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De Criança Soldado ao Banco dos Réus: o Caso Ongwen no Tribunal Penal Internacional

UN Photo Rick Bajornas 19 April 2016 The Hague, Netherlands Photo #672028

Hoje, 6 de maio, a Câmara de Julgamento IX do Tribunal Penal Internacional (TPI), em audiência pública, proferiu a sentença do Caso Ongwen. Os juízes sentenciaram Dominic Ongwen, por maioria,[1] a 25 anos de prisão.

O Caso contra Dominic Ongwen deriva da situação em Uganda. O mandado de prisão contra ele foi emitido em 2005, porém sua transferência para o Centro de Detenção do TPI aconteceu apenas em 2015 e seu julgamento teve início no ano seguinte. De acordo com as informações levantadas pela procuradoria acerca da situação em Uganda, dentre os 5 indivíduos para os quais o TPI emitiu mandados de prisão, Ongwen era o de ranking mais baixo no comando do Exército de Resistência do Senhor (mais conhecido pela sigla na língua inglesa LRA).[2]

O Caso Ongwen desde o início apresentou um desafio para o Tribunal. Ele foi acusado de cometer uma série de crimes brutais, mas, ao mesmo tempo, foi de alguns deles também sua vítima. Ongwen foi sequestrado aos 9 anos pelo LRA. Os juízes do TPI estavam, portanto, diante de uma ex-criança soldado que se tornou comandante das forças rebeldes, reunindo em si as condições de vítima e perpetrador.

Ao proferir a decisão de primeira instância do julgamento, em 4 de fevereiro de 2021, a Câmara de Julgamento IX declarou Ongwen culpado por 61 crimes: 29 crimes contra a humanidade e 32 crimes de guerra, dentre eles o próprio crime de “recrutar crianças […] para um grupo armado e usá-las para participar ativamente das hostilidades.”[3] Na condição de um dos comandantes do LRA, seu envolvimento direto nas atividades militares da organização permitiu que fosse facilmente estabelecido seu envolvimento e intenção nos seguintes crimes:

(i) ataques contra a população civil como tal, homicídio, tentativa de homicídio, tortura, escravidão, ultrajes à dignidade pessoal, pilhagem, destruição de propriedade e perseguição; cometido no contexto dos quatro ataques específicos aos campos de Pessoas Internamente Deslocadas (“campos de deslocados internos”) Pajule (10 de outubro de 2003), Odek (29 de abril de 2004), Lukodi (em ou cerca de 19 de maio de 2004) e Abok (8 de junho de 2004);

(ii) crimes sexuais e baseados no gênero, ou seja, casamento forçado, tortura, estupro, escravidão sexual, escravidão, gravidez forçada e ultrajes à dignidade pessoal que ele cometeu contra sete mulheres (cujos nomes e histórias individuais estão especificados no julgamento) que foram sequestradas e colocado em sua [de Ongwen] casa;

(iii) Uma série de outros crimes sexuais e baseados no gênero que ele cometeu contra meninas e mulheres dentro da brigada Sinia, nomeadamente casamento forçado, tortura, estupro, escravidão sexual e escravidão; e

(iv) O crime de recrutar menores de 15 anos para a brigada Sinia e usá-los para participar ativamente nas hostilidades.[4]

Os juízes, na decisão de 4 de fevereiro, focaram no lado perpetrador de Ongwen, esvaziando totalmente o seu lado vítima. Desde o início do Caso Ongwen, a narrativa era uma que “contemplava agência, escolha, e ação,”[5] chegando ao ponto de a Câmara de Pré-Julgamento II afirmar que “as circunstâncias da permanência de Ongwen no LRA […] não podem ser consideradas fora de seu controle”[6] com um tom que apontava que sua ascensão na hierarquia da organização militar se dava em razão de escolha.

