O que é criatividade?

O pesquisador Rafael de Santis Bastos defendeu sua dissertação “Nascedouro no sertão: um estudo sobre criatividade” a partir de registros do percurso criativo do escritor João Guimarães Rosa e da psicologia de Carl Gustav Jung, orientado pela Profa. Sandra Maria Patrício Ribeiro, do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho do IPUSP.

A dissertação, pautada na questão: o que é criatividade?, foi construída com base em um estudo dialógico entre a teoria do psiquiatra Carl Gustav Jung (1875-1961) e registros do escritor João Guimarães Rosa (1908-1967).

O interesse de Rafael pelo tema surgiu quando estava na graduação, estudando psicologia analítica e a questão da criatividade em Jung. O pesquisador participou da organização do II Seminário “Caminhos Junguianos: “a Travessia do Sussuarão”, que o levou a ler Grande sertão: veredas e a pesquisar mais sobre a vida de Rosa.

Durante esses estudos, Rafael notou a possível relação entre as viagens etnográficas do autor pelo sertão de Minas e algumas teorizações de Jung: “Rosa recolhia esses materiais e os utilizava em suas obras. Esse movimento, de ir ao sertão, conhecer a matéria prima do trabalho, vivenciá-la, me parecia materializar algumas teorizações do Jung sobre a ideia de criatividade. E a partir desse momento, pareceu existir uma possibilidade de estudar a criatividade, em um diálogo teórico entre Rosa e Jung”.

O objetivo de sua pesquisa foi estudar o conceito de criatividade na psicologia analítica e elaborar, com base nas formulações junguianas e do estudo dos registros do processo criativo de Guimarães Rosa, uma compreensão sobre o processo criativo.

Similaridades entre Jung e Rosa

Em sua dissertação, Rafael encontrou afinidades entre Jung e Rosa no uso da objetividade e da fantasia, apesar da distância cultural. Além disso, percebeu que ambos guiam-se pela ideia de concordância entre discurso e objeto.

Por exemplo, quando Jung escreve a respeito da alma, para ele algo vivo, busca tornar a linguagem que se refere a ela também viva. Guimarães Rosa, por sua vez, utiliza-se do mesmo recurso para falar da vida, um dos objetos centrais do seu projeto de literatura. Considerando que a vida não cabe na palavra formatada, o escritor mineiro intervém sobre a língua de modo a restituir a sua vitalidade original.

Também foi possível observar que ambos, escritor e psicólogo/psiquiatra, cada qual em seu campo de atuação, ao abordarem conteúdos simbólicos, têm o cuidado de adequar a língua à natureza de tais conteúdos.

Jung, apesar de estar familiarizado com a conceituação em ciência, preferiu buscar na nomenclatura do folclore medieval, da alquimia e dos mitos, os nomes para muitos de seus conceitos e proposições teóricas, enquanto Guimarães Rosa criou uma linguagem literária com características peculiares, que se afasta da língua padrão a ponto de estudiosos se referirem à “língua de Guimarães Rosa”. Para Rafael, o autor parece colocar os significantes em um caleidoscópio, onde eles podem continuamente se desmembrar e reorganizar em novos arranjos, permitindo ao leitor vislumbrar quadros variados.

O pesquisador conclui em sua dissertação:

“Poderíamos arriscar um paralelo: se, na abordagem junguiana, o conteúdo é apreciado e reapreciado em diferentes níveis, o escritor de Minas, por sua vez, cria condição para o leitor observar os significantes, à cada ângulo, sob nova perspectiva, em uma crescente descoberta de seus potenciais semânticos. O leitor de Rosa, deste modo, pode sonhar a palavra, e acordar pela palavra”.

Se Jung e Rosa não dialogaram diretamente, suas obras, contudo, dialogam temas e questões semelhantes.

A criatividade em Jung

A dissertação é dividida em três capítulos. O primeiro capítulo é uma revisão cronológica do conceito de criatividade na obra de Jung, buscando entender como este  foi elaborado e como se relaciona com outras formulações teóricas fundamentais ao pensamento junguiano.

