O Tribunal Penal Internacional e a contínua saga do Caso Al Bashir: quais são os impactos legais dos eventos recentes?

Protesters at the Dag Hammarskjold Plaza in New York call for Omar Al-Bashir's arrest on 24 September 2013. Source: Coalition for the International Criminal Court.

Na semana passada, noticiários anunciaram que o governo do Sudão pretende entregar Omar Al Bashir ao Tribunal Penal Internacional (TPI) para ser julgado por crimes contra a humanidade, crimes de guerra e genocídio. Foi anunciado, em 12 de agosto de 2021, que o governo entregaria os “wanted officials” ao TPI. Tal declaração foi feita por ocasião da visita do Procurador do TPI, Karim Kahn, a Cartum. Esse anúncio, no entanto, não foi inesperado.

O Sudão é atualmente governado por um Conselho Soberano (uma coalizão civil-militar), que governa o país desde que Omar Al Bashir foi derrubado por um golpe em 2019. Em 11 de fevereiro de 2020, já havia sido amplamente anunciado na mídia que, durante as negociações de paz em curso em Juba entre o Conselho Soberano e os rebeldes da região de Darfur, aquele concordara em deixar o TPI julgar os indiciados na situação em Darfur.

O que parece ter mudado é a fraseologia das asserções. O vocabulário usado pelo governo do Sudão passou a ser o de “enviar” esses indivíduos à Haia, afirmação que não estava tão clara nas declarações anteriores. Imediatamente após as declarações veiculadas na mídia em 2020, jornalistas sudaneses esclareceram que o governo não tinha a intenção de extraditar o ex-presidente Omar Al-Bashir para Haia para ser julgado no Tribunal Penal Internacional. A ideia expressa pelo Conselho parecia não exigir nenhum tipo de extradição dos indivíduos indiciados, aproximando-se mais de um julgamento em cooperação com o TPI, todavía em solo sudanês.[1]

Yousra Elbagir, jornalista sudanesa que cobriu os distúrbios no Sudão que levaram à destituição do Presidente Bashir, recentemente destacou a quantidade de “mensagens confusas” sobre o assunto. Além disso, vale pontuar que a realização de julgamentos internacionais para indivíduos procurados foi relatada como uma exigência dos rebeldes e das vítimas de Darfur, o que nos leva a ponderar se essa cooperação com o TPI será levada adiante caso as negociações de paz fracassem.[2]

Um dos casos (senão o caso) mais conhecido e controverso no TPI, o Caso Al Bashir fez com que o Tribunal, advogados criminais internacionais e acadêmicos examinassem importantes instituições de direito internacional para resolver questões disputadas. No entanto, a decisão do Conselho de entregar Bashir para julgamento não possui um impacto jurídico para as disputas que marcaram esse caso. Com a destituição de Bashir do cargo de presidente, a imunidade de Chefe de Estado, questão que criou a maior parte do alvoroço em torno deste caso – principalmente refletida na reação africana –, deixou de ser um impedimento para o seu julgamento no TPI.

Desde a emissão dos dois mandados de prisão contra Omar Al Bashir, em 2009 e 2010, a fim de esclarecer se o réu tinha direito à imunidade soberana, muitos questionaram o status do Sudão perante o Tribunal. Como é bem conhecido, a situação em Darfur foi levada à jurisdição do TPI por meio de uma indicação (referral) do Conselho de Segurança da ONU, em 2005, uma vez que o Gabinete do Procurador não poderia iniciar o caso sozinho porque o Sudão não era parte do Estatuto de Roma. Nesse sentido, é importante ponderar se o Sudão deve ser considerado equivalente a um Estado Parte para fins de implementação do Estatuto de Roma.[3] Depois de não apresentar uma posição muito convincente na decisão de descumprimento da RDC, na qual afirmou que o Conselho de Segurança da ONU “implicitamente renunciou às imunidades concedidas a Omar Al Bashir pelo direito internacional e anexado à sua posição como Chefe de Estado”, na decisão descumprimento da África do Sul, a Câmara de Pré-Julgamento II afirmou que “o Sudão tem direitos e deveres análogos aos dos Estados Partes do Estatuto”. No entanto, advogados criminais internacionais e acadêmicos discordam dessa visão, argumentando que o Conselho de Segurança da ONU não “tem o poder de anular regras gerais de direito internacional, como o efeito relativo dos tratados”.[4]

O debate acerca da obrigação de prender e entregar Omar Al Bashir para fins de respeitar o direito internacional consuetudinário da imunidade de Chefe de Estado, como mencionado, deixou de ser um problema quando Bashir foi destituído do cargo em 2019. A questão que permanece é o dever do Sudão de cooperar com o TPI, ponto não controverso uma vez que já foi esclarecido pela Resolução 1593 do Conselho de Segurança.

A decisão do governo sudanês de cooperar com o TPI também não possui impactos sobre a obrigação de terceiros estados de prender e entregar Bashir, uma vez que sua deposição foi o evento que mudou seu status (e, consequentemente, as leis que o protegem).

É importante destacar que as questões que foram abertas ao debate, como os problemas levantados por este caso, ainda não foram resolvidas. Como muito bem argumentado por Dire Tladi, a questão da imunidade de Chefe de Estado tornou-se muito associada à noção de impunidade para Omar Al Bashir perante o TPI. No entanto as questões disputadas são maiores que o caso e ainda não foram esclarecidas.

[1] Randle DeFalco faz uma avaliação interessante das possibilidades de um julgamento in situ para esses indivíduos. Ver Randle DeFalco, 2020, Sudan Announces Intention to Have al-Bashir and Others “Appear” Before the ICC. Disponível em: https://www.justsecurity.org/68643/sudan-announces-intention-to-have-al-bashir-and-others-appear-before-the-icc/. Ver também Mark Kersten, 2020, Sudan’s Omar al-Bashir may finally face justice for Darfur. But the work is not yet done. Disponível em: https://justiceinconflict.org/2020/02/21/sudans-omar-al-bashir-may-finally-face-justice-for-darfur-but-the-work-is-not-yet-done/.

[2] Ver Gwenaëlle Lenoir, 2020, Sudan: Peace Before Justice? Disponível em: https://www.justiceinfo.net/en/44074-sudan-peace-before-justice.html.

[3] Para discussões mais aprofundadas sobre as diferentes argumentações do Tribunal sobre este assunto, ver AKANDE, Dapo, The Immunity of Heads of States of Nonparties in the Early Years of the ICC, AJIL Unbound, v. 112, p. 172–176, 2018, p. 175–176; JACOBS, Dov, The Frog that Wanted to Be an Ox: The ICC’s Approach to Immunities and Cooperation, in: STAHN, Carsten (Org.), The law and practice of the International Criminal Court, First edition. Oxford: Oxford University Press, 2015, p. 281–304.

[4] JACOBS, Dov, The ICC and immunities, Round 326: ICC finds that South Africa had an obligation to arrest Bashir but no referral to the UNSC.