É preciso estudar a violência escolar

Há vinte e quatro anos, as notícias do massacre na Columbine High School, no Colorado, Estados Unidos, chocavam o mundo, provocando reações que colocaram a violência escolar no centro das discussões em vários países de forma definitiva. Desde então, o contexto, as razões e modos de prevenção da violência entre jovens, em particular nas escolas, têm sido temas de debates e de estudos. Recentemente, novos casos de violência e de ameaças em escolas brasileiras intensificaram a argumentação acerca desses assuntos no país, deixando pais, mães, professores, crianças e adolescentes assustados e exigindo ações efetivas de gestores das áreas de educação e de segurança pública.

O contexto em que ocorre a violência escolar e suas causas foram tema de ampla pesquisa, desenvolvida entre 2018 e 2021, financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)  e que envolveu pesquisadores de oito estados brasileiros das regiões Sul, Sudeste, Norte, Nordeste e Centro-Oeste, bem como estudiosos da Argentina, da Espanha, do México e de Portugal. Ao todo, as equipes coletaram dados de mais de 3 mil estudantes, de 89 escolas. Coordenado pelo bolsista de Produtividade em Pesquisa deste Conselho, professor sênior do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP) e professor do Programa de Pós-Graduação em Educação e Saúde na Infância e na Adolescência da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), José Leon Crochick, o estudo Violência Escolar: discriminação, bullying e responsabilidade avaliou a relação entre a educação inclusiva, o preconceito e a violência e tratou de um dos pontos mais relevantes quando se fala no assunto: a discriminação e o bullying entre os alunos.

Além de entrevistas com alunos, coordenadores e diretores das escolas, os pesquisadores levantaram dados junto aos professores de Artes, de Língua Portuguesa e de Educação Física das escolas pesquisadas. A escolha por entrevistar os professores dessas matérias se justificou, segundo Crochick, devido à distinção da transmissão de conteúdo entre elas. “O motivo mais importante é que a disciplina de Língua Portuguesa tem o objetivo de transmitir um conteúdo; a disciplina de Artes de incentivar a criatividade, e a de Educação Física o exercício corporal, mas também a competição por meio de jogos esportivos, que conforme mostram algumas pesquisas, e a nossa pesquisa confirmou a tendência, pode levar os que mais se destacam a ser autores do bullying e os que têm piores rendimentos, sofrer o bullying”, afirma o professor. A pesquisa também resultou na criação de Observatórios sobre Violência Escolar, instalados nas universidades e instituições dos pesquisadores que participaram do projeto, que serão.alimentados com novos dados sobre o assunto e que têm o objetivo de dar continuidade ao estudo.

O estudo verificou que a relação entre o bullying e o preconceito existe, mas, em geral, essa correlação é de magnitude pequena ou moderada. Embora tenham pontos em comum, o bullying e o preconceito se distinguem por envolver motivações diversas. Estudantes alvo de preconceito podem sofrer bullying. Quem é o alvo do bullying, porém, não necessariamente é vítima de preconceito. “Uma das formas de manifestação do preconceito, além da segregação e marginalização, é o bullying, que envolve uma perseguição sistemática e de longo prazo”, diz o professor José Crochick. Segundo ele, um alvo do preconceito pode sofrer as mesmas formas de agressão que a vítima do bullying, como ser xingado, sofrer violência física e ter apelidos ofensivos. “O motivo dessas agressões é pela pertença a uma minoria social”, esclarece o professor. Já para ser alvo do bullying não é necessário pertencer a uma minoria social. O enfrentamento do bullying necessita de medidas que vão além da proposta de inclusão.

A pesquisa aponta, ainda, que o convívio com as diferenças, proposto pela educação inclusiva, contribui para a diminuição da violência escolar, por oferecer aos estudantes possibilidades para refletirem sobre os impulsos agressivos expressos pelo preconceito. De acordo com os resultados finais do projeto, ao pensar sob a ótica inclusiva, os alunos conseguem refrear arroubos que poderiam levá-los a praticar atos violentos.