O pesquisador cita um trabalho intitulado Determinantes Psicológicas do Comportamento Humano (1936/2016),  no qual Jung sugere que os instintos no ser humano podem ser classificados em cinco grupos básicos: fome, sexualidade, atividade, reflexão e criatividade. Juntos, estes instintos formariam a base do psiquismo. Todavia, diferente dos demais animais, o homem teria seus instintos psiquificados, isto é, o instinto permaneceu como força geratriz, mas perdeu seu caráter de compulsividade.

Contudo, no que tange à criatividade, apesar de inseri-la neste modelo dos cinco instintos básicos, Jung acaba pontuando que, talvez, este não seja o conceito mais adequado. A criatividade seria análoga ao instinto, mas, diferindo deste, a força criativa não teria direção pré-definida, sendo capaz de rearranjos, e mais, podendo reprimir todos os instintos.

Para complementar a definição sobre criatividade, Rafael enfatiza a relação entre esta e um dos conceitos fundamentais da psicologia junguiana, arquétipo. Este conceito pode ser explicado, segundo a psicologia junguiana, se considerarmos que há imagens formadas da vivência de cada um, que apresentam estruturas semelhantes. Por exemplo, todo ser humano tem pai e mãe. Então todos têm a possibilidade de formar uma imagem de um pai e uma de mãe. O arquétipo é semelhante ao instinto, mas não é instinto. Os arquétipos condicionam a vida psíquica, mas estão sempre, com maior ou menor intensidade, sob interferência da consciência.

O impulso criativo, então, teria a sua sede na psique arquetípica. Desse modo, conclui o pesquisador em sua dissertação: “podemos dizer que a criatividade é uma disposição primária cuja natureza assenta na psique arquetípica.”  Além disso, salienta que “a criatividade detém certa autonomia em relação às demais funções da psique, podendo suplantar outras disposições e mesmo necessidades humanas.”

Um estudo sobre Guimarães Rosa

O segundo capítulo, por sua vez, estuda a poética de Guimarães Rosa. Rafael utiliza como fonte para este capítulo entrevistas do escritor, cadernetas de campo de viagens de pesquisa, diários, rascunhos, capas intermediárias de sua obra, a própria obra e, principalmente, cartas.

A expectativa do pesquisador era que “a leitura dos documentos sobre o percurso criativo de Rosa viesse a fertilizar a compreensão da teoria junguiana sobre a criatividade. Ao mesmo tempo, esperamos que a teoria junguiana nos auxilie a compreender algo do mistério criativo de Guimarães Rosa”.

O recorte de documentos é composto pelas correspondências entre Rosa e seu tradutor italiano, Bizzarri; correspondências entre Rosa e seu tradutor alemão, Meyer-Classon; a entrevista realizada em 1965 com Günter Lorenz; o conjunto de cartas variadas e dados biográficos reunidos no livro organizado por sua filha, Vilma G. Rosa: Relembramentos; e os quatro prefácios de “Tutaméia”, nos quais o escritor fala sobre criação de modo geral e, de modo particular, sobre o seu próprio processo criativo.

Carta de Guimarães Rosa ao tradutor Bizzarri

Rafael explica que, no início do projeto, a intenção era utilizar as cadernetas de campo de Guimarães Rosa, porém, o pesquisador percebeu que as cartas do autor eram mais significativas quanto à questão do processo criativo, e justifica a decisão pelo próprio método junguiano: “Jung nos habilita a trabalhar de uma forma intuitiva, prestando atenção em elementos que são evocados, para depois trabalhar com eles.”

O criar rosiano

Ainda no segundo capítulo, Rafael explora várias características da criação rosiana. Trata-se de um capítulo mais técnico, baseado em estudos clássicos de escritores como  Haroldo de Campos, Eduardo Coutinho, Antonio Candido e outros teóricos.

O pesquisador evoca uma das características centrais da obra de Guimarães Rosa: as intervenções criativas na língua. Muitos críticos consideram que Rosa criou uma língua nova. Porém, destaca o pesquisador, o que Rosa faz é manejar as potências e recursos de sua língua, transgredindo o seu uso comum, mas não ultrapassando as barreiras impostas por sua estrutura.

