A visita da Assessora Especial da ONU para a Prevenção do Genocídio ao Brasil

Sub-secretária-geral das Nações Unidas e Assessora Especial para Prevenção do Genocídio, Alice Wairimu Nderitu, pouco antes da coletiva de imprensa sobre visita ao Brasil Foto: © UNIC Rio

Entre os dias 1 e 12 de maio de 2023, Alice Wairimu Nderitu, Subsecretária-Geral e Assessora Especial da Organização das Nações Unidas para a Prevenção do Genocídio, esteve em visita ao Brasil para monitorar a situação dos povos indígenas, dos afrodescendentes e de outros grupos em risco.

A visita faz parte do mandato do Escritório de Prevenção do Genocídio e a Responsabilidade de Proteger que, desde 2004,[i] através da figura do Assessor Especial, coleta informações dos Estados membros da ONU sobre graves e massivas violações de direitos humanos e de direito humanitário de origem étnica e racial que, se não forem evitadas ou interrompidas, podem levar ao genocídio. Isso quer dizer, porém, que não cabe ao Assessor Especial determinar se há a ocorrência de um genocídio dentro do significado da Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio de 1948. Assim, a recente visita de Alice Wairimu Nderitu apesar de poder constatar indícios de genocídio, não possui o papel de caracterizar os crimes cometidos, muito menos de determinar se o crime de genocídio foi cometido no Brasil. A visita não impede, porém, que um órgão jurídico competente posteriormente investigue a configuração do crime de genocídio, uma vez que o Brasil faz parte da Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio, de 1948, e do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, de 1998.

Durante sua estância no Brasil, a Assessora Especial para a Prevenção do Genocídio visitou a capital federal e os estados de Roraima, Mato Grosso do Sul e Rio de Janeiro. No Rio de Janeiro, sua visita tratou exclusivamente da coleta de informações sobre os graves atos de violência policial contra a população negra. Alice Wairimu Nderitu constatou uma situação de insegurança e violência generalizada que impede que essa população desfrute de seus direitos fundamentais. Também destacou a situação ainda mais vulnerável das mulheres negras que ficam sujeitas a situações de extrema pobreza por falhas na ação do Estado.

No estado do Mato Grosso do Sul, a situação da população negra também foi considerada. Maior atenção foi dada, porém, às comunidades indígenas. Os estados de Roraima e Mato Grosso do Sul foram destacados nessa visita após os inúmeros relatos de violações e abusos sofridos nos últimos anos pelas populações indígenas ali localizadas, em especial os povos Yanomami e Guarani Kaiowá. Em sua declaração à imprensa ao concluir sua visita ao Brasil, Alice Wairimu Nderitu apontou que o garimpo ilegal no território Yanomami tem sido a fonte de violações e abusos generalizados contra os Yanomami, uma vez que seus direitos de acesso e uso da terra, cuidados de saúde e educação vêm sendo fortemente afetados de forma adversa e negativa. A Assessora Especial ainda estabeleceu a relação entre as graves violações de direitos humanos e a degradação ambiental:

A vida dos Yanomami depende da floresta onde vivem, dos rios e da biodiversidade do entorno. A destruição das florestas para fins de garimpo impôs condições muito duras a essa população, o que pode configurar um ataque aos Yanomami.

Essa destruição também provocou mudanças climáticas e os rios do território estão secando muito rapidamente. Esta população tem sérias dificuldades em cultivar seus alimentos. […] Os casos de pacientes, por exemplo, nos postos de saúde da CASAI em Roraima, são emblemáticos da dor infligida a essa população indígena. Esse registro de violações contra os povos Yanomami deve terminar imediatamente.[ii]

