“A gente está introduzindo uma cultura arejada para se pensar a formação do professor”, diz professora Maria Elice Brzezinski Prestes sobre os 50 anos do IB-USP

Em entrevista à BALBÚRDIA, a professora e pesquisadora narra sobre o histórico da licenciatura e do Ensino de Biologia no Instituto de Biociências da USP (IB-USP), esclarece o local da História da Biologia no Instituto e problematiza a questão da maternidade na sua trajetória pessoal.

03 de dezembro de 2020 | 16:30

Professora Maria Elice de Brzezinski Prestes é graduada em Ciências Biológicas pela PUC-Paraná (1983). Criou seu primeiro filho durante a Especialização em História da Ciência e Epistemologia na Unicamp (1992) e o mestrado em Ciência Ambiental na USP (1997). Teve seu segundo filho durante o Doutorado na Faculdade de Educação da USP (2003), com período de sanduíche no REHSEIS, da Universidade de Paris 7 - Denis Diderot. Realizou Pós-Doutoramentos na PUC-SP (2007), na Universidade de Montreal (2005); na Universidade de Paris 1 (2008); no Centro Alexandre Koyré de Pesquisa em História da Ciência (2011); na Universidade de Indiana (2014) e na Universidade de Chicago (2017-2018). Atualmente é professora associada no Instituto de Biociências da USP, onde ministra disciplinas de formação de professores de biologia e de história da biologia para estudantes de graduação e pós-graduação. Realiza pesquisas na área de História da Biologia e orienta na linha de História da Ciência e Ensino pelo PIEC-USP.

Bate-bola da Balbúrdia

Um biologo famoso? 
Aristóteles.
Um historiador da ciência? 
Robert Richards.
Um livro?
A Montanha Mágica do Thomas Mann.
Um local específico do IB?
O LabLic, Laboratório de Licenciatura.
Uma memória que aconteceu no IB?
Eu acho que a inauguração do LabLic. O diretor fez questão de fazer uma inauguração formal, convidou gente da Reitoria, dos outros Institutos, da Faculdade de Educação, docentes. Eu acho que esse foi um momento bacana para a gente ser apresentada à comunidade da USP.
Um sentimento com o IB?
O IB é a casa, o abrigo.

Por: Anderson Ricardo Carlos e Mateus Carneiro Guimarães dos Santos

 

Uma das primeiras pesquisadoras a ser contratada no IB-USP com formação em Ensino e com o intuito de trabalhar especificamente nessa área dentro do instituto, professora Maria Elice Prestes descreve sua trajetória na instituição. Ela comenta a reestruturação do curso de Licenciatura em Ciências Biológicas e nos traz sua perspectiva sobre o histórico e o futuro da pesquisa em educação científica nessa unidade da USP. Especializada em História da Ciência, a docente elucida o percurso, a percepção e a importância em relação à linha de pesquisa de História da Biologia e Ensino dentro do IB. Complementando a temática da edição número 2 da BALBÚRDIA, a pesquisadora enriquece a entrevista com sua trajetória pessoal, propiciando uma discussão sobre gênero e maternidade na sua formação e atuação como docente.

 

BALBÚRDIA (B) - Quando e como foi o seu primeiro contato com o Instituto de Biociências da USP?

Maria Elice (ME) - Meu primeiro contato foi quando eu estava fazendo faculdade de Biologia, meu curso de formação foi na PUC-Paraná, em Curitiba. No período da faculdade, eu vim a São Paulo assistir um congresso de Antropologia, se não me engano, organizado pelo meu atual colega de departamento, recém aposentado, Prof. Walter Neves. Isso deve ter sido no comecinho dos anos 80. Depois eu vim em outros congressos da USP ligados ao Instituto Oceanográfico. Mas no IB foi esse o primeiro contato. O que eu gostei muito foi conhecer o Prof. Walter, além de outras pessoas. Outro contato que foi muito relevante, em momento que eu nem imaginava que iria trabalhar ali, mas que parece que sinalizava já para isso, foi num momento que eu lecionava biologia em escola pública - eu dei aula no Ensino Médio no Estado de São Paulo por 11 anos. Num dado momento, deve ter sido na década de 1990, eu estava como coordenadora da área de Biologia, então eu lembro que estávamos elaborando novos materiais para os professores usarem, repensando e tentando construir no grupo um material pra trabalhar em sala, redefinindo coletivamente o currículo de Biologia daquela escola. Aí surgiu e foi trazido, não lembro se foi por mim ou se por algum dos professores, a propaganda de um curso que seria ministrado no Departamento de Genética, um curso de atualização de professores. Eu motivei as pessoas e nós fomos o grupo todo assistir o curso dado por professores do Departamento, que acabaram se tornando meus colegas. O professor, que estava dando o curso e era um astro para a gente, José Mariano Amabis, era autor de livro didático, a gente conhecia de nome. Foi a primeira vez que eu vi aquele experimento de bater morango no liquidificador para ver o DNA, nesse curso, que foi bem bacana. Inclusive quando eu participei da minha banca de ingresso no IB, eu tive a oportunidade também de contar essa história e dizer da memória que ficou: um lugar que realmente congregava o interesse pela Biologia, mas também para o Ensino de Biologia, em particular.

 

BALBÚRDIA (B) - A próxima questão é em relação à área de Ensino de Biologia, que existia de alguma forma nessa época no IB, como foi mencionado pela senhora tanto no curso de antropologia quanto na formação continuada. Conte um pouco mais sobre esse desenvolvimento na área dentro do Instituto.