Manuscrito de “Grande Sertão: Veredas”

O autor cria neologismos e intervém em sentenças inteiras, alterando clichês e provérbios para que adquiram um novo significado inesperado. Do todo de sua linguagem, a sintaxe é o aspecto que mais se diferencia do padrão da língua portuguesa. Um exemplo de processo sintático é a construção elíptica, que consiste na supressão de palavras ou partes inteiras. Por exemplo: “‘Uma porteira. Mais porteiras. Os currais. Vultos de vaca, debandando. A varanda grande. Luzes. Chegamos. Apear” (Sagarana).

Todos esses procedimentos estão a serviço de duas intenções que movem o criar literário de Guimarães Rosa: a construção de uma expressão concisa e a busca por integração entre forma e conteúdo. A concisão na expressão é alcançada por meio de orações condensadas, construções elípticas e pontuação. Já a busca pela integração entre forma e conteúdo alcançou altos níveis em Grande Sertão: veredas.

Jung e o Grande Sertão

Ao final do capítulo, Rafael estabelece a relação entre a leitura de Grande Sertão: Veredas, como meio de se experienciar a ambiguidade, e o conceito junguiano de unilateralidade psíquica.

Citando Antonio Candido, no livro “O homem dos avessos”, o pesquisador diz que a ambiguidade é apontada como tema e tônica fundamental em Grande Sertão, uma vez que coexiste na semântica e na estrutura do romance. O escritor Paulo Rónai explica em sua obra “Três motivos em Grande sertão: veredas”, que o próprio título já antecipa a experiência ambígua: “À esquerda do sinal ‘:’ temos Grande Sertão (masculino, amplitude, singular) e, à direita, veredas (feminino, pequeno, plural). O sinal de dois pontos, a um só tempo, distingue e separa, como identifica e assimila e os termos”.

Rafael aponta que o leitor não apenas realiza uma leitura psicológica sobre a ambiguidade, como a experimenta na relação com o texto. Tal experiência pode atuar sobre uma problemática amplamente estudada por Jung: a unilateralização psíquica. 

Para o pesquisador, no livro “O homem e seus símbolos”, Jung esclarece que este fenômeno ocorre quando uma das quatro funções naturais da psique (pensamento, sentimento, intuição e sensação) assume uma superatuação, ou seja, torna-se mais integrada à consciência do que as demais, inibindo o desenvolvimento das outras.

Ao longo da vida, o ideal é que as funções menos integradas encontrem meios de integrar-se. Porém, se o indivíduo negligencia continuamente a expressão de uma das quatro funções, esta passa a perturbar sintomaticamente todo o desempenho psíquico. Assim, a pessoa intensifica o uso de sua função psíquica principal, na esperança de controlar as reações da função regredida, porém, reproduz um ciclo vicioso.

Rafael destaca que “Um arranjo psíquico unilateralizado é, de certo modo, o oposto de uma postura que abarque ambiguidades e paradoxos. Conforme nos parece, a leitura de Grande Sertão: veredas propicia ao leitor um campo em que se pode experienciar a ambiguidade da existência, a tensão natural à dualidade da vida.”

Para concluir, Rafael diz que “O leitor tem, assim, oportunidade de encontrar um aspecto da psique humana, logo, um aspecto seu, encarnado semântica e estruturalmente na narrativa de Riobaldo, e de se relacionar com tal aspecto materializado fora de si mesmo. Há nisto um aprender e um apreender a ambiguidade: uma experiência.”.

Adaptação em quadrinhos Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa. Texto: Guazzelli, editora: Globo

Brincadeira, pacto e luta

À medida que os registros de Guimarães Rosa eram estudados, três palavras-imagens foram suscitadas ao pesquisador: brincadeira, pacto luta. Rafael afirma que o próprio Jung sugere ao pesquisador em Psicologia um método mais compreensivo e menos explicativo/interpretativo. Valendo-se desse procedimento, os três grandes temas foram evocados.

