram que investir o dobro que investiam na plataforma, para que ela pudesse ser funcional. O Brasil, que saiu do zero, tinha que ter investido quatro, cinco vezes mais. Não fez, porque  o Brasil não trata a educação como um tema estratégico, não trata como direito, que é um ponto anterior e superior a todos os demais, muito menos trata como setor estratégico. A gente não tem uma compreensão de cidadania como nação, e, pior, a elite é tão cega, que além de não ter uma compreensão de cidadania, que é algo completamente indigno e absurdo, ela ainda não consegue sequer perceber que até mesmo para o próprio benefício dela, educação tem que ser tratada como elemento estratégico… Educação, ciência e tecnologia. Eu quero sempre bater nessa tecla, pois são áreas que caminham em conjunto e formam a estrutura geral da política do conhecimento.

BALBÚRDIA: Ainda nessa linha sobre financiamento, no ano passado… a gente viu, nos últimos anos, que o antigo Fundeb estava para vencer. Você estava sempre ali na luta para aprovação do novo Fundeb13. Quais foram os pontos positivos desse novo Fundeb, o que ficou ainda obscuro nessa aprovação, e quais foram os regressos? 

Daniel Cara: Olha, em relação ao Fundeb, primeiro, em linhas gerais, 90% da emenda à Constituição… Porque o Fundeb precisa de uma emenda à Constituição, pois ele é um fundo constitucional e precisa de uma lei de regulamentação. Considerando as duas legislações, em 90 % dos casos, a gente venceu. Teve as vitórias mais importantes. Nós vencemos o governo Bolsonaro, vencemos… para falar sobre um debate acadêmico, vencemos o Insper [Instituto de Ensino e Pesquisa], aqui de São Paulo… e aí foi uma vitória da Associação Nacional de Pesquisa e Financiamento da Educação (Fineduca) e da Campanha Nacional pelo Direito à Educação. Eu tive a oportunidade de coordenar esse processo. Mostramos a necessidade de mais recursos para a educação básica vindos do Governo Federal. A gente conseguiu, foi uma conquista: o Fundeb (Governo Federal) dava 10% de participação de complementação ao esforço de estados e municípios. E agora vai ser 23%, então, mais do que dobrou. Nós preservamos o salário educação. Foi uma vitória… A vitória de complementação da União foi contra o Rodrigo Maia14. Vencemos o Rodrigo Maia, vencemos o Bolsonaro, vencemos o Insper e vencemos a Faria Lima, que ela também era contrária ao Fundeb. Isso deu no Jornal Nacional, na Folha de São Paulo. Na Folha, o tempo todo, semana sim, semana também, desde 2019 tinha colunistas criticando a pressão por mais recursos do Governo Federal no Fundeb. Para além disso, a gente vence especificamente o Rodrigo Maia, que queria pegar o salário educação, que é um recurso que já está disponível e para reduzir o impacto de mais do que dobrar a complementação para o Fundeb, ele queria colocar o salário educação dentro do Fundeb. Então, perceba, hoje a gente tem, a complementação do Fundeb mais o salário educação. São duas fontes de receita. E ele queria matar uma complementação de receita, e a gente não permitiu. O que o salário educação paga hoje? Livro didático, alimentação escolar, transporte escolar e nos estados e municípios, o uniforme escolar também. Então, imagina o prejuízo que a população teria… Existe um conceito científico elaborado pelo nosso mestre Melchior15, que foi professor da Faculdade de Educação da USP, ele dizia que a educação não pode ter no Brasil só gratuidade passiva. O que é gratuidade passiva? Não cobrar matrícula. Tem que ter gratuidade ativa. O que é gratuidade ativa: dar as condições para os estudantes poderem permanecer na escola. Precisa ter alimentação, Sofia, livro didático, transporte, uniforme. Ninguém sabe o que é uma dor, por exemplo, eu ouço essas histórias na minha família… Minha mãe tentou alfabetizar minha avó, não terminei minha história, mas infelizmente ela não se alfabetizou. Ela não conseguia. Foi a única aluna que minha mãe não alfabetizou, curiosamente foi a sogra dela, na vida dela. (risos) Esse é um tema familiar, é um tema delicado. Mas a dor que existia de você andar descalço. Por exemplo, a minha família materna e paterna. A minha família materna por parte de meu avô de criação, ele sempre falava “comecei a usar sapato a partir dos quinze, dezesseis anos”. Ele estava em Portugal, mas a realidade seria a mesma aqui no Brasil. A falta do uniforme escolar é um negócio gravíssimo em termos da permanência do estudante. E o Rodrigo Maia, com apoio do Insper, do próprio governo Bolsonaro e das fundações e associações empresariais queriam incorporar o salário educação no novo Fundeb. A gente não deixou, ganhamos essa também.