Maria Elice (ME) - A área de Ensino se institucionalizou no Instituto de Biociências em resposta ao Programa de Formação de Professores [PFP] da USP. Acho que é de 2004 a publicação do caderninho com as diretrizes do PFP. Alguns docentes do IB estiveram envolvidos nesse programa, como o prof. Paulo Sano, do Departamento de Botânica. Junto com outros docentes engajados nessa perspectiva, como a profa. Liria Mori, do Departamento de Genética e Biologia Evolutiva, a área se materializou mesmo no IB com a contratação dos primeiros docentes, que foram a Profa. Suzana Ursi, na Botânica, e eu, na Genética, logo alguns meses depois dela; acho que ingressamos ambas no mesmo ano, 2008. O Programa de Formação de Professores estabelecia que as unidades formadoras nas áreas científicas compartilhassem com a Faculdade de Educação a tarefa da formação nas áreas específicas. Isso também é parte da história bem concreta. Vale ressaltar que antes da nossa entrada, já existiam disciplinas, em diferentes departamentos do Instituto, pensadas, planejadas e ministradas por docentes atentos à formação de professores para a Escola Básica. Claro que esses docentes faziam, e fazem, pesquisa em suas áreas de especialização da biologia e não na linha de pesquisa em Ensino de Ciências ou Educação Científica. Mas lecionavam também optativas livres e cursos de extensão nas diferentes áreas das Ciências Biológicas – como aquele curso que eu fiz com os colegas professores da escola estadual. As disciplinas que eles ministravam e ministram até hoje, naturalmente, objetivam a atualização e aprofundamento de conhecimentos biológicos requeridos para o currículo da escola básica, mais do que para os aspectos pedagógicos da formação para o ensino de Biologia. Essa guinada para a formação pedagógica ocorreu mais fortemente em decorrência de uma grande reforma curricular do Curso de Ciências Biológicas do IB. Após profunda discussão, iniciada em 2004, nos departamentos, houve um replanejamento coletivo que terminou com a implementação de um novo currículo em 2007. Foi uma reforma bastante radical na carga horária das disciplinas, com a criação de um núcleo básico e um núcleo avançado. O curso do período integral passou a ser de dois anos de núcleo básico, com disciplinas obrigatórias, e dois anos de núcleo avançado (ou três e três anos, respectivamente, para o período noturno) só com disciplinas optativas, eletivas ou livres. Assim, apenas com obrigatoriedade de uma carga horária mínima, o núcleo avançado institucionalizava a maleabilidade curricular, de modo que o aluno podia traçar seu próprio percurso formativo, podendo escolher entre várias opções de disciplinas eletivas do Instituto, bem como entre as livres de toda a Universidade. Para fazer esse arranjo, é claro que houve uma transformação profunda no curso anterior, implicando que disciplinas com oito horas semanais, por exemplo, passassem a ter quatro horas apenas no núcleo básico. Então, uma das coisas que aconteceu com a reforma foi que especialmente as disciplinas que tiveram essa redução à metade de sua carga horária, projetaram disciplinas complementares, fora do núcleo básico, como optativas, e simultaneamente foram criadas em duas variações, uma voltada ao bacharelado e outra voltada à licenciatura. Esse movimento curricular consolidou os esforços dos professores, “cientistas”, que desenvolviam pesquisas nas diferentes subáreas das ciências biológicas, levassem em conta a responsabilidade na formação de professores da escola básica e superior. Além disso, o currículo de 2007, conforme o estabelecido no PFP da USP, incluiu novas disciplinas que deveriam tratar de conhecimentos pedagógicos a serem mobilizados na aprendizagem específica de ciências biológicas, passando a compartilhar, portanto, essa tarefa, com a Faculdade de Educação. Foi nesse momento que a Suzana e eu entramos no IB, 2008, quando começariam a ser oferecidas as disciplinas específicas de formação de professores. Hoje somos seis professoras da área de Ensino: duas no Departamento de Zoologia e uma em cada um dos outros quatro departamentos (na Genética e Biologia Evolutiva, na Botânica, na Ecologia e na Fisiologia). O Instituto já teve também dois docentes de ensino contratados no Departamento de Fisiologia, mas infelizmente um deles, o professor Hamilton Haddad, um colega nosso muito talentoso, muito querido e admirado pelos alunos, um companheiro muito estimado por nós docentes, passou por um grave problema de saúde que o obrigou a se aposentar. Uma pena, de verdade! Ficou na Fisiologia a profa Maíra Batistoni, também uma jovem talentosa que trará muitos frutos para a área. Vale mencionar também que os demais docentes continuaram a ministrar disciplinas voltadas à formação do professor para a escola básica, como Fisiologia para o Ensino Médio, Teoria e Prática de Educação Ambiental em Unidades de Conservação Marinhas, Estratégias Pedagógicas no Ensino de Botânica: Importância das Aulas Práticas, Biologia Molecular para a Licenciatura, Genética Prática para os Ensinos Fundamental e Médio, entre outras. Isso é muito bom, porque cria uma cultura favorável à formação de professores que se espalha, que é mesmo gerada no interior de cada Departamento. Claro que com a nossa entrada, e na medida em que fomos adquirindo experiência, boa receptividade entre os alunos, e que fomos nos fortalecendo como um grupo engajado e coeso em torno de fins comuns, conseguimos novas conquistas. Um momento importante foi o de promover uma nova reforma curricular, dessa vez específica à Licenciatura do Curso de Ciências Biológicas. Tínhamos dois objetivos principais. Um deles era o de introduzir disciplinas que atravessassem as subáreas definidas por cada departamento. Na medida em que as vagas de ensino foram sendo preenchidas, fomos criando disciplinas novas como Abordagens Interdisciplinares em Educação Ambiental, Biologia e Sociedade, Natureza da Ciência e Ensino por Investigação, História da Biologia e Ensino, Filmes no Ensino de Biologia. O segundo objetivo, atingido em 2015, foi o de podermos garantir essa ampliação do leque de disciplinas e seu oferecimento regular por meio da extinção do regime de optativas eletivas na Licenciatura, tornando todas as disciplinas optativas como livres. Posso dizer com muita segurança hoje que a reforma foi um sucesso, pois todas essas disciplinas estão sendo oferecidas com regularidade e têm atraído grande quantidade de alunos, inclusive de outras unidades da USP. Além dessa reforma, uma grande diferença marcada pelas vagas a docentes da Licenciatura no IB foi a introdução, e constante desenvolvimento, da área de pesquisa em Educação Científica no Instituto. Seguimos apostando no caminho desenhado pelo PFP e pela reforma curricular de 2007 e, em vez de almejar um sexto departamento dedicado ao ensino, nos congregamos em torno do Laboratório de Licenciatura (LabLic), que abriga docentes dos cinco departamentos e alunos de graduação e pós-graduação interessados na especialização em educação científica. Por fim preciso mencionar também que se o apoio de muitos colegas, assim como o apoio institucional mesmo da parte dos Conselhos de Departamento, da Comissão de Graduação e da própria Direção do IB foi sempre bastante significativo, lamentavelmente, o mesmo não ocorreu, de modo uniforme, na pós-graduação do Instituto. As especificidades da pesquisa em ensino, pertencente às humanidades e sujeita a processos avaliativos distintos, bem como alguns preconceitos comuns às microculturas científicas geraram barreiras que ainda não foram inteiramente vencidas para que se possa falar de uma integração completa. Felizmente, todas as seis docentes atuais da Licenciatura estão vinculadas a programas de pós-graduação, senão no IB, na Faculdade de Educação e no Programa Interunidades (PIEC). Então a nossa pesquisa e a formação de pesquisadores em ensino de ciências se realiza por meio de um desses programas de pós-graduação e o LabLic é o espaço físico comum no qual compartilhamos nossas ações.