Aqui, vale lembrar do Caso contra Thomas Lubanga Dyilo, condenado por recrutar e alistar crianças e usá-las para participar ativamente no conflito, caso que, inclusive, foi trazido, sem sucesso, pela defesa de Ongwen. Na decisão, proferida pela Câmara de Julgamento I, em 2012, os juízes levaram em conta a submissão escrita de uma expert que destacou que o trauma “relacionado à guerra por ex-combatentes e crianças soldados em países diretamente afetados pela guerra e pela violência é complexa e frequentemente leva a formas graves de distúrbios psicológicos múltiplos” deixando esses indivíduos com “poucas habilidades para lidar com a vida sem violência.”[7]

As considerações sobre as suas circunstâncias pessoais foram trazidas pelos juízes somente, hoje, na audiência de sentenciamento. A Câmara de Julgamento IX, composta pelos juízes Bertram Schmitt, Péter Kovács e Raul C. Pangalangan, considerou que a condenação de prisão perpétua não caberia dado o histórico de Ongwen como criança soldado. Foi estabelecida, portanto, com o voto dissidente do Juiz Raul C. Pangalangan, a pena de 25 anos de prisão, da qual deve ser subtraído o tempo que Ongwen já esteve detido no Centro de Detenções do TPI.

Apesar das críticas ao modo como os juízes lidaram com a questão da dualidade vítima-perpetrador, o Caso Ongwen traz um importante avanço para a justiça internacional penal. Pela primeira vez, um réu foi condenado perante o TPI pelos crimes de casamento e gravidez forçados.

Se comparado aos demais casos perante o TPI, a sentença de Ongwen é a segunda maior pena já proferida pelo Tribunal.[8] Poucos foram, até hoje, os casos julgados pelo TPI. De um total de 30 casos em diferentes estágios do processo, apenas 6 resultaram em condenações, sendo um deles revertido na apelação e outro apenas em primeira instância. Ademais, o Caso Ongwen possui a maior lista de condenações já proferidas pelo TPI.


[1] O Juiz Pangalangan apresentou voto dissidente por considerer que a sentença justificada pelos fatos do caso deveria ser de 30 anos de prisão.

[2] OFFICE OF THE PROSECUTOR. The Investigation in Northern Uganda, ICC OTP Press Conference. The Hague: International Criminal Court (ICC), 2005. Disponível em: <https://www.icc-cpi.int/NR/rdonlyres/E996F31C-5AB0-43C7-B518-69A13844FBAD/143734/Uganda_PPpresentation.pdf>. Acesso em: 6 maio 2021.

[3] TRIAL CHAMBER IX, Trial Judgment [Situation in Uganda in the Case of the Prosecutor v. Dominic Ongwen], 2021, para. 3116.

[4] Case Information Sheet: Situation in Uganda, The Prosecutor v. Dominic Ongwen, ICC-PIDS-CIS-UGA-02-020/21_Eng. International Criminal Court. Disponível em: <https://www.icc-cpi.int/CaseInformationSheets/ongwenEng.pdf>. Acesso em: 6 maio 2021.

[5] KERSTEN, Mark. Shifting Narratives: Ongwen and Lubanga on the Effects of Child Soldiering. Disponível em: <https://justiceinconflict.org/2016/04/20/shifting-narratives-ongwen-and-lubanga-on-the-effects-of-child-soldiering/>. Acesso em: 6 maio 2021.

[6] PRE-TRIAL CHAMBER II, Decision on the confirmation of charges against Dominic Ongwen, 2016, parágrafo 154.

[7] TRIAL CHAMBER I, Decision on Sentence pursuant to Article 76 of the Statute [Situation in the Democratic Republic of the Congo in the Case of the Prosecutor v. Thomas Lubanga Dyilo], 2012, parágrafos 40-41.

[8] As sentenças, até hoje proferidas, foram: Al Mahdi, que se declarou culpado, foi sentenciado a 9 anos de prisão; Katanga foi condenado a 12 anos de prisão; Lubanga foi condenado a 14 anos de prisão; Bemba, que teve sua condenação revertida na apelação, foi condenado, em primeira instância, a 18 anos de prisão; e, Ntaganda, maior sentença já proferida pelo TPI, foi condenado a 30 anos de prisão.