“Respeito”, diz professora Maria Eunice Marcondes sobre os 50 anos do IQ-USP

Em entrevista, a professora e pesquisadora comenta sobre o lugar do Ensino de Química nos 50 anos do IQ-USP. 

 

 

Profa. Dra. Maria Eunice Ribeiro Marcondes é bacharela e licenciada em Química pela Universidade de São Paulo (1972) e Doutora em Química Orgânica pela Universidade de São Paulo. É professora do Instituto de Química da USP e coordenadora do Grupo de Pesquisa em Educação Química - GEPEQ - que desenvolve atividades de divulgação científica, de formação continuada de professores e de pesquisa em ensino de Química. É orientadora no Programa de Pós-Graduação Interunidades de Ensino de Ciências, da Universidade de São Paulo. Atualmente desenvolve trabalhos de pesquisa nas linhas de ensino e aprendizagem de Química e formação de professores.

Bate-bola da Balbúrdia

Um elemento químico?
Oxigênio.
Um químico famoso?
Linus Pauling.
Uma vidraria de laboratório?
Erlenmeyer.  
Um livro?
Dostoievski - Crime e Castigo.
Um local específico do IQ?
Biblioteca, fantástica linda e maravilhosa.
Uma memória que aconteceu no IQ?
Meu concurso para ser efetiva. Minha aula didática que eu tiver que dar, eu fiquei presa em uma sala durante três hora, foi ótimo
Um sentimento com o IQ?
Respeito.

Por: Mateus Carneiro Guimarães dos Santos

 

A professora e pesquisadora da Universidade de São Paulo, explica sua trajetória dentro do Instituto e o desenvolvimento da área de Ensino de Química ao longo do aniversário de 50 anos do IQ-USP. A pesquisadora afirma que o perfil da universidade, do IQ-USP e da licenciatura em química mudaram bastante ao longo dos anos. Com isso, a ampliação e preocupação com o Ensino de Química foram se transformando conforme a demanda e adequação do currículo de formação de professores. Por fim, Marcondes fala sobre os grandes desafios que a área de Ensino de Química tem dentro do IQ-USP, como manter a área ativa após a sua aposentadoria, nova contratação de professores e expansão das pesquisas vinculadas ao ensino.

 

Balbúrdia (B) - Como e quando foi o primeiro contato com o IQ-USP?

Maria Eunice (ME) - Meu primeiro contato, foi em 1966 ou 1967, eu acho. Quando eu era aluna do Ensino Médio e nessas coisas da escola começar a discutir o que cada um gostava, o que cada um queria fazer, a minha escola organizou - … eu estudava em uma escola pública -, grupinhos de pessoas que gostariam de ir conhecer as faculdades. A minha professora de Química era pesquisadora da Escola Paulista de Medicina, UNIFESP hoje né?! Então, ela tinha estudado na Química da USP. Ela indicou, nos deu o nome do Centro Acadêmico, eu e mais dois colegas fomos visitar, já estava na Cidade Universitária, ainda era Faculdade de Filosofia, um departamento da Faculdade de Filosofia. Então, nós fomos visitar e conversar com os alunos. Foi muito interessante, pois a professora tinha nos dado um papel escrito “Centro de Estudos Químicos” e embaixo “Rheinboldt¹”, quando chegamos no IQ, no prédio, não era IQ ainda, você procurando o Hauptmann e o Rheinboldt, cadê o Doutor Rheinboldt, aí os alunos...já viu né? Foi nosso primeiro trote! Eles nos explicaram, contaram a história e foram muito receptivos.

¹ Heinrich Rheinboldt foi um químico e professor universitário alemão, naturalizado brasileiro. Rheinboldt morreu em São Paulo, em 5 de dezembro de 1955, aos 64 anos.

 

B- Já era no mesmo prédio? 

ME- Sim, a química mudou para lá em 1966 e virou o Instituto em 1970 com a reforma universitária. Eu acho pouco educativo falar nos 50 anos e não colocar na perspectiva histórica. Como é que mudou de um Departamento da Faculdade de Filosofia para um Instituto? Houve toda uma reforma universitária, não foi só passar para o Instituto, a graduação mudou muito, a gente tinha o curso anual, não era credito. Com a reforma universitária [o curso] passou a ser semestral o que na perspectiva era fazer dois vestibulares, o que nunca aconteceu na USP. Então, aquela identidade de turma foi perdendo ao longo daquela implantação da reforma, o prédio já era lá na época que eu fui visitar, então eu fiz vestibular e acabei entrando.

 

B- A área de Ensino de Química existia de alguma forma nesta época?