 

BALBÚRDIA (B) - Outra questão derivada dessa discussão é sobre a área de História e Filosofia da Ciência. Como a senhora descreveria o desenvolvimento dessas linhas no IB?

Maria Elice (ME) - Antes de 2008, não havia no Instituto um pesquisador especializado em História da Ciência, enquanto indivíduo de uma comunidade que publica em periódicos da área, que frequenta congressos da área. Havia, sim, vários docentes com bastante interesse pelos conhecimentos da área História da Ciência e História da Biologia em particular. Diversos professores introduziam e introduzem conteúdo histórico em seus cursos. Gostaria de detalhar o exemplo da disciplina de Genética, ministrada no primeiro semestre do curso. Na reforma de 2007, a disciplina estabeleceu uma parte teórica e uma prática. Na parte prática, os alunos fazem uma pesquisa no laboratório e, ao final, têm que escrever, no formato de um artigo científico, os resultados obtidos nessa pesquisa concreta com as moscas das frutas, as drosófilas, no laboratório. Essa atividade “mão na massa” fornece uma primeira e muito importante vivência da pesquisa em biologia para os alunos ingressantes; e na parte teórica da disciplina, seguem aulas baseadas em uma apostila que consiste na tradução adaptada de um livro de história da genética. Assim, a equipe docente dessa disciplina sempre considerou importante o ensino da história da ciência. Inclusive, um dos docentes, o prof. Carlos Vilela, mantém um Centro da Memória do IB. Para dar uma dimensão do significado dessa iniciativa na disciplina de Genética, preciso me remeter a uma análise realizada no início da década de 1990 por um pesquisador que tem um papel importante enquanto articulador da criação de um fórum próprio à intercessão da história, filosofia e sociologia da ciência com o ensino de ciências, o professor australiano Michael Matthews. O Matthews[1], em uma publicação já antiga, apoiado no estudo de Richard Duschl[2], fez um levantamento de disciplinas que introduziam a história da ciência no ensino superior de diversas universidades, desde os anos 1950. Matthews identificou dois tipos de iniciativa existentes até então. Uma delas era a de promover cursos que ele chamava de “integrados”, que é exatamente como esse caso do IB que mencionei: pegar uma disciplina científica e fazer com que a história dela seja a linha condutora de todo o curso. A outra iniciativa que ele identificou nos currículos existentes era a de introduzir episódios da História da Ciência, como sugerido por Thomas Kuhn, como estudos de caso históricos em um curso regular. E a gente traduziu isso, que o Matthews chama “add on approach”, a gente traduziu (a Ana Maria de Andrade Caldeira e eu) como “abordagem inclusiva” da história da ciência. É o caso de quando um curso regular, de biologia atual, introduz, em alguns momentos, algum episódio histórico. Por razões diversas, os dois formatos, das abordagens integrada e inclusiva, possuem cada qual suas vantagens e limitações. Esse curso de Genética segue a abordagem integrada. Ou seja, ao invés de ser um curso de genética que segue a sequência temática comum aos manuais de genética do ensino superior, é um curso inteiramente pautado pela história da genética. É uma iniciativa relevante que caracteriza o reconhecimento do departamento e particularmente da equipe de professores envolvida para o papel da História da Ciência na formação dos biólogos. Agora, eu diria que é uma iniciativa que acaba não tendo uma grande repercussão entre os alunos, talvez por ser disciplina do primeiro semestre do curso, talvez porque o texto histórico fica como material de leitura opcional em casa, como subsídio à eventual discussão nas aulas teóricas. Então, aquilo fica um pouco como pano de fundo e quando alguns desses alunos cursam a disciplina que ministro no núcleo avançado, de História da Biologia e Ensino, faço sempre uma provocação para que conectem a lembrança daquelas primeiras aulas com o que estamos trabalhando. Esse trabalho efetivo de introdução da história da ciência realmente não é banal, é na verdade um grande desafio. Basta considerar que já são praticamente 30 anos de existência do grupo que reúne educadores com historiadores e filósofos da ciência, o International History, Philosophy, and Science Teaching Group (IHPST) para cuja criação dedicou-se muito o prof. Michael Matthews que já mencionei. Ainda há um longo caminho pela frente para que a História da Ciência, e a Filosofia da Ciência, a Sociologia da Ciência, a Psicologia da Ciência, se tornem realmente parte da formação, seja de professores, de qualquer nível de ensino, seja de cientistas de qualquer área das ciências naturais, humanas, biomédicas, exatas. Então, para resumir, existiram no Instituto iniciativas de ensino de história da ciência, mas, até onde tenho conhecimento, não houve pesquisa em história da ciência. Com a minha entrada, a história da ciência passou a integrar regularmente o conjunto das disciplinas optativas da graduação e pós-graduação, além de promover a pesquisa em História da Biologia na Educação Científica. Isso foi possível pela inestimável acolhida que o PIEC sempre deu à Linha de Pesquisa de História, Filosofia e Cultura da Ciência. Daqui do IB, a Daniela Scarpa atua nessa Linha, mais pela Filosofia e Cultura da Ciência, e eu pela História da Ciência.