BALBÚRDIA: Então o uniforme vem do salário educação?

Daniel Cara: É, vem da cota parte das prefeituras. Por que o que acontece? Existe um conceito chamado manutenção e desenvolvimento do ensino, que na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), relatada pelo Darcy Ribeiro16, ele tira a alimentação e uniforme da manutenção e desenvolvimento do ensino. Aí todo mundo fala “Nossa, o Darcy Ribeiro era muito sacana…” Não, se ele não fizesse isso, as prefeituras colocariam toda a alimentação da prefeitura, inclusive a alimentação do prefeito, dentro dos recursos da educação. E a gente precisava expandir o ensino. As pessoas não sabem, mas o Brasil é um país que há 70 anos, na década de 1950, tinha quase 80% da população analfabeta… E em 1996, ainda tinha muitos problemas de matrícula. Então, a decisão foi essa. E para resolver esse problema, nós aproveitamos uma contribuição social muito antiga, em 1996, e demos a ela, a partir da Constituição, começou essa discussão. Demos para ela a função da gratuidade ativa, a gente foi ampliando essa política do salário educação. Para dar todos os nomes, o Rodrigo Maia, o Governo Bolsonaro, todas as associações empresariais e em especial o “Todos pela Educação” queriam acabar com isso, pois achavam que não dava para aumentar a complementação do jeito que nós queríamos aumentar, nós queríamos mais do que dobrar. Nós fomos para a briga, fomos para o voto e ganhamos de goleada, até porque: que político iria ter a coragem? Para você ter uma ideia, cada deputado nos dias de votação e, posteriormente, cada senador, no caso do Senado, recebiam 5 mil mensagens no Whatsapp da nossa rede, explicando a situação e nós mandávamos junto o estudo. Então, os parlamentares tinham peças de comunicação sintéticas, mas também tinham o estudo completo, eu até publiquei um artigo junto da professora Iracema Santos do Nascimento em uma revista Qualis A1, a Arquivos Educativos, que conta essa história analisando cientificamente, fazendo uma análise a partir dos modelos analíticos que foram desenvolvidos na formulação de políticas públicas. Nós fomos para a briga e conseguimos movimentar, nesse sentido a pandemia ajudou a movimentar, pois estava todo mundo em casa e nós nunca teríamos o dinheiro para colocar 20 mil, 30 mil, 40 mil pessoas dentro do Congresso Nacional em Brasília. Mas, pelo Whatsapp, elas se fizeram presentes e cada deputado recebia 5 mil mensagens, cada senador recebia 5 mil mensagens… Quem usa o Whatsapp sabe e eu tinha o Whatsapp de todos os senadores, claro que depois eles mudaram tudo, mas nós já temos a nova lista. Ao receber 5 mil mensagens eles não sabiam o que fazer, eles queriam falar com as mães deles, mas não dava tempo, pois chegavam as mensagens…

BALBÚRDIA: Além de vocês, também devia ter muitos prefeitos que deviam entrar em contato para pressionar, para dizer “aumenta aí, pois caso contrário não dará”.

