Os mandados de prisão contra Vladimir Putin e Maria Lvova-Belova e os seus desdobramentos

Foto: Rasande Tyskar Flickr

Em 17 de março de 2023, a Câmara de Pré-Julgamento II do Tribunal Penal Internacional (TPI) emitiu mandados de prisão contra Vladimir Vladimirovich Putin, presidente da Rússia, e Maria Alekseyevna Lvova-Belova, Comissária dos Direitos das Crianças do Escritório da Presidência da Rússia. Putin e Lvova-Belova são acusados de deportação ilegal e transferência ilegal de população das áreas ocupadas da Ucrânia à Federação Russa, em violação aos artigos 8(2)(a)(vii) e 8(2)(b)(viii) do Estatuto de Roma, tratado internacional que estabelece e rege o funcionamento do TPI.

Ambos foram acusados sob o artigo 25(3)(a)[1] do Estatuto de Roma (ou seja, por cometerem crime, seja individualmente, em conjunto com outro indivíduo ou através de outra pessoa). Putin também foi acusado por não exercer devidamente o controle sobre subordinados civis e militares que cometeram os atos, ou permitiram sua realização, e que estavam sob sua autoridade e controle efetivos, de acordo com a doutrina da responsabilidade do superior (artigo 28(b)[2]).

Os mandados de prisão foram emitidos no contexto do conflito armado entre a Ucrânia e a Federação Russa, iniciado formalmente em 24 de fevereiro de 2022. Apesar de inicialmente apontar para a possibilidade de cometimento de crimes contra a humanidade e crimes de guerra, o Procurador do TPI, até o momento, acusou Putin e Lvova-Belova apenas de crimes previstos no artigo 8 do Estatuto de Roma, que correspondem à categoria jurídica de crimes de guerra.

Nem a Rússia nem a Ucrânia são Partes do Estatuto de Roma, o que significa, ao menos em tese, que esses Estados não estão sujeitos à jurisdição do TPI. No entanto, o artigo 12(3) do Estatuto de Roma estabelece que um Estado pode apresentar uma declaração ad hoc aceitando o exercício da jurisdição pelo Tribunal em relação à situação em questão na qual um ou mais crimes parecem ter sido cometidos.

A Ucrânia exerceu suas prerrogativas para aceitar a jurisdição do TPI sobre supostos crimes previstos no Estatuto de Roma ocorridos em seu território em duas ocasiões: a primeira aceitou a jurisdição do TPI sobre supostos crimes cometidos no território ucraniano de 21 de novembro de 2013 a 22 de fevereiro de 2014; e a segunda estendeu o prazo indefinidamente para abranger supostos crimes cometidos no território ucraniano a partir de 20 de fevereiro de 2014 em diante.

A emissão dos mandados de prisão foi, em geral, bem recebida pelos países que apóiam a Ucrânia no conflito. É igualmente possível, porém, tecer críticas quanto à emissão dos citados mandados visto que a probabilidade de prisão dos envolvidos é relativamente baixa, expondo a fragilidade institucional do sistema internacional em efetivamente combater os crimes internacionais a depender de quem os comete, tal como já vinha sendo discutido no caso das investigações atinentes aos crimes cometidos no Afeganistão antes da Câmara de Pré-Julgamento II autorizá-las e retomá-las.

Veja-se que quatro dias após o início do conflito armado entre a Rússia e a Ucrânia, o Procurador do TPI anunciou sua decisão de iniciar uma investigação sobre a situação na Ucrânia. Para tanto, Khan dependia ou de uma autorização da Câmara de Pré-Julgamento ou do encaminhamento de um Estado-Parte ao Escritório da Procuradoria para que a investigação pudesse ser iniciada. Como resultado, em apenas dois dias, 39 Estados-Partes haviam encaminhado o caso à Procuradoria, o que permitiu o início imediato das investigações.

Pouco mais de um ano depois, em março de 2023, o TPI emitiu os mandados de prisão contra Putin e Lvova-Belova. Algumas semanas depois, em 04 de maio de 2023, Volodymyr Zelenskyy, Presidente da Ucrânia, visitou o TPI, encontrando-se com o Presidente Juiz Piotr Hofmański e o Escrivão Osvaldo Zavala Giler. Não só a velocidade em que tudo ocorreu impressiona, uma vez que se trata de situação sem precedentes no Tribunal, mas os eventos anteriores (como a notícia de financiamento de uma série de Estados Ocidentais ao TPI logo após o anúncio da investigação sobre a Ucrânia) e subsequentes à emissão dos mandados de prisão levantam dúvidas sobre a imparcialidade do TPI.