[1] MATHEWS, Michael R. Science Teaching: The Role of History and Philosophy of Science. New York: Routledge, 1994.

[2] DUSCHL, Richard A. Science Education and Philosophy of Science: Twenty-five Years of Mutually Exclusive Development. School Science and Mathematics, v. 85, n. 7, p. 541-555, 1985.

 

BALBÚRDIA (B) - Essas iniciativas anteriores de introduzir História da Genética no IB se basearam nos trabalhos de Matthews?

Maria Elice (ME) -  Não, eles não usavam Matthews, creio que nem o conheciam, e essa é outra diferença que precisa ser contextualizada. São cientistas, são professores e investigadores de genética, com interesse pela história da área. Então eles pegaram um material já existente de história da biologia, traduziram e davam essas aulas. A grande diferença entre eles e o que a gente faz, seja eu ou outros historiadores da ciência do Interunidades (PIEC), é que eles não se dedicam à pesquisa na área de história da ciência, nem à pesquisa da aplicação da história da ciência no ensino. Eu mesma só fui conhecer o Matthews e outros tantos pesquisadores do IHPST porque comecei a fazer pesquisa em história da ciência no ensino. Assim como os biólogos especializados, os historiadores da ciência em geral, não conhecem, não se dedicam ao ensino. Para os demais professores do IB, segundo eu avalio, a história da ciência é um conteúdo a mais, um conteúdo que consideram relevante porque mostra como a ciência é feita e como o conhecimento biológico transformou-se ao longo do tempo. Com isso, aspectos relevantes da natureza da ciência vão sendo trabalhados, mas são essencialmente voltados para a aprendizagem da própria ciência. O que é ótimo. Mas eles não transitam nessa subcultura no âmbito da pesquisa, pois, naturalmente, dedicam seu tempo e esforços para a investigação nas áreas especializadas das ciências biológicas. Assim como acontece com os historiadores da ciência em geral. Em um congresso de história da ciência, especialmente fora do Brasil, pouco se conhece ainda da pesquisa que usa história da ciência no ensino. Cada uma dessas subculturas se institucionalizou em tempos próprios; pode-se dizer que a institucionalização da pesquisa biológica, enquanto área já separada da geologia, ocorreu no final do século XVIII, início do XIX; a institucionalização da história da ciência ocorreu no início do século XX; a história e filosofia da ciência no ensino passou a contar com congressos e periódicos próprios só no final do século XX. O que Matthews e tantos outros pesquisadores, de diversos países, fizeram foi delimitar essa nova “zona de troca” que partilha de uma linguagem comum mínima, inteligível aos praticantes da comunidade de ensino e das comunidades de história, filosofia e sociologia da ciência. Essa nova área, por assim dizer, é explicada pela sociologia da ciência como uma intersecção que se concretiza como um tipo de comunicação transversal que se estabelece entre domínios científicos diferenciados e acaba por produzir um domínio ir um domínio novo[3].

[3] Como descrito no livro Controvérsias sobre a Ciência: Por uma Sociologia Transversalista da Atividade Científica, de Terry Shinn e Pascal Ragouet.

 

BALBÚRDIA (B) - Qual é a importância da História da Ciência para o Ensino de Biologia?