Seus comentários acerca dos Guarani Kaiowá, na declaração à imprensa, indicaram que estes povos vivem uma situação similar a dos Yanomami, com o agravante de que as terras da comunidade Guarani Kaiowá não foram demarcadas e vêm sendo disputadas principalmente com grandes agricultores. Alice Wairimu Nderitu indicou que os relatos apontam para ataques violentos aos indígenas Guarani Kaiowá com a finalidade de expulsá-los de suas terras tradicionais, o que os leva a uma vida em condições degradantes e desumanas. A Assessora Especial afirmou ter ficado chocada com a situação de extrema pobreza em que vivem e apontou para atos que violam a Convenção de 1948:

Os violentos ataques contra o povo Guarani Kaiowá são emblemáticos dos muitos casos de uso excessivo da força pelos órgãos de segurança contra civis desarmados, levando a assassinatos, prisões arbitrárias e detenções e impondo graves danos físicos e mentais à população, contrário do que preveem os artigos da Convenção de 1948 sobre a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio.[iii]

A situação dos povos indígenas foi agravada pelo desfinanciamento da FUNAI nos últimos anos, prejudicando sua capacidade de proteção dos povos indígenas, constatou Alice Wairimu Nderitu. Segundo a Assessora Especial, essa “política deliberada de negar proteção por meios administrativos não é apenas discriminatória, mas uma violação dos direitos humanos universais dos povos indígenas.”[iv]

Para além dos fatos relatados, Alice Wairimu Nderitu também colocou em destaque como agravante da situação dos povos indígenas o discurso de ódio na sociedade brasileira:

O discurso de ódio é perpetrado predominantemente por alguns políticos e amplificado nas redes sociais. Em Boa Vista, vivi em primeira mão o ódio expresso por meio de discursos de ódio dirigidos ao líder do povo indígena Yanomami, à sociedade civil e às Nações Unidas, em local público – não fui poupada nesse incidente de ódio, e ninguém deve estar sujeita a isso.

Os povos indígenas são alvo constante de discursos de ódio que os discriminam, torna-os bodes expiatórios e os desumanizam, tornando mais fácil marginalizá-los e atacá-los. Se esse discurso de ódio não for controlado, pode se transformar em incitação à discriminação, hostilidade ou violência, o que é proibido pelo direito internacional de direitos humanos, e pode levar a ataques violentos sistemáticos e generalizados contra a população indígena no Brasil.[v]

A Assessora Especial da ONU para a Prevenção do Genocídio demonstrou preocupação com os registros de graves violações do direito internacional dos direitos humanos contra os povos indígenas, brasileiros afrodescendentes e outros grupos em risco no Brasil. Ela ainda constatou que existe uma série de políticas em funcionamento que facilitam a discriminação e o abuso contra esses grupos, protegidos com base em sua identidade.

Dentre as recomendações feitas por Alice Wairimu Nderitu estão: o combate à impunidade das forças que cometeram graves violações contra os indígenas e afrodescendentes brasileiros; o aprimoramento de medidas que deem apoio aos povos indígenas, especialmente no território Yanomami; a retirada dos garimpeiros do território indígena Yanomami; e um exame das políticas atuais de combate ao crime que têm impactado fortemente a população negra. Ainda foi colocado pela Assessora Especial que seu Escritório possui a capacidade de fornecer suporte técnico ao governo, equipe nacional da ONU e outros atores relevantes no Brasil no que concerne as medidas de combate ao discurso de ódio.

[i] O primeiro Assessor Especial para a Prevenção do Genocídio foi nomeado pelo então Secretário Geral da ONU, Kofi Annan, com base na Resolução do Conselho de Segurança 1366 (2001), que convidava o Secretário-Geral levar ao Conselho análises sobre casos de graves violações do direito internacional e sobre potenciais situações de conflito decorrentes de disputas étnicas, religiosas e territoriais e outras questões relacionadas.

[ii] Declaração ao Corpo de Imprensa do Brasil da Subsecretária-Geral Alice Wairimu Nderitu ao concluir sua visita ao Brasil de 1 a 12 de maio de 2023.

[iii] Idem.

[iv] Idem.

[v] Idem.