Daniel Cara: Olha, justiça seja feita, foram os educadores, pois os prefeitos cruzaram os braços, porque naquele momento eles tinham o interesse de evitar o reajuste do piso do magistério, que inclusive o Bolsonaro tentou tirar. No dia 14 de janeiro, o Bolsonaro publica via Ministério da Educação a intenção de acabar com o piso, mas a nossa pressão com a mesma estrutura de Whatsapp influenciou para que ele desistisse. Qual é o segredo do nosso Whatsapp? Até o Chico Alves, do Uol, publicou uma matéria sobre isso, relatando a aprovação do Fundeb. O segredo do Whatsapp é que são pessoas reais, quando o deputado ou o senador responde, ele está danado na vida. Tem professores que nós mobilizamos que eu nunca vi pessoalmente. Nós trocamos mensagens pela internet e eles acabaram ficando com o meu número de Whatsapp e eles me mandam mensagem falando “professor, hoje eu falei com o Senador Otto Alencar e ele falou que está com a gente para o que der e vier”. Ou seja, eles criaram vínculo com os políticos, o que é algo espetacular. Então, nós temos essa vitória da manutenção do salário educação. Mas, para além disso, nós constitucionalizamos o aluno custo/qualidade e constitucionalizamos o SINAEB17. Rapidamente o que é o aluno custo/qualidade? Esse conceito vem de um estudo, que é desenvolvido a partir de 2002 pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação, com o apoio do maior pesquisador de financiamento da Educação da história do Brasil que é o José Marcílio de Rezende Pinto, vinculado à USP de Ribeirão Preto, que é o Pelé do financiamento da Educação. Ele gosta de ser chamado assim porque ele é santista. Ele fala que não quer se comparar ao Pelé, mas para um santista isso vale mais. E de fato ele é incomparável, é um dos maiores do mundo! E nós desenvolvemos esse estudo que vai constituir esse mecanismo que determina que toda a escola pública tenha profissionais da educação remunerados por um piso salarial, com política de carreira, números adequados de alunos por turma. Tudo isso tem que ser garantido pela escola. Além disso: ter uma política de avaliação participativa, recursos para uma avaliação participativa, recurso para o Projeto Pedagógico da escola, para se poder fazer um Projeto Pedagógico consistente e toda a escola pública com biblioteca com no mínimo 4 mil títulos, laboratórios de Ciências, laboratório de informática, internet banda larga, quadra poliesportiva coberta, alimentação nutritiva, transporte escolar digno, acesso à saneamento básico e água potável. Agora na pandemia, o mundo descobriu que o Brasil tem 40% das escolas que não têm acesso à água potável. E nem todas as escolas com acesso à luz elétrica. Você pode até dizer “nossa, tem coisas aí que são muito básicas”, mas a verdade é que há escolas que não tem luz elétrica, no Brasil são pouquíssimas, mas tem escola que não tem acesso à luz elétrica e 40% das escolas não têm acesso à água potável. Agora, isso está na Constituição e terá que ser garantido, tem que regulamentar, mas já está na Constituição. E o SINAEB iria mudar a avaliação da Educação Básica. Hoje, a avaliação da Educação Básica é pautada apenas no IDEB, que é o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica, e no SAEB, que é o Sistema de Avaliação da Educação Básica. Essas avaliações dão uma noção de um problema muito específico em relação à aprendizagem e por que é muito específico? Porque não dá conta do sistema avaliar toda a aprendizagem. A pandemia mostrou que a escola não se resume à disciplina. A escola também é relacionamento, a escola é vínculo, a escola é estímulo ao interesse. E isso tudo não é avaliado por essas avaliações. Então, o SINAEB pretende fazer uma avaliação mais completa, que é um ponto fundamental na justiça social. Eu comecei a minha trajetória na escola pública no Capão Redondo. Na época em que era  o triângulo da morte, no início dos anos 2000. E nós viramos essa história. Nós conseguimos mudar essa história! Inclusive trabalhando com os alunos, conseguindo fazer com que os estudantes participassem das discussões sobre segurança pública. Mas, concretamente, quando eu trabalhei ali, o que me doía muito é que as escolas eram avaliadas por esses sistemas de avaliação de larga escala sem considerar que uma escola que está sob o risco de relacionamento com o crime organizado, que está em uma região de crime organizado, ela não consegue desenvolver um bom trabalho. Ninguém aprende bem com tiroteio, com fogo cruzado, com 70% dos professores todos os anos saindo da  escola porque não aguentam trabalhar ali, e que de fato é insalubre. E nós mudamos essa história. Foi por conta dessa experiência que eu lutei muito pela constituição do SINAEB porque precisamos fazer uma avaliação que aponte os problemas. Só dizer que a escola vai mal no IDEB não é suficiente. É preciso dizer o porquê ela vai mal para poder mudar a história da escola. Quando o SINAEB estiver funcionando ficará claro que as escolas que estão em regiões de vulnerabilidade vão mal por conta dessa condição e, então, o poder público terá que tomar alguma iniciativa, pois a sociedade vai estar mais empoderada em exigir mudanças. Tudo isso nós ganhamos. O que nós perdemos no Fundeb? O Fundeb traz um mecanismo que busca implementar no Brasil o que foi desenvolvido nos Estados Unidos, na década de 1990, que é a implementação de um mecanismo de remunerar as escolas conforme a performance. Nós resistimos até 2020 a isso, que é quando foi aprovado o Fundeb. Esse mecanismo traz a contradição que eu mencionei anteriormente, de que escolas vulneráveis não conseguem ter performance, isso agora acontecerá com uma parte do dinheiro do Fundeb, uma parte pequena. Mas o que acontecerá? Quem receberá essa parte pequena, e isso já é uma injustiça, são as escolas que já estão localizadas em grandes centros urbanos, que são escolas públicas, mas que atendem as elites e as classes médias. Essas escolas se encontram, principalmente, fora do eixo Rio de Janeiro-São Paulo-Minas Gerais, que são públicas e que atendem a elite. Eu não vejo problema a escola pública ser de todos, mas essas escolas precisam de menos recursos do que as escolas da região do Capão Redondo, Pirituba, Jaraguá, por exemplo. Então isso está me incomodando, nós vamos tentar reverter. É possível reverter, nós vamos lutar por isso! E essa sim foi uma vitória das fundações empresariais dos parlamentares de perfil neoliberal. Essa coisa curiosa que existe no Brasil: o neoliberalismo progressista! Pois é neoliberalismo, mas faz o discurso progressista, mas de progressista não tem nada. Vende essa imagem e nós vamos ter que enfrentar essa discussão. No geral, nós vencemos de goleada no Fundeb. Foi uma vitória incrível! E tem esse artigo científico que foi escrito pela professora Iracema Santos do Nascimento e por mim para mostrar como se deu, a partir de uma teoria que é razoavelmente sólida de modelos históricos nos Estados Unidos, nós fazemos essa análise da construção do Fundeb.