Maria Elice (ME) - Eu acho que para resumir, vou colocar dois pontos: História da Ciência é um instrumento, uma ferramenta, um meio, um caminho que auxilia, que facilita a aprendizagem da própria Ciência atual. Existem conceitos científicos bastante complexos, bastante abstratos e levar o aluno a percorrer o caminho de construção desse conceito historicamente, facilita a compreensão desse conceito. A História da Ciência é uma ferramenta didática bastante relevante, enquanto tal. Eu não tenho problemas em reconhecer essa utilidade prática, digamos, pragmática, da História da Ciência. Então, esse é um lado. O outro lado é que a História da Ciência passa a ser fundamental para o próprio desenvolvimento dessa Ciência. Seja, para o pesquisador que está atuando em Ciência, se ele só tiver uma visão prática de laboratório, de pesquisa, de computador, de bancada, do que for, de campo, sem conhecer a história da sua própria atividade científica, ele pode ter uma visão muito limitada do alcance do que ele faz, das metodologias que ele está empregando, da compreensão, da elaboração ou não de hipóteses, até, daquele problema que ele está avaliando. Portanto, eu acho que a História da Ciência enriquece tanto a formação do cientista, enquanto instrumentação para o próprio desenvolvimento da investigação científica, quanto para o lugar da Ciência na sociedade, a sua relação com tecnologia, a sua relação com os momentos históricos diferentes. Agora em plena pandemia mais do que tudo, a gente está vendo como ajudaria conhecer um pouquinho a história das pandemias para entender o que está acontecendo hoje. A relação que a Ciência tem com a sociedade quando a gente vê as pessoas lendo hoje _Science_, _Nature_, _Jama_, a quantidade de informação nova que sai sobre medicação, sobre vacina ou sobre distanciamento social, uso de máscaras, tudo isso que era um domínio de um conjunto de _experts-, seja da área médica, seja das biológicas, seja do que for. Agora está aí, fazendo parte da realidade de qualquer cidadão. E quanto isso está disponível para essas pessoas. Durante a pandemia, uma das coisas mais surpreendentes foi conversar com pessoas que não são da academia, pessoas da sua família ou amigos de outras áreas, pessoas que fizeram curso superior, e perceber qual é a concepção de ciência que se tem, que é ainda uma concepção muito empírica, indutivista. É muito disseminada ainda a visão de que a Ciência estabelece verdades absolutas, segundo uma percepção de ciência muito século XIX ainda, do assim chamado “indutivismo ingênuo”[4]. Não é nem ainda a concepção disseminada por Popper, não é nem hipotético-dedutiva[5]! Essa percepção pública, como se diz, da ciência só reforçou o que a gente já sabe por conta das pesquisas da área de Natureza da Ciência que levantam, há pelo menos 20 anos, em diferentes públicos, como as pessoas têm uma noção de Ciência do século XIX. Com os próprios cientistas, essa noção também é muito arraigada. Por isso a História da Ciência e a Filosofia da Ciência é fundamental, tanto para a formação de qualquer cidadão que vive em um mundo permeado pela ciência, quanto para o próprio cientista. Para o ensino das ciências, é um instrumento contextualizador, permite fazer ligações com o cotidiano, mais especialmente voltado para a compreensão do conhecimento científico atual. Não se trata de formar historiadores da ciência lá na escola básica. E aí se coloca o maior desafio: enquanto na Universidade eu posso dar um curso de História da Ciência pela contribuição intrínseca que ela propicia à sua formação, mas na escola básica não se trata disso. A história da ciência na educação básica tem que ser outra, tem que ser uma história da ciência focada mesmo em episódios que habilitem esse estudante a compreender o processo de construção de conhecimento e não voltada a apreender o conteúdo mesmo da história da ciência. Aliás, eu li isso na entrevista com o Paolo Rossi (concedida para a Revista BALBÚRDIA no número 1). Eu estou inteiramente de acordo. No próprio ensino superior, eu acho que a história da ciência é adequada no final do curso. Então, um dos problemas que eu vejo desse curso de história da genética é ser justamente no primeiro ano. O aluno mal se dá conta disso, eu pego esses alunos no fim do curso, quando eles estão fazendo comigo a disciplina obrigatória na licenciatura. E aí eu falo sempre: “Vocês lembram que vocês fizeram lá em Genética?” Eles localizam lá no fundo da memória e resignificam. Claro, eles mal sabiam ainda o que era Ciências Biológicas [risos]. Adoraria trabalhar com história da ciência direto, mas não vou trair aquelas pessoas que me avaliaram na banca do concurso que prestei para assumir a responsabilidade das disciplinas já planejadas, e em transformação, da formação de ensino. E com o passar dos anos, eu fui achando um espaço para a disciplina de História da Biologia como optativa – só consigo ver mesmo como optativa e quando o aluno já está mais maduro nas próprias Ciências Biológicas.

[4] Segundo Alan Chalmers, o indutivista ingênuo considera que a ciência começa com a observação do mundo por meio dos órgãos dos sentidos, gerando afirmações que constituem a base a partir da qual as leis e teorias científicas. As justificativas para qualificar esse raciocínio indutivo como ingênuo são várias, e são rastreadas desde o século XVIII quando o filósofo David Hume mostrou os problemas do indutivismo. Ao longo do século XX, filósofos da ciência mostraram que a própria observação depende de teorias, seja porque conhecimentos e experiências afetam o que o observador vê. Além disso, as afirmações de observação são feitas com a linguagem de alguma teoria e são tão sujeitas a falhas quanto as teorias que elas pressupõem (Alan F. Chalmers, O que é ciência afinal? São Paulo: Brasiliense, 1993).

[5] Karl R. Popper, filósofo da ciência que desde a década de 1930 publicou obras em que apresenta o falsificacionismo, pelo qual admite que a observação é orientada por, e pressupõe, teoria. Com isso, Popper abandona a noção de que as teorias podem ser estabelecidas como verdadeiras a partir da evidência da observação, em detrimento de que as teorias científicas são conjecturas especulativas que passam por testes rigorosos. Embora não se possa dizer que uma teoria é verdadeira, pode-se confiar que é a melhor disponível.

 

BALBÚRDIA (B) - Por outro lado, como a área de Ensino, História e Filosofia da biologia, é vista pelas demais áreas dentro do Instituto?

