Polêmica sobre filme “Mignonnes” convida ao debate sobre “adultização” e sexualidade infantil

Quando a dança vira problema? Depende do caso e dos valores familiares, destaca Débora Laks, psicóloga especializada em crianças e adolescentes. Jovens imitam astros valorizados pela sociedade — em última instância, muitos meninos sonham em ser jogadores de futebol. Aqui calham algumas questões: a filha está obcecada com as cantoras? Passa o dia a imitar as coreografias e nada mais do que isso? Imita os movimentos na rua, na presença de estranhos, em vez de apenas em casa?

No filme Mignonnes, a situação sai de controle não porque a protagonista Amy apenas dança coreografias de adultos, reflete Débora, mas porque vive desamparada dos pais e age como se fosse a adulta da casa. A coreografia erotizada feita na rua, aos olhos de estranhos, é o sintoma do abandono familiar, e não a causa do problema.

— Não podemos deixar uma criança sozinha em casa, então por que a deixaríamos consumindo livremente conteúdos da internet, que é um mundo? Os adolescentes são vulneráveis a grupos porque não têm identidade pronta, então podem ser levados a fenômenos grupais. É o diálogo com os pais que faz com que não sejam tão vulneráveis. A família tem de auxiliar a depurar o que é bacana — diz Débora.

Preservar a infância das crianças, alertam especialistas, inclui mais do que regular o uso da internet: também é preciso reduzir certas exigências do mundo adulto, o que inclui não matriculá-los em dezenas de atividades extracurriculares, como esportes e cursos de idioma, como se o filho fosse um produto rentável que se prepara para o mercado de trabalho, avalia o médico psiquiatra Francisco Assumpção, professor no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP).

— Adultizar significa também que ela se comporte como um executivo em potencial. Ela pode, inclusive, querer ser poeta. Eu tenho criança que, com cinco anos, chega para mim com déficit de atenção diagnosticado pela escola porque não conseguiu se alfabetizar ao mesmo tempo em português e alemão, sendo que os pais nem falam alemão. Brincar é de suma importância, é um ensaio para a vida adulta — observa Assumpção, também membro do grupo de psiquiatria infantil da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP).

Os pais são a grande referência para os pequenos. A forma como encaram o mundo é que moldará o enquadramento dos filhos, destaca Chrystian Kroeff, professor de Psicologia da Unisinos e especialista em infância. Por isso, pais devem dar o exemplo por atos, não somente por falas.

— A criança, quando brinca, mimetiza e se conecta ao mundo adulto, que a deixa muito interessada. Ela olha e pensa: “que interessante, quero ver como é”. Tem um objeto cultural que chama a atenção, e ela quer brincar disso, como uma forma de se colocar nesse universo — acrescenta o psicólogo.

Para a psicanalista Ana Laura Giongo, talvez o maior problema não seja a filha que dança como uma cantora pop em casa, mas a crença de que mostrar o corpo é a única forma de viver. Cabe aos pais quebrar a imagem construída pela cultura ocidental de que ser mulher envolve seduzir. Ana Laura reflete:

— Não é o papo moralista de não deixar dançar ou desligar a TV quando Anitta ou Pabllo Vittar aparecem, mas de dizer: vocês acham que é por aí que uma mulher se faz interessante? Só tem corpo? O que a Anitta e a Pabllo Vittar têm além do corpo? A mulher, cultural e historicamente, é um objeto de desejo. Esse filme da Netflix mostra que, sem os pais por perto, os filhos vão se apegar somente às imagens que estão aí. Pais devem mostrar outros elementos do que é ser mulher. Você pode admirar Anitta e dançar funk, mas também saber quem foi a Frida Kahlo e ter outras referências femininas que componham a ideia de que mulher não é só corpo.

 

Por Marcel Hartmann