Por isso que a atenção global, agora, volta-se à possibilidade detenção dos acusados.  Para tanto, contudo, rememora-se que o TPI depende, em grande medida, da cooperação de Estados-Partes do Estatuto de Roma para que entreguem os indivíduos acusados de crimes internacionais. Particularmente, a expectativa era de que o presidente russo pudesse ser detido em Johannesburgo, na África do Sul, quando do encontro da cúpula dos BRICS, que está programada para ocorrer entre 22 a 24 de agosto de 2023. No entanto, o governo sul-africano garantiu imunidade e proteção a todos os líderes políticos que comparecerem à cúpula, ainda que alegando que a medida não impediria o cumprimento do mandado.

Sobre o tema, importante relembrar do caso Omar Al-Bashir, líder do Sudão que tinha contra si um mandado de prisão expedido pelo TPI, em que a mesma África do Sul não cumprira quando da visita oficial da citada liderança ao país para uma cimeira da União Africana, ocorrida entre 13 e 15 de julho de 2015, gerando um imbróglio no Tribunal pela sua falta de cooperação, a qual atentava contra o artigo 98  do Estatuto de Roma. Isso porque, no referido caso, o líder sudanês fora indicado ao TPI por meio de resolução do Conselho de Segurança da ONU, de modo que a decisão alcançava a todos da sociedade internacional – membros ou não membros do Tribunal.

No caso em apreço, porém, não existe essa determinação do Conselho de Segurança e, na medida em que a Rússia tampouco participa do TPI, a cooperação exigida da sociedade internacional restaria bastante limitada. Isso se dá em razão do próprio artigo 98 resguardar as obrigações dos Estados em relação à imunidade diplomática de pessoa oriunda de ‘Terceiro Estado’, tal como seria classificada a Rússia/Putin. E para ultrapassar essa questão, o próprio artigo aponta para a necessidade do TPI em buscar que o Estado abra mão da imunidade do seu indivíduo, recaindo, no caso em tela, ao próprio Putin em fazê-lo – o que claramente não ocorrerá. Ou seja, diferentemente do caso do líder do Sudão, no de Putin, a África do Sul não estaria em violação ao artigo 98.

Cabe dizer, ainda, que essa discussão não está atrelada ao artigo 27 do Estatuto de Roma, pois este determina que nenhum Chefe de Estado terá imunidade perante o Tribunal. O próprio caso do Al-Bashir, referenciando decisões do TPI e do Tribunal Especial para Serra Leoa, expressou que não existe regra relativa à imunidade que impeça a jurisdição de um tribunal internacional, mas tão somente de tribunais internos (paras. 113, 114 e 115) – o que, inclusive, na África do Sul está sob debate em razão de uma decisão doméstica da Suprema Corte de Apelação ter determinado recentemente a exclusão da imunidade pelo cometimento de crimes internacionais (para. 100). O fato é que no caso da Rússia se discute a eventual obrigação Sul-Africana de entregar ou não o indivíduo proveniente de Terceiro Estado – e não se esse teria imunidade perante o TPI (ou mesmo perante as cortes domésticas para fins de cumprimento do princípio da complementaridade).

Em qualquer caso, a sociedade internacional acompanha atentamente o desfecho dessa situação. De fato, não se pode negar que o mandado de prisão contra Putin (e Lvova-Belova) foi um passo ousado.


[1] Para uma discussão sobre o art. 25(3)(a), confira o julgamento de Thomas Lubanga na Câmara de Pré-Julgamento I de 29 de jan. de 2007 (para. 343), assim como na Câmara de Julgamento I de 14 de março de 2012 (paras. 988, 994, 1000, 1008 e 2984), em que se construiu a necessidade de preenchimento de três elementos subjetivos (que os acusados tinham conhecimento que, ao implementar o plano, uma conseqüência criminal decorreria do fato, que os acusados estavam cientes da sua essencial participação no plano, e que os acusados estavam cientes das circunstâncias fáticas que estabeleceram a existência de um conflito armado) e dois elementos objetivos (a existência de um plano comum entre duas ou mais pessoas, e a contribuição essencial e coordenada dos participantes nos resultados).

[2] Para uma discussão sobre a responsabilidade do comandante atinente ao art. 28(b), confira a jurisprudência do Tribunal Penal Internacional para a Antiga Iugoslávia (TPIY), em especial, a dos casos: Prosecutor v. Biljana Plavšić (Caso n. IT-00-39&40/1) sentença de 27 fev. 2003 (para. 14) e Prosecutor v. Radovan Karadžić & Ratko Mladić (Casos n. IT-95-5-R61 & IT-95-18-R61) revisão do mandado de prisão de 11 jul. 1996 (paras. 70, 77, 78 e 83). Há também certa discussão em casos do Tribunal Penal Internacional para Ruanda (TPIR), tal como nos casos Prosecutor v. Jean Kambanda (Caso n. ICTR-97-23-S), julgamento de 4 set. 1998 (para. 40), e Prosecutor v. Clément Kayishema & Obed Ruzindana (caso n. ICTR-95-1-A) apelação de 1 jun. 2001 (para. 299).