ME- Olha, eu entrei lá, comecei a ser aluna, minha graduação começou em 1968. Formalmente não tinha nada de Ensino, a licenciatura era um curso à parte, era feito à noite, a gente era período integral e não tinha o curso noturno, era período integral e a gente fazia a licenciatura à noite. Ninguém fazia só a licenciatura porque era muito mal visto na época, então não tinha uma área, não tinha professores que se dedicavam à pesquisa em Ensino de Química, tinham professores que gostavam do ensino e que tinham alguma relação internacional com a questão de ensino, que era o professor Ernesto Giesbrecht e depois o professor Pitombo. É isso, mas uma área constituída não. Essa área só foi constituída muito mais pra frente.

 

B - Como que a preocupação pelo Ensino de Química se iniciou no IQ?

ME - Isso foi uma construção longa, foram muitos anos. O professor Ernesto Giesbrecht estava ligado com órgãos internacionais, então ele tinha alguns simpósios sobre ensino e produziam materiais, apostilas,  experimentos e discutiam os experimentos para ajudar nas escolas. O professor Pitombo junto com o professor Fernando Galembeck da UNICAMP planejaram, propuseram e foi aprovado no Instituto as disciplinas de Instrumentação para o Ensino de Química. A partir dessas disciplinas, a licenciatura começou a ter uma cara diferente. Tinha as matérias da Faculdade de Educação, mas agora tinham duas disciplinas. No começo eram três, mas agora viraram duas disciplinas. Aliás, acho que no começo eram quatro!! Eu não peguei essas disciplinas na minha graduação, então, eram duas disciplinas de Instrumentação para o Ensino de Química, uma em cada semestre e com essas disciplinas  começou a ter alunos mais interessados. Os alunos que se formaram na licenciatura e foram dar aulas depois procuravam o professor Pitombo. O Fernando foi pra UNICAMP - ele era lá do IQ e depois foi pra UNICAMP -, então, o professor Pitombo que ficou encarregado dessas disciplinas. Alguns alunos que já não eram mais alunos, já eram professores, voltaram a conversar com o Pitombo para fazer um grupo de estudos sobre Ensino, pois eles estavam um pouco frustrados com o ensino, mesmo nas escolas particulares onde eles estavam dando aula. Daí essa ideia foi evoluindo, foi crescendo e teve um marco que eu acho que é bem significativo para a história da área de Ensino no IQ, que foi o programa chamado SPEC (Subprograma de Ensino de Ciências) da CAPES. 

Como é que surgiu esse programa? O programa da CAPES financiou grupos de pesquisas em Ensino na Universidade toda, grupo da Física, da Química, da Matemática, Letras, foi assim, um ‘boom’ dos grupos de ensino, porque tinha dinheiro.

 

B-Em que ano mais ou menos?

ME - Foi em 83 ou 84, o Brasil e a Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos fizeram um convênio chamado PADCT, um Plano de Apoio e Desenvolvimento Científico e Tecnológico do país com recursos estadunidenses. Só que para isso houve uma contrapartida, o Brasil tinha que investir no Ensino de Ciências, esse PADCT era de Ciência e Tecnologia, a CAPES abriu essa linha que era um subprograma de Ensino de Ciências dentro do PADCT. Chamava SPEC/PADCT/CAPES, nessa época, eu fui contratada lá em 1975, comecei a dar aula de Química Geral. A gente acabou fazendo um grupinho de professores que dava aula para os físicos, e a gente resolveu inovar; A gente fez umas apostilas, dava aula em laboratório, foi uma coisa bem diferente. Com isso, alguns se interessaram também pelo Ensino e houve duas correntes: a nossa, eu e Pitombo, e o grupo da professora Reiko Isuyama, que também se desenvolveu no Instituto, eles também participaram do PADCT.
Bom, com isso alguns docentes acabaram se interessando. O Pitombo, a professora Reiko, eu, a professora Vera Pardini e o Professor Peter Tiedemann.

Eu comecei a dar aula lá para os físicos mas depois eu fui ajudar o Pitombo nas instrumentações, eu comecei a dar aula de Instrumentação para o Ensino de Química junto com o Pitombo. Eu fazia pesquisa em Fotoquímica na mesma época que estava trabalhando com ele, então surge o PADCT/SPEC, o projeto foi aprovado e com isso surgiu nosso grupo. A gente convidou aquele grupo que o Pitombo já tinha, aquele grupo com os ex-alunos e professores para fazer parte desse [novo] grupo.

A partir de 84, foi se firmando um grupo de Ensino da nossa parte. Também houve um grupo da professora Reiko. Eles trabalharam com o Telecurso 2000, fizeram muito material e a gente continuou nessa linha, até chegar na pós-graduação, que foi um caminho longo de 84 à 99.