Na entrevista que se segue, o professor Crochick comenta os resultados do estudo e analisa o fenômeno em que a violência escolar se transformou no Brasil nos anos recentes. Além de falar sobre  o assunto e de sua relação com a incitação à violência e o culto às armas, que testemunhamos no período recente, o professor Crochick trata da diferença entre bullying e preconceito no âmbito das escolas, analisa os dois lados do bullying e o papel da inclusão nas escolas, além de falar dos Observatórios sobre Violência Escolar e de examinar o chamado “efeito contágio”, ocasionado pela divulgação de notícias acerca da violência nas escolas.

CNPq – Sua pesquisa trata muito da violência escolar no que envolve o bullying e o preconceito. Porém, nos últimos anos, vivemos um contexto no Brasil de incitação  à violência e de culto às armas, que podem ter levado ao aumento da violência escolar. Esse ambiente de estímulo à violência  e de valorização de armamentos, inclusive entre a população civil, contribuiu, de fato, para o aumento da violência escolar?

José Leon Crochick – A pesquisa não trouxe dados diretos para responder a esta questão, mas é possível inferir, pelos resultados encontrados, que se os autores do bullying se ressentem por não serem destacados ou por se julgarem excluídos do que é valorizado e se isso conduz à violência, o incentivo a “fazer justiça com as próprias mãos”, o descrédito da justiça socialmente organizada, a valorização da força, da virilidade, devem incrementar a violência que já existia, inclusive a violência contra as escolas.

Um dos resultados que encontramos foi a relação entre os estudantes que não se destacam nas disciplinas ministradas em sala de aula, mas se destacam na disciplina de Educação Física e, por serem populares, serem autores do bullying. Isso implica um contraste entre o que é valorizado oficialmente pela escola – a incorporação da cultura, por meio do aprendizado de disciplinas escolares – e o que é valorizado fora e dentro dos muros escolares: a força, a virilidade. Dessa forma, aqueles que na escola e fora dela se sentem excluídos ou malsucedidos nos caminhos usuais oferecidos pela sociedade, podem tentar ser valorizados por essa forma alternativa, que é, ao mesmo tempo, criticada e valorizada socialmente.

O culto à força e o incentivo ao armamento que assistimos nos últimos tempos fortalecem os ímpetos de destruição presentes no bullying, e isso pode estar presente nos tristes episódios que têm ocorrido em relação às escolas.

CNPq – Qual é a diferença entre bullying e preconceito no contexto da escola? Por que o bullying ainda permanece em escolas de educação inclusiva, que oferecem possibilidades para os alunos refletirem acerca dos impulsos agressivos expressos pelo preconceito?

José Leon Crochick – O preconceito envolve um indivíduo específico que é discriminado, quer por ações ofensivas, protetivas ou indiferentes; esse indivíduo pertence a um grupo, em geral, uma minoria culturalmente constituída: judeus, negros, pessoas com deficiência, mulheres. Expressa estereótipos, dados pela cultura, para ser justificado; o sentimento pode ser hostil, demasiado afetivo (para algumas pessoas, é difícil suportar que não se goste de alguém, para evitar o mal estar, esse sentimento se converte no oposto, pelo mecanismo que a psicanálise nomeia de formação reativa) ou indiferente; manifesta-se em ações como marginalização, segregação e por formas de agressão também presentes no bullying. Trata-se de projeção, no sentido psicanalítico, sobre outros do que não se pode aceitar em si mesmo.

O bullying é uma forma de hostilidade mais primitiva. Não tem um objeto específico, visa quem não pode se defender suficientemente. As formas de hostilidades podem ser verbais, corporais, psicológicas; o desejo do autor da agressão é o de destruir o outro ou se destacar dos demais colegas.

Na educação inclusiva, atua-se em relação ao respeito às diferenças, às minorias, mas não com o desejo de destruição ou com o desejo de ser mais forte, mais esperto do que os outros. Neste sentido, o respeito às minorias pode ser fortalecido, mas a necessidade de competir, se destacar, ser melhor do que os outros pela força – física ou psíquica – não é superada. Para enfrentar o bullying, esses desejos individuais, incentivados pela cultura e também pela escola, deveriam ser compreendidos e direcionados para a incorporação da cultura, no que essa traz de democrático.

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Pelo site CNPq, 02/05/2023