Promover a inclusão e o pertencimento no lugar da dor e da violência epistêmica

“Ser ou não ser, eis a questão”. Assim ficou célebre, em português, a expressão de Hamlet, príncipe da Dinamarca na obra de William Shakespeare, tragédia escrita na virada do século 16 para o 17. No Brasil, o poeta e filósofo Oswald de Andrade a digeriu e transformou em “Tupi or not Tupi that is the question”, no manifesto antropófago de maio de 1928. Manifesto em prol da soberania das formas de ser, sentir e pensar em Pindorama, um dos termos indígenas que identificam a terra das palmeiras, muito antes de ser rebatizada pelos novos colonizadores para a terra do pau-brasil.

Nas últimas semanas, o debate sobre o contraste de percepções relativas à categoria raça e cor, com base na declaração e heteroidentificação das pessoas, assumiu proporções nacionais. Candidatos a uma vaga na USP, autodeclarados pardos, foram contrariados por bancas de heteroidentificação, encarregadas de fazer uma avaliação fenotípica a partir de fotos e imagens de vídeo.

Cabe lembrar que a demanda pelas bancas de heteroidentificação atende a um apelo do movimento social de pessoas negras que, seriamente, visam coibir fraudes no processo de autodeclaração e assegurar que pessoas efetivamente pretas e pardas tenham acesso à universidade, pelo menos na mesma proporção de sua incidência na população geral. Um esforço de equilíbrio diante de dificuldades excepcionais – escravidão, deslocamentos forçados, demonização das tradições, desestruturação das condições de subsistência nos territórios, disseminação intencional de doenças e extermínio em conflitos armados etc. – enfrentadas por pessoas e comunidades negras e indígenas por séculos.

Com a retirada do direito a violações serem perpetradas contra essas pessoas, por exemplo, com o fim da escravidão, seguiu-se a quase completa ausência de medidas de reparação por parte das políticas públicas no Brasil. Medidas que apenas muito recentemente começam a ser implementadas em várias esferas da dinâmica social, tais como a reserva de vagas na contratação pública e no acesso a cursos de graduação e pós-graduação nas universidades.

No que diz respeito à categoria pardo, para identificar pessoas no quesito cor ou raça, tem crescido um debate que envolve diferentes pontos de vista de quem se autodeclara e de quem faz a heteroidentificação. Quando há divergência entre os pontos de vista, o posicionamento de quem faz a heteroidentificação, caso considerado unilateralmente, pode dar margem para injustiças, com a consequente intensificação de dores e sofrimentos historicamente vividos por parcela significativa de pessoas que constroem a nossa sociedade.

Uma violência epistêmica ou epistemológica acontece quando uma determinada visão de mundo se impõe sobre outras, impossibilitando que interpretações alternativas sejam consideradas na determinação de um saber. A noção tem sido usualmente utilizada para entender processos de imposição de conhecimentos de colonizadores sobre conhecimentos de povos colonizados ou populações subalternizadas.

Do ponto de vista psicológico, é pertinente formular as seguintes questões: O olhar de um especialista externo não se torna violento quando se impõe sobre o conhecimento que uma pessoa tem de si, de sua história de vida, de suas heranças transgeracionais? Quem pode saber mais sobre dores, sofrimentos e prejuízos de alguém, oriundos de violações à sua dignidade em função da raça ou da cor? O que fazer quando a heteroidentificação entra em conflito com a autodeclaração?

Diante de impasses, entendo que a saída democrática deva ser pelo cultivo de espaços formativos e restaurativos baseados no pressuposto da boa-fé de todos os participantes. É preciso chamar ao diálogo as partes envolvidas no contraste das percepções de quem se autodeclara e de quem não consegue heteroidentificar.

Tendo em vista as particularidades dos casos, com a disponibilidade de todas as partes para transformar suas compreensões iniciais, torna-se possível amadurecer o conhecimento do que aparece, num primeiro momento, como contraditório.

Promover a inclusão e pertencimento pressupõe encontrar alternativas à reprodução de violências históricas a que pessoas indígenas e negras foram submetidas por séculos ao terem silenciadas as suas vozes, negado o reconhecimento de seus saberes e das suas identidades.

Por: Danilo Silva Guimarães, Jornal da USP, 18/03/2024