Maria Elice (ME) - É bem vista, eu acho que dá para dizer isso [risos]. Sério, a grande maioria dentre os quase 120 docentes do Instituto apoiam a criação das vagas e do LabLic. Mas no início, quando eles estavam fazendo a reforma curricular, houve uma certa resistência. É até uma ironia, a gente sabe que inicialmente o Departamento de Zoologia não queria contratar um professor da área de ensino. Então, quando a USP estava propondo o Programa de Formação de Professores e a reforma curricular estava em curso no Instituto, a proposta que surgiu imediatamente é que cada um dos cinco departamentos contratasse um professor para a área de ensino. Todos os departamentos aprovaram, menos o de Zoologia. Na época o diretor era o professor João Stenghel Morgante, justamente do meu Departamento de Genética e Biologia Evolutiva. Ele era outro docente que sempre teve interesse na área, ministrando inclusive uma disciplina optativa livre sobre a evolução do pensamento biológico. O Morgante é uma pessoa que também sempre valorizou muito o ensino, apoiando iniciativas na Sociedade Brasileira de Genética, como a criação da revista Genética na Escola e fóruns próprios nos congressos da Sociedade. E então, reza a lenda [risos], que quando foi a hora de mandar o documento para a Reitoria, o prof. João Morgante não quis nem saber, encaminhou o pedido para cinco professores [risos]. Foi uma atitude incisiva da parte dele, essa de bancar o pedido de cinco docentes, sim, um para cada departamento. Hoje, eu digo que é uma ironia, porque, como eu te falei a pouco, somos em seis docentes contratados especialmente para a área de ensino, para ministrar as disciplinas específicas da formação de professores. Primeiro a gente conseguiu um para cada departamento e depois começamos uma batalha para conseguir mais um para cada um dos departamentos. E qual é o departamento que tem dois docentes hoje? O de Zoologia! [risos] São as professoras Rosana Louro Ferreira da Silva e Alessandra Bizerra, ocupando duas vagas no departamento de zoologia, justamente aquele que inicialmente nem queria ter professor de ensino. Claro que a gente enfrenta dificuldades para conseguir novos docentes; isso não só para a área de ensino, mas para qualquer área, especialmente nos últimos anos. Não vou falar do restante da USP, mas no IB, não apenas queremos crescer, mas temos evidências de que há espaço para crescer. Apesar de todas as dificuldades, a equipe está conseguindo mostrar isso. E eu tributo isso não só a uma, digamos, abertura, interesse, acolhida do Instituto para a área, mas ao trabalho que vem sendo realizado lá. Desde que a gente entrou, o número de alunos interessados na Licenciatura aumentou expressivamente. A gente está introduzindo uma cultura arejada para se pensar a formação do professor. É lento, não é de uma hora para outra. A gente passou a ter um número grande de alunos, um número expressivo de alunos. Não é a maioria ainda que se forma na Licenciatura, mas há indicadores importantes de que o aluno do IB está realmente interessado em se preparar para ser professor da escola básica. A tradição comum era do aluno fazer a licenciatura como uma segunda opção de trabalho futuro, não que ele estivesse realmente pensando em ser professor, ele fazia para se garantir, aproveitando o período em que já está na faculdade. Então, o que está acontecendo agora, quando ele faz primeiro a licenciatura e depois o bacharelado, ele deixa muito claro que a intenção dele é, desde sempre, ser professor. E porque isso não era tão fácil no IB, era um desafio que a gente sempre discutia muito entre nós. O Instituto de Biociências é uma unidade de excelência na formação de biólogos, de pesquisadores, de bacharéis em biologia em todas as áreas, para fazer pesquisa nas diferentes especialidades das Ciências Biológicas. Então, o desafio para a gente era grande, no sentido de que a nossa “concorrência” era alta, a nossa barra de avaliação era bem alta, a gente tinha que dar um salto muito grande para poder atrair alunos. Não é concorrer no sentido de roubar os alunos do bacharelado para a licenciatura, mas de atrair esse aluno do bacharelado – que entra no Instituto de Biociências da USP para ser um pesquisador de laboratório – para uma possibilidade real, de mesmo status científico, que é permanecer envolvido com a pesquisa: mas na área de Ensino. Acho que é isso que a gente tem conseguido fazer. A gente tem conseguido mostrar no Instituto. Mas essa dificuldade passa até pela linguagem, porque ainda ouvimos com frequência: “tem o pessoal que faz pesquisa e tem o pessoal do ensino”. Então temos sempre que retrucar: “não, espera aí, todo mundo faz pesquisa. Só que tem o pessoal que faz pesquisa em Biologia e o pessoal que faz pesquisa em Ensino de Biologia” [risos]. A gente teve e ainda tem a necessidade de se colocar como pesquisadores, tanto para os colegas, quanto para os alunos. Essa também é uma realidade, é uma configuração que a gente foi mostrando para os alunos. A gente está lá sim, pensando em professores da escola básica, mas professores pesquisadores. E não só o professor reflexivo da sua própria prática. Professores pesquisadores do Ensino ou da Educação Científica. Apesar de algumas dificuldades e conflitos pontuais, o Instituto tem essa abertura, e as vozes ainda avessas à mescla das duas culturas, das biológicas e das humanas, são, felizmente, cada vez menos ouvidas. Eu posso dizer, com tranquilidade de que desde 2008 contamos com um forte apoio das sucessivas diretorias, e até antes disso, como no episódio do João Morgante. A profa Liria Mori e o Paulo Sano arregaçaram as mangas para garantir a criação do LabLic. O laboratório de licenciatura foi criado em um momento em que a universidade estava “bombando” com muito dinheiro, com muita atividade. Então a disputa por espaço também era muito grande, porque tudo crescia. Os grupos de pesquisa cresciam. Conseguir aquele espaço, que é um espaço generoso, além de ser um lugar muito agradável, muito bonito. É um espaço generoso em termos de metragem quadrada, conseguir aquele espaço foi uma conquista bem importante na época. E depois a reforma do espaço, a implantação do laboratório, todo o mobiliário, verba para equipamentos e mobiliário, tudo isso foi uma conquista relevante. Se não tivéssemos o apoio da direção, nunca iria se concretizar. Esse é um motivo forte de que o Instituto, sim, investiu na área.

