O tempo do luto da sociedade será maior que o tempo do coronavírus

 

“Boa noite. O Brasil atingiu a marca de mais de 27 mil mortos pelo novo coronavírus.” Mais de 27 mil mortos pode ser só um número em mais um texto de mais um telejornal sobre o novo coronavírus no Brasil, mas é muito mais do que isso.

São 27 mil vidas. 27 mil pessoas. Pelo menos 27 mil famílias com uma pessoa a menos para contar como foi o dia. Uma pessoa a menos na mesa na ceia de Natal. Um presente a menos no Dia das Mães e Dia dos Pais. Uma pessoa a menos para telefonar perguntando se está tudo bem.

Temos um país inteiro de luto. Se pensarmos em pais, mães, filhos, filhas, tios, tias, amigos, conhecidos, podemos multiplicar esse número por 4, 8, 10, 20, vamos a 100 mil, 200 mil, 500 mil pessoas vivas chorando essas mortes. Milhares, talvez milhões, de pessoas de luto.

Ninguém estava preparado para viver em um país, em um mundo inteiro, de luto.

O luto como conhecemos envolve uma série de rituais como um velório, um enterro, uma missa (ou outro evento religioso), que proporcionam a todos um tempo para se despedir… Para lembrar das coisas boas que a pessoa fez em vida, das histórias que as pessoas viveram juntas. Isso normalmente era feito ao lado de amigos, parentes e conhecidos, se abraçando, se consolando, chorando, todos juntos. Tudo isso está em suspenso por causa do novo coronavírus. Tudo isso faz muita falta.

“Os rituais são muito importantes no processo do luto, oferecendo um espaço de segurança, conforto e compartilhamento para lidar com uma crise muito intensa na vida das pessoas, que é a perda de pessoas significativas”, explica a professora Maria Julia Kovács, livre docente do Instituto de Psicologia da USP (Univesidade de São Paulo) e referência na pesquisa do luto no Brasil. “Os rituais ajudam a organizar a realidade num momento de crise intensa, como é agora.”

De acordo com os protocolos oficiais de saúde, essas cerimônias tiveram de passar por atualizações. Em São Paulo, a maior cidade do País, por exemplo, todos os velórios estão suspensos.

“Uma parte importante dos rituais é [para] poder estar com familiares e amigos em contato presencial com abraços e proximidade. Essa forma agora está impedida em razão do contágio, então velórios presenciais e também enterros estão limitados no número de pessoas. E agora vemos situação em que não há enterros individuais e sim valas comuns. O impacto tem sido relatado como muito difícil”, descreve Kovács.

A psicóloga e fundadora do instituto 4 Estações, Luciana Mazorra, especialista em atendimentos de perdas e luto, explica que a morte tem o poder de mudar o mundo em que vivemos:

“Quando a gente perde alguém querido, é como se a gente perdesse o mundo tal como a gente acreditava que ele era. E, de fato, a gente perdeu o nosso mundo como ele era, vamos ter de nos adaptar a um novo mundo e reconstruir de alguma forma esse mundo sem essa pessoa. E a gente demora um certo tempo para aceitar essa realidade, para aceitar que a pessoa não vai voltar.”

Com a covid-19 e as dificuldades nos processos de luto, nós estamos pulando etapas, perdendo oportunidades de termos consolos presenciais de parentes e amigos. E isso pode acarretar alguns problemas psicológicos. “São questões que a gente chama de fatores de risco para a elaboração do luto e como consequência dessa ausência: dificultar a realidade da morte”, detalha Mazorra.

Fazer algum ritual, da melhor forma possível, é muito importante, ela explica. “Talvez um velório virtual, um ritual em algum lugar que tenha significado para a família quando possível, mesmo que na ausência do corpo. Tudo isso pode contribuir muito para o processo de luto. De acordo com a particularidade de cada um. Até as celebrações religiosas estão sendo feitas online. Eu tenho ouvido relatos de que não é a mesma coisa, mas as pessoas estão se sentindo amparadas.”

A psicóloga Mariana Bayer, cofundadora do Instituto Trilhar, especialista no atendimento psicológico em situações de perda e luto, sugere diversas possibilidades de novos tipos de rituais para os nossos tempos. Como exemplos, fazer uma oração, desenhar algo que lembre a pessoa que morreu, separar fotos antigas para relembrar momentos da história da pessoa, ouvir músicas.

“Por mais que eu não possa ir num velório, é muito importante ritualizar”, aconselha Bayer. Ela conta o caso de uma paciente que perdeu um grande amigo e enviou um bolo com flores para a família sentir o conforto dela nessa situação. “É algo simples e carinhoso, e as pessoas conseguem sentir o carinho. Mas não podemos esquecer que quando tudo isso passar ainda é tempo de estar junto. O luto demora mais tempo do que a gente está vivendo e, mesmo depois de meses, as pessoas precisam de carinho, afetos e cuidado.”

O novo normal e o luto coletivo

O coronavírus trouxe o que estamos chamando de “novo normal”, uma nova sociedade em que todos teremos de usar máscaras, lavar os produtos depois de chegar do supermercado e evitar contatos sociais. Porém, o que não estamos falando é que neste novo normal estamos todos de luto. Mesmo se você não tenha perdido um parente ou amigo próximo, ou conheça alguém que passou por isso.

“Estamos vivendo um momento de luto coletivo, de perdas — da liberdade de ir e vir, do contato com familiares, amigos —, toda a questão de estarmos isolados socialmente, a distância física. Isso nos leva a presenciar diversas perdas e além disso estamos convivendo com uma constante ameaça de adoecimento e de perder pessoas queridas. Esses fatores causam estresse.”

– explica Luciana Mazorra

A psicóloga Luciana Mazorra ainda destaca que as notícias de tantas mortes nos impactam, sim, de alguma forma. “Por mais que sejam pessoas que nós não conhecemos, estamos vendo nos jornais, entrando em contato com notícias de mortes de conhecidos, de pessoas mais distantes. Todo mundo no geral. Isso nos causa um impacto muito grande que a gente chama de luto coletivo, de uma vivência e uma perda vivida na comunidade de uma forma geral.”

Isso pode levar a uma ansiedade, causar estresse e atrapalhar diversos aspectos de nossa rotina. A professora Maria Julia Kovács destaca que em alguns casos é importante pensar na necessidade de ajuda profissional. “[Precisamos]Reconhecer também se a pessoa precisa de ajuda psicológica, medicamentosa e legitimar essa necessidade, não como fraqueza e sim como um direito, num momento em que as pessoas se sentem vulneráveis”, conclui.