O pesquisador percebeu que havia algo de lúdico no percurso criativo de Rosa: o brincar. O escritor brinca com seus amigos, tradutores, e sobretudo, com as palavras. Rafael, então, apresenta diferentes definições complementares sobre o tema. Entre essas, afirma que  brincar é fazer vínculos, assim como ser/estar criança.

Considerando o brincar um ato de extrema importância na existência humana, Jung diz que para a criança, brincar é o meio de desenvolver a capacidade imaginativa criativa, e por isso, no adulto, a criatividade guarda resquícios de brincadeira. Também afirma que “Há bem poucas pessoas criativas que não foram acusadas de brincarem”.

O capítulo trata também da questão do pacto, a segunda palavra-imagem que foi evocada. Rafael percebe que o termo pacto está presente de maneiras diferentes no processo criativo de Rosa, desde a amizade até a vivência religiosa.

A relação entre pacto e amizade é evidenciada nas cartas que Rosa trocava com seus tradutores, Bizarri e Meyer-Clason. Sem mesmo se conhecerem profundamente, as cartas criaram afinidades entre eles. Os criadores, portanto, passam a criar a partir desse pacto. Sobre esse assunto, Rafael conclui que a amizade ocupa um lugar de central importância no processo criativo de Rosa.

Rafael aponta uma faceta do fenômeno da criatividade que é oposta à que foi proposta anteriormente: a criação pela saída do pacto. Jung vivenciou essa situação quando necessitou romper com Freud “Quando eu estava quase acabando de escrever Metamorfoses e símbolos da libido, eu sabia de antemão que o capítulo ‘O sacrifício’ me custaria a amizade de Freud. […] Durante dois meses não consegui escrever, de tal modo me sentia atormentado por esses conflitos. Deveria calar meu modo de pensar ou arriscar nossa amizade? Finalmente decidi escrever; isso custou-me a amizade de Freud”.

Ilustração retirada de “O Livro Vermelho”, de Jung

Sobre a criatividade, Jung também aponta que todo processo criativo envolve sempre algum afastamento das tendências gerais. O artista, em sua busca criativa, pode despactuar com os padrões coletivos.

Para finalizar o capítulo, é abordada a dimensão de luta presente na criação rosiana. Uma forma de luta está relacionada ao momento histórico vivido pelos autores: Rosa e Jung viveram durante o período da Segunda Guerra Mundial, evento que deixou rastros na criação de ambos.

Por outro lado, diferentes tipos de luta são destacadas ao longo do capítulo, como a luta de Rosa e seus tradutores contra o tempo. Enquanto os tradutores evidenciam a dificuldade em fazer boas traduções dentro de um prazo apertado, Rosa afirma em suas correspondências que muitas tarefas cotidianas tiravam-lhe o tempo de produzir suas obras: “Foi uma absurda e terrível época, de trabalho sem parar […]. Várias vezes, tive de trabalhar aqui no Itamaraty até às 5 horas da manhã… e comparecer no outro dia já às 9, para reuniões que duravam o dia inteiro […] Assim, fiquei fora e longe de tudo o mais, nem me lembrava que eu era Guimarães Rosa”.

Por fim, Rafael aponta que, para o irromper do tempo criativo, aquele de que Rosa necessitava para escrever, é preciso conseguir algum espaço no tempo cotidiano “O que não raro constitui uma luta, pois, o tempo cronológico tende a devorar o que estiver pela frente e, se puder, arrebata-nos de nós mesmos.”

Para concluir

Finalizando a defesa, realizada em 14/05/2019, no IPUSP, a orientadora, Prof. Sandra Maria Patrício se pronunciou: “Alguns podem perguntar, por que Psicologia Social? Porque é um trabalho objetivo e profundo que traz, mesmo que de forma não explícita, mas com conteúdo, temas que são, neste momento, fundamentais para o mundo: a brincadeira, o pacto e a despactuação, e a luta.”

 

Mais informações: rafasreis@uol.com.br

 

Por Caroline C. N. da Silva
Edição: Islaine Maciel