 

BALBÚRDIA (B) - Aproveitando a questão, e do ponto de vista dos alunos? Como a senhora percebe que eles veem essas áreas?

Maria Elice (ME) - Então, os alunos passaram a cursar em maior número as nossas disciplinas. A reforma [curricular] de 2015 foi importante para isso. A licenciatura hoje tem uma excelente procura e uma oferta bem variada de disciplinas. Como dou aula na disciplina de supervisão de estágio, no final do curso, em que a maioria dos alunos está para se formar, posso perceber nitidamente que aqueles que passaram pelas disciplinas que oferecemos já se apropriaram de uma outra cultura sobre o ensino. Eles já sabem que não há “receita de bolo” para dar aula, mas que ir para a licenciatura implica também em questionar o ensino tradicional. Eles chegam nos estágios já conhecendo e instigados com a área de pesquisa em Ensino de Biologia. Agora, o que eu tenho que ser honesta é em dizer que alguns alunos acabam passando ao lado dessa formação que a gente está dando, porque eles de fato chegam nesse momento, e eles fazem outras disciplinas livres pela USP, coisa a que têm direito. São casos raros, mas que existem. Então, tem gente que está passando ao largo. Eu não tenho contato com esse aluno, mas o identifico nas cerimônias de colação de grau – eu imagino que ele é um aluno que talvez ainda tenha uma visão distanciada da realidade da formação do professor de Biologia hoje no IB. Para os alunos que acompanham nossas disciplinas, eu tenho certeza que eles têm uma visão bem diferente do que era quando eu entrei lá. Ou seja, [a visão de] que a licenciatura era só uma garantia para o caso de ele não conseguir um emprego em campo da biologia ou não conseguir ou não querer fazer uma pós-graduação. Enquanto ele não conseguisse se inserir numa universidade de pesquisa, ele teria essa carta na manga. Agora esse lugar tem sido transformado. Hoje o aluno que faz licenciatura tem plena consciência que ele vai poder ser também um pesquisador e quando ele entrar em um mestrado, doutorado, ele vai estar investindo não só na formação em Ciências da escola básica, mas de formação de formadores da escola básica, e na sua própria carreira como pesquisador da área. Essa visão é nova, ela é decorrente da implantação do Programa de Formação de Professores da USP no Instituto.

 

BALBÚRDIA (B) - Vamos entrar em outro bloco, saindo um pouco do IB, indo mais para a trajetória pessoal da senhora. Qual foi o maior desafio que a senhora encontrou para conciliar a maternidade e o doutorado? De alguma forma isso refletiu na sua prática docente?