A área cresceu graças a implementação do curso da licenciatura noturna, o Instituto só foi ter curso noturno em 2003, quando a USP estava sendo cobrada de ter pelo menos 70% de cursos noturnos. Então, o Instituto resolveu fazer o curso de Química Ambiental e Licenciatura. Com isso, a gente fez um projeto da licenciatura e conseguimos a contratação de mais quatro professores para a pesquisa e o Ensino de Química. Então, três foram muito fáceis e o quarto veio com um projeto junto a Pró-reitoria de Graduação. Havia uma Comissão Interunidades de Licenciatura e foi assim que a área cresceu. Em 2003 e 2004 foram contratados a professora Carmen Fernandes, o Paulo Porto, o Flávio Maximiliano e o Guilherme [Marson]. A professora Daisy [Rezende] já era contratada e migrou para a área. Então a área cresceu nessa época, a gente já fazia parte do Programa de Pós-Graduação Interunidades [em ensino de ciências] e eles então entraram como orientadores do Programa. 

 

B- Quais eram os principais focos do ensino de química no início da área?

ME- O nosso primeiro projeto, do professor Pitombo e eu, foi da experiência com esse grupo de estudos, o que os colegas colocavam. Eles estavam insatisfeitos com o conteúdo de química que estava sendo ensinado, estavam insatisfeitos com a metodologia de ensino e com a aprendizagem dos alunos. A partir dessa três variáveis, desses três problemas que eles colocavam a gente propôs desenvolver um projeto de ensino de química. A gente trabalhava com conteúdos que fizessem mais sentido para o aluno, na nossa visão, então a gente trabalhou com conteúdos contextualizados que Tivessem alguma relação com a vida do aluno, com a vida em sociedade e com metodologias do aluno participativo e do aluno elaborador do seu conhecimento e com a aprendizagem significativa. A gente foi nessa linha de material tanto para o professor quanto para o aluno. E fazer um projeto de ensino na elaboração de material tanto para o aluno quanto para o professor. Os nossos referenciais da época eram Ausubel, aprendizagem significativa e as ideias do Piaget.

 

B- Qual foi o momento que a senhora passou da fotoquímica para o ensino de química?

ME- Eu sempre gostei da fotoquímica, gosto da fotoquímica até hoje. No meu trabalho de doutorado, fui muito bem orientada. Foi muito bacana, foi uma experiência assim muito boa. Não só em conhecimento mas em orientação, tive um orientador muito legal, aprendi muito com ele. Eu sempre gostei de dar aula desde o ensino médio para meus colegas. Na graduação comecei a dar aulas particulares, a gente formou um grupinho... formou um grupinho que dava aulas para os físicos, um pouco diferente, onde a gente se dedicava muito. E depois o professor Pitombo me convidou e eu comecei a trabalhar com ele, então no início eu fazia as duas coisas. Um pouco do ensino e um pouco da fotoquímica. Quando veio o projeto PADCT/SPEC, as coisas começaram a complicar, pois eu não conseguia dar conta de aula, e trabalhar e fazer pesquisa nos dois grupos. Daí eu fiz uma opção e optei pelo ensino, fui me afastando aos poucos da fotoquímica e fui me dedicando bem mais ao ensino, e não me arrependo dessa minha decisão.

Então, foi mais ou menos isso, não foi algo da noite pro dia. Quando eu estava na fotoquímica era uma época que eu fiz um curso, eu e a professora Daisy, no antigo FUNBEC [Fundação Brasileira para o Desenvolvimento do Ensino de Ciências] um curso dos materiais dos CHEM study², eu era docente turno completo, ai eu fiz esse curso, então, já tinha interesse pelo ensino. Aí as coisas foram evoluindo.

A área de ensino sempre muito carente, muito necessitada de trabalhos e de ideias, aí fui aos poucos me afastando da fotoquímica e me dedicando ao ensino. Até que eu mudei do bloco 12 para o bloco 7 [do IQ-USP].

Eu sentia que eu era mais útil socialmente [na área de ensino], eu me encaixava muito melhor com as minhas ideias, meus ideais de vida, minha perspectiva social de vida e etc.

Não tive nenhuma dificuldade em decidir, nesse aspecto eu falo que eu tive críticas no instituto. Muitos colegas falavam ‘olha lá os pedagogos’ quando viam eu e mais alguns grupinhos. Mesmo um professor que eu trabalhava, ‘Se o Instituto soubesse que você iria para a área de ensino, jamais teríamos te contratado.’

Pois é, não havia apoio, mas por outro lado eu tive a liberdade de fazer propostas de continuar, não fui chamada em nenhum momento pelo diretor ou pelo chefe do departamento e falar ‘ ou volta pra fotoquímica ou nós vamos te isolar”, nunca! Ao contrário, quer dizer, a gente custou para conquistar um espaço, não foi fácil, mas não houve nenhum momento crítico que [diziam] ‘você não pode fazer isso’. Essa liberdade eu tenho que deixar claro que existiu, apesar das críticas de outros colegas.