BALBÚRDIA: Eu estava escutando você comentando sobre o que será exigido das redes. Mencionou diversas coisas, inclusive de situações de escolas que nos faz pensar que não é possível que em pleno século XXI se tenha escola que não tenha acesso à luz elétrica e à água potável. Isso é realmente escandaloso! Mas a questão do laboratório de Ciências, para o professor de Ciências, é algo muito importante e é um público que irá ler a nossa revista. Então, para esse(a) professor(a) de Ciências que estará lendo essa entrevista e a escola dele terá direito a isso que você mencionou, o que você falaria para esse(a) profissional? Você mencionou que ainda será regulamentado. Como chamar esse(a) professor(a) de Ciências para a luta?

Daniel Cara: Olha, ele(a) tem que vir urgentemente porque o professor de Ciências no Brasil, todos os professores, mas em especial o professor de Ciências está em uma situação muito difícil, porque ele se depara todos os dias com vários estudantes com enorme potencial. Estudantes, inclusive, que o potencial nem é aparente, e o professor consegue identificar isso. Além disso, o professor sabe que há uma curiosidade científica que precisa ser desenvolvida e a falta de um laboratório de Ciências pode prejudicar. As Ciências não podem ser um conjunto de disciplinas que se trabalhe apenas o conhecimento teórico. O aprendizado se solidifica efetivamente a partir do exercício prático daquele fenômeno. O professor de Ciências tem que, juntamente conosco, ajudar a construir quais são as necessidades, pois para construir as planilhas de custos para se montar os laboratórios modelo, nós realizamos várias consultas para as sociedades científicas. Mas, sendo bem concreto, ninguém conhece melhor a realidade do que o professor que está dentro da escola. Então, eles têm que somar à luta, procurando entrar em contato com o site da Campanha Nacional pelo Direito à Educação. Podem me procurar nas redes sociais! Porque o meu sonho é que nós tenhamos laboratório, não só os laboratórios tradicionais de Química, Física e Biologia, mas que nós também tenhamos laboratório de Matemática, de Língua Portuguesa. O Museu da Língua Portuguesa é uma aula e muito do que acontece dentro do museu poderia ser feito dentro da escola. O sonho maior é que nós tenhamos laboratórios ao ar livre. Inclusive é fazer como acontece na Finlândia: inspirados pelo Paulo Freire e pelo Anísio Teixeira, os finlandeses decidiram que as cidades devem ser educadoras. Então, os laboratórios se encontram ao ar livre, fora da fronteira da escola. Ainda está distante para nós pensarmos isso. Mas, a construção estratégica dessa política de Educação e Ciências, e na minha opinião de Educação, Ciências, Tecnologia e Inovação, pensando em um aspecto mais amplo, exige a participação dos professores de Ciências. Parte significativa da mudança do patamar do Brasil passa por esses professores. E olha que delícia seria pensarmos, por exemplo, um laboratório de Ciências completo que incluísse também a possibilidade de os estudantes terem contato com o conhecimento científico produzido na África, o conhecimento científico produzido pelos indígenas, o conhecimento científico produzido pelos ribeirinhos, a jangada do ribeirinho é uma aula de aerodinâmica. São nessas questões que eu vejo que a Educação não tem horizontes predeterminados, desde que ela tenha dentro da sociedade o espaço que ela merece ocupar, que não é o que acontece com o Brasil. E para reverter essa lógica, eu vejo que essa relação entre professores de Ciências e divulgadores científicos pode mudar o patamar desse debate. O meu contato com os divulgadores científicos é relativamente recente como movimento. Mas eu fico impressionado com o potencial que isso tem inclusive para mudar a Educação. Eu estou bastante animado, fica o convite para vocês nos ajudarem a construir. O custo aluno/qualidade é um instrumento aberto, adaptável, então todas as colaborações, por exemplo, a última colaboração que nós tivemos era para incluir no custo do laboratório um kit de robótica e isso foi feito. E vou te dizer que isso não custa nada para o sistema de ensino, biblioteca com 4 mil títulos não custa nada, porque com a economia de escala você ganha muito. O centro do custo, e não poderia ser diferente, é pautado nos recursos humanos, mas todas essas outras questões podem ser resolvidas em curtíssimo espaço de tempo. Teve uma época em que nós realizamos um cálculo, só para se ter uma ideia, que um ano dos dividendos de algumas empresas estatais, uma parte dos dividendos, não todos, daria conta de equipar todas as escolas brasileiras, mantendo os equipamentos com qualidade, ou seja, aquisição e manutenção. Então, dinheiro tem! A questão é o quanto é prioridade e é preciso colocar na cabeça dos empresários que aumentar o número de cientistas brasileiros também será bom para eles, mas enfim, eles não têm… o que está acontecendo é que o Brasil está perdendo cérebros, nós não podemos depender da elite, a elite nunca terá uma visão estratégica, a elite ainda está pautada… ainda que não tenha vivido, os que hoje estão vivos e compõem a elite, ainda que não tenham vivido a experiência da escravidão, eles ainda estão pautados no raciocínio da escravidão. Um raciocínio que é perdulário, que não trabalha, só pensa na exploração do outro, que é racista. Então não dá para esperar da elite. Nós temos que ter a capacidade de ir além e tem que ser um movimento que surja do próprio povo brasileiro.