Maria Elice (ME) - Eu acho que o desafio maior não foi tanto no doutorado e sim no mestrado. Eu era mais jovem, com menos estrutura, na época que eu dava aula justamente na escola básica, portanto, com salário muito baixo e menos condições. Minha família é de Curitiba, eu fiz a Biologia lá, eu vim sozinha para São Paulo, então eu não tinha aqui em São Paulo uma estrutura de família, com vó, com tio, com primo, que pudesse ajudar. Então realmente foi tudo um grande desafio. Tudo isso eu vivi durante o mestrado, e um dos impactos foi que eu fiz um mestrado muito longo. Não só por conta dessa jornada tripla, porque além do mestrado, de ter um filho, eu dava aulas em escolas e eu tinha um outro trabalho que era muito bacana, junto a um programa de filosofia para crianças. A minha jornada era das 6 da manhã à meia-noite, todo dia. Então foi bem pesado e isso, é claro, fez com que meu mestrado demorasse bastante tempo. Não foi só essa a causa do mestrado longo. Ele também ocorreu por conta de que eu fiz mestrado em Ciência Ambiental na segunda turma que embora já tivesse tido da primeira para a segunda turma um corte na carga horária, ainda foi um mestrado absurdo em termos de carga horária. A gente praticamente fazia um outro curso de graduação naquele mestrado. E por outro lado, sim, a tripla jornada. Ser mãe, trabalhadora e estudante ao mesmo tempo. Quando eu fui para o doutorado, eu tive meu segundo filho. Foi um tempo longo depois, eu digo que sou mãe de dois filhos únicos com 12 anos de diferença entre os dois. Aí eu já estava em outra fase da vida com mais apoio, já podia contratar uma pessoa para ficar com o bebê, já tinha auxílio nesse sentido. E mesmo que hoje os homens ocupem um lugar diferente já na estrutura familiar, ainda é muito mais sobrecarga da mulher a tarefa da organização doméstica. Não digo tanto da educação dos filhos, como eu sei que foi, por exemplo, para minha mãe. A questão da educação dos filhos, na geração dos meus pais, era uma responsabilidade integral da minha mãe. Hoje, com o pai do meu segundo filho, não é assim, claro. Mas ainda assim a organização doméstica passa muito pela mulher, assim como passa hoje, na própria pandemia a gente vê a dificuldade que nós mulheres ainda temos, porque a gente tem que dar conta. A sobrecarga de tarefas para a gente é maior do que para os homens ainda. Por mais que exista uma outra formação, dos meninos, dos jovens pais. Até outro dia eu vi um post de um sobrinho meu, eu achei superbacana. Ele dizia, “olha, não é uma questão de ajudar em casa, é de compartilhar as tarefas domésticas, que são de todos”. Eu falei, puxa, uma pessoa que deve estar nos seus 35 anos e que está bancando esse discurso, e está tentando ser esse novo homem dentro de casa, que não vê como alguém que está ajudando a esposa no momento da pandemia, mas que realmente está compartilhando. A gente está numa sociedade que ainda está vivendo essa transformação, então isso ainda acontece. E eu não sei se foi por isso que você perguntou, mas eu lembro alguns anos atrás, quando começou o movimento do “USP Mulheres”. Eu sei que em algum momento eu recebi uma mensagem assim discutindo essas dificuldades da mulher pesquisadora, mãe. E aí se discutia isso, puxa, a gente considera que fazer a pesquisa, publicar, tudo isso! E nós não contabilizamos que também tivemos um filho, que passamos por uma gestação, passamos por um período de aleitamento, por um período de cuidado com filhos, tão intenso que são os primeiros anos de vida. Isso tinha que contar na nossa vida profissional. E foi aí que eu introduzi no Lattes. Foi uma espécie de uma campanhazinha que nós fizemos, assim, “Vamos colocar no Lattes, gente, tem que colocar. É a forma da gente alertar as pessoas, né?” Hoje, por exemplo, no meu resumo lá no Lattes, eu menciono os filhos junto com o mestrado, junto com o doutorado. Porque é uma outra frente. É a tripla jornada que a gente tem que é diferente de você cuidar da casa, da alimentação diária. É realmente cuidar de outra vida, tem que ser reconhecido como tal. Assim como a gente está vendo agora na pandemia, já houve iniciativa de docentes mulheres, o “USP não cala”, de junto à reitoria, considerar diferentemente na avaliação que agora vai ser feita. Agora a USP vai fazer avaliação docente permanente, não vai ser mais apenas a avaliação no período probatório, inicial, dos três primeiros anos após o ingresso, mas de cinco em cinco anos, para todos os docentes da USP. Já se levantou essa questão, que as mulheres têm que ser avaliadas de um modo diferente nesse ano de 2020, por conta dessa sobrecarga. E na semana passada, se eu não me engano, já veio inclusive um informe da reitoria sinalizando para esse sentido. Nada muito concreto, mas já sinalizando que será considerado esse aspecto. Enfim, foi dada uma posição da universidade reconhecendo esse lugar especial que a mulher mãe ocupa durante a pandemia. Não é mais o meu caso, porque meus filhos já são adultos, mas certamente é uma discussão bastante relevante para todas as mães de filhos pequenos, principalmente, é bem importante que ela aconteça. Meu percurso pessoal já mostrou isso e o que posso dizer é que quando eu estive no mestrado e no doutorado, ninguém falava sobre isso. É realmente um reconhecimento que é bem recente, que a gente tem que saudar como bem-vindo. De fato, nós somos trabalhadoras de tripla jornada. Muda muito que isso seja levado em consideração. Porque senão, você pega o indicador, por exemplo, os últimos dois anos. “Ah, não publicou. Tá certo? Pera aí, não publicou por quê?” É isso que agora essa nova avaliação da USP está tentando mudar. Ela ainda vem, mas a intenção nessa revisão dos critérios para a próxima avaliação é que se leve em conta o conjunto das atividades do docente. Se reconhece, nessa nova sistemática que efetivamente há docentes mais voltados para a pesquisa, outros mais voltados para o ensino e ainda outros mais voltados à extensão.  Então você não pode pegar a produtividade de um docente voltado à pesquisa e comparar com outro que está trabalhando mais na graduação, ou trabalhando mais na extensão, com base nos mesmos indicadores. Então, deve-se reconhecer as especificidades e a contribuição de cada um desses eixos. E além desses eixos, no caso da mulher, mãe, você tem que compensar. Não é justificar: você tem que contabilizar. Tem que entrar nesse cálculo da produtividade.

 

BALBÚRDIA (B) - Qual o futuro que a senhora vê para a área de Ensino de Biologia dentro do Instituto? 

Maria Elice (ME) - Eu acho que vai crescer, vai continuar o trabalho que vem sendo feito pela equipe toda, que é muito sério, muito engajado, e razoavelmente coordenado. Talvez seja possível, no futuro, um projeto de pesquisa integrado de toda a equipe. Ainda que cada docente desenvolva sua linha específica de pesquisa, talvez seja desejável ainda algum tipo de pesquisa integrada, como os projetos temáticos da Fapesp. A área de pesquisa em ensino no Instituto seria fortalecida, inclusive com verbas e visibilidade. Do ponto de vista da atuação na graduação, o trabalho já é bastante integrado, inclusive com docentes da Faculdade de Educação do Departamento de Ensino voltados à Biologia. Neste semestre [2º semestre de 2020], por exemplo, acabei de saber que estamos com quase 100 alunos matriculados para a disciplina de estágio. Ou seja, a gente está chegando perto do mesmo número de alunos que entram no IB a cada ano, 120 alunos. Para uma disciplina de fim de curso, é bastante significativo. Eu acho que a gente vai continuar nesse bom caminho e como referência para outros cursos de formação de professores no Brasil. Algumas de nossas colegas atuam no diálogo entre a Universidade e as Secretarias Municipais de Educação, que refez o currículo com base no Ensino por Investigação, com a participação da professora Daniela Scarpa junto com as colegas da Faculdade de Educação. A Rosana Louro também atua em projeto junto à Secretaria Municipal e a Alessandra Bizerra atua nos museus. Então, a equipe interage por meio das atividades das docentes que também têm levado esse trabalho para fora do IB. Tudo isso só fortalece ainda mais a área e, certamente, constrói esse tipo de iniciativa que ajuda a sedimentar o futuro da pesquisa em ensino no IB.