² Foi um programa estadunidense que buscava aperfeiçoar o ensino de química na educação básica.

 

B- Como a área de ensino de química é vista pelas demais áreas dentro do IQ?

ME- Eu acho que hoje em dia ela é vista de uma forma melhor do que já foi. Mas eu continuo achando que ela não tem o status que as outras áreas tem. O diretor anterior, quando tomou posse não falou da pós-graduação em ensino, por exemplo. Quando a gente cobrou, ele falou que tinha esquecido. Mas diferentemente, quando houve a última comemoração, teve uma cerimônia formal, um jantar e etc. O docente responsável por fazer uma preleção sobre o instituto, ele falou do nosso grupo GEPEQ [Grupo de Pesquisa em Educação Química] e da pós-graduação em ensino, então já é uma luzinha. Eu acho que não existe mais essa rejeição que já tivemos, hoje em dia não se tem.

Mas, se eu pensar em uma futura contratação, se abrir uma vaga para o ensino de química, eu acho que vai ser bem difícil. Vai ser uma lutinha lá dentro.

Vai ter uma publicação dos 50 artigos e 50 anos do IQ, nossa área foi consultada para sugerir artigos da área. Então, isso aconteceu.

 

B-Como a área de ensino de química é vista pelos alunos?

ME-Essa é uma boa pergunta, porque eu acho que quando começa a minha disciplina de estágio supervisionado ou instrumentação, cada um se apresenta e eu sempre pergunto se estão fazendo a licenciatura e pretendem ficar na área. O que eu vejo é que tem muitos alunos que vão fazer a licenciatura, mas não sabem se vão ficar na área. Agora, tem outros que são firmemente convictos que vão ficar na área e a gente tem tido alunos do IQ que querem fazer a pós-graduação. Eu acho que a área não tem o mesmo prestígio que tem a físico-química, orgânica, produtos naturais... eu acho que não tem, tanto que a gente é muito pouco procurado para iniciação. Tem uma disciplina de iniciação à pesquisa e tem poucos alunos que procuram. Mas eu acho que tem um grupinho que é bem interessado sim, mas eu vejo que é um pouco...não sei se é preconceito, [é] um desconhecimento. Tem aluno lá que não conhece o GEPEQ e há vários anos que já tem uma atividade semanal. Então, acho que ela tem um status menor do que as outras áreas e os alunos também percebem isso.

 

B- Quais são os principais desafios para a área de ensino de química dentro do IQ?

ME-Eu acho que um dos desafios que a gente tem é manter a área, pois eu daqui a pouco me aposento e a professora Daisy também.Acho que é um desafio abrir vagas para novos docentes da área de ensino. 

Eu vejo um desafio grande que é a gente enfrentar esse modelo de pós graduação que a universidade está veiculando, de desvalorização do mestrado. E na nossa área a gente considera o mestrado um passo importante na constituição do futuro pesquisador, então enfrentar isso é muito difícil, não só no IQ mas no programa [Programa Interunidades em Ensino de Ciências] mesmo.

Outros desafios da área do ensino, é a questão do programa de formação de professores, a Base Nacional curricular de formação de professores. Eu acho que ela é bastante contundente, no sentido de exigir uma mudança na nossa licenciatura, uma mudança muito grande e não é pela mudança, é politicamente.

O que ela significa? Nós estamos ligados ao Conselho Estadual de Educação, que encampou a mudança anterior das diretrizes curriculares para formação de professores do MEC com modificações, apesar de manter a ideia básica, como as 400h de trabalho pedagógico, as 400h de estágio e etc. A gente acha que o Conselho Estadual vai acabar propondo algo ou alguma reformulação na mesma linha dessa Base Nacional.Essa base nacional no meu ponto de vista, compromete muito a formação do futuro professor de química, física, biologia e matemática, da área das ciências da natureza, eu acho que compromete muito.

Eu acho que é um desafio nosso fazer uma crítica, fazer propostas e tentar de todas as formas segurar a sua implantação,na mesma forma que muitas licenciaturas rejeitaram o Programa Residência Pedagógica pelos princípios que ela advoga, pela linha da BNCC que ela quer que todo mundo siga. Reduzir a formação do professor ao que tem na BNCC é um desserviço para a formação de professores.

Essa luta política também é um desafio para a continuidade da área, todos esses cortes de bolsas, essas mudanças de regulamento da CAPES. Eu acho que isso é bastante sério e exigiria de todos nós uma pulsão e uma ação.