Notas

  1. 1. Paul Singer (1932-2018) foi economista, professor e escritor.
  2. 2. Bruno Paes Manso é jornalista e pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP.
  3. 3. Lúcio Kowarick (1938-2020) foi cientista político e professor da Universidade de São Paulo.
  4. 4. Erasmo de Roterdã (1466-1536) foi teólogo e filósofo humanista holandês.
  5. 5. Marina Silva é historiadora, professora, ambientalista e política.
  6. 6. Vitor Paro é atualmente professor titular da Faculdade de Educação da USP.
  7. 7. João Doria é empresário e político. Foi prefeito da cidade de São Paulo e governador do estado.
  8. 8. O Plano Nacional de Educação (PNE) estabelece metas para a Educação e é estabelecido a cada dez anos. O último foi aprovado pela Lei n. 13.005/2014 e é vigente até o ano de 2024.
  9. 9. Esther de Figueiredo Ferraz (1916-2008) foi advogada, professora secundária e atuou na política como secretária de estado e ministra (de 24 de agosto de 1982 a 15 de março de 1985).
  10. 10. João Figueiredo (1918-1999) foi militar, político e geógrafo. Foi o último presidente da ditadura militar no Brasil, no período de 1979 a 1985.
  11. 11. José Murilo de Carvalho é cientista político e historiador brasileiro, membro desde 2004 da Academia Brasileira de Letras.
  12. 12. Luiz Inácio Lula da Silva é ex-sindicalista e ex-metalúrgico. Governou o Brasil em dois mandatos entre os anos de 2003 e 2010.
  13. 13. O Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) tem como objetivo destinar recursos para estados e municípios para atender toda a educação básica.
  14. 14. Rodrigo Maia é político, sendo deputado federal pelo Rio de Janeiro desde 1999. Presidiu a Câmara de Deputados entre julho de 2016 e fevereiro de 2021.
  15. 15. José Carlos de Araújo Melchior (1938-2011) foi professor da Faculdade de Educação da USP, pioneiro na área de financiamento da educação no país.
  16. 16. Darcy Ribeiro (1922-1997) foi antropólogo, historiador, sociólogo, escritor e político.
  17. 17. SINAEB é o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica. Serve de fonte de informação para avaliar a qualidade da educação e orientar políticas públicas voltadas para esse nível de ensino.