Pesquisadoras da Universidade Federal Fluminense propõe a inserção de um currículo narrativo para a construção de um ensino crítico que combata o negacionismo científico.
17 de agosto de 2021 | 10:00
Caian Cremasco Receputi é licenciado em Química pela Universidade Federal do Espírito Santo (2015) e mestre em Ensino de Ciências (Modalidades Química) pelo Programa de Pós-Graduação Interunidades em Ensino de Ciências da Universidade de São Paulo (2019). Durante a graduação foi bolsista de Iniciação à Docência (PIBID). Possui experiência na área de Ensino de Química. Atuou como professor substituto UFES (2015-2017), lecionando, principalmente, disciplinas de Metodologia Científica e Química Básica. Atualmente é doutorando no PIEC/USP e membro do grupo de pesquisa Linguagem no Ensino de Química (LiEQui). Desenvolve projeto de pesquisa na linha de Formação de Professores, utilizando como aporte teórico-metodológico a Teoria das Representações Sociais. Participa do corpo editorial da Revista BALBÚRDIA - Revista de Divulgação Científica dos Discentes do PIEC-USP.
Você já se questionou sobre os motivos dos conteúdos científico-escolares parecerem tão distantes de seu cotidiano? E se te falassem que isto acontece de forma intencional, tendo como objetivo te excluir do processo de escolarização? Além disso, como essas questões estão relacionadas com o crescente movimento de negacionismo científico que assola a nossa sociedade? É o que buscam compreender as professoras e pesquisadoras da Universidade Federal Fluminense (UFF), Mariana Lima Vilela e Sandra Escovedo Selles, no ensaio “É possível uma Educação em Ciências crítica em tempos de negacionismo científico?”, publicado no Caderno Brasileiro de Ensino de Física em dezembro de 2020. As autoras apresentam reflexões sobre a crescente onda do negacionismo científico e propõem um caminho que pode auxiliar a superar esse problema.
As reflexões estão pautadas, por um lado, na provocação de Bruno Latour, o qual questiona se as críticas dos próprios cientistas sobre a atividade científica podem ter influenciado negativamente na imagem pública da Ciência, e por outro lado, Ivor F. Goodson, que defende que o currículo escolar promove desigualdades por se afastar das relações com a vida e com as utilidades do cotidiano dos estudantes. Vilela e Selles realizaram uma revisão bibliográfica com o objetivo de compreender melhor quais críticas têm contribuído para propagar uma visão negativa da Ciência.
Cientista contra cientista?
Partindo das reflexões de Bruno Latour, as pesquisadoras argumentam que as críticas que os cientistas fazem à Ciência, seu método e seus resultados têm causado efeitos nefastos por terem sido apropriados indevidamente e utilizadas contra o próprio empreendimento científico.
Desde os anos 1970, há um movimento que busca analisar de forma crítica a atividade científica. Esse movimento levantou importantes reflexões sobre a imparcialidade e veracidade irrestritas da Ciência. Em síntese, o que os pesquisadores propõem é que a atividade científica é uma atividade humana, e, portanto, carregada de subjetividades. Esta atividade se fundamenta na construção de modelos explicativos para as diversas questões que envolvem o mundo físico e o social.
Este questionamento, apontado pelas autoras como a força motriz do conhecimento científico, é o que tem influenciado negativamente a imagem pública da Ciência. Isto porque o público leigo espera da Ciência, verdades seguras, rápidas e carregadas de autoridade. Quando esta percepção estereotipada da Ciência é reapropriada por um movimento conservador, gera-se um movimento de negacionismo científico. Segundo as autoras este é o processo mais sofisticado de produção de desinformação, pautadas em narrativas conspiracionistas e travestidas de Ciência.
Mas como a escola, instituição na qual associamos à formação e ao conhecimento, tem contribuído para esse movimento de negacionismo científico? Esse é o tema que será desenvolvido no próximo tópico.
Uma proposta de currículo transformador – o currículo narrativo
Fundamentadas em Goodson, o qual investigou de forma profunda a história das disciplinas escolares, Vilela e Selles explicam que o distanciamento entre a vida dos estudantes e o conhecimento produzido pelas Ciências é o resultado de uma ‘aliança pela persistência de poder do currículo’, referindo-se ao movimento que ocorre em distintas épocas e sociedades que se utiliza do currículo escolar como um instrumento de dominação das classes menos abastadas pelas mais abastadas. Para isso, os conhecimentos priorizados no contexto escolar são os mais afastados do cotidiano dos jovens e de suas relações com a sociedade.
Para se enfrentar este problema é preciso valorizar conhecimentos que tenham forte relação com as trajetórias formativas dos sujeitos, dando prioridade às aprendizagens de situações reais, das experiências práticas, relacionando-as com contextos sociais e políticos mais amplos. Estes são os princípios fundantes do currículo narrativo.
Para se implementar o currículo narrativo, Vilela e Selles expõem algumas estratégias que podem auxiliar neste processo.
A primeira estratégia refere-se à necessidade de se conhecer como os estudantes categorizam e organizam seu mundo. O professor deve ter disposição para ouvir as histórias de vida e as opiniões dos alunos e suas experiências e opiniões sobre os fenômenos sociais. É preciso entender suas emoções, desejos, sonhos e inquietações.
A segunda estratégia está relacionada com a didática da controvérsia, que refere-se ao movimento de priorizar as incertezas em detrimento de uma exposição organizada de conteúdos, ou seja, deve-se colocar a dúvida como o centro da discussão da aula de modo a acessar as experiências vividas pelos estudantes. Para tanto, o professor deve ter uma disposição honesta para o diálogo.
A proposição de temas controversos pode auxiliar no diálogo em sala de aula. Esses temas referem-se a questões de repercussão tanto na sociedade como nas Ciências, temas que não podem ser enfrentados com uma única resposta ou um único conceito. Possuem a característica de envolver o confronto de valores e interesses, o que auxilia na promoção de um posicionamento e uma tomada de decisão por parte dos estudantes. Os conhecimentos científico-escolares devem ser trabalhados de forma conjunta com as dimensões sociais, culturais e históricas, mas também com os valores e as emoções dos estudantes.
Portanto, para se transformar o ensino e superar o negacionismo científico é preciso, por um lado, politizar o currículo de ciências, transformando-o em um instrumento de construção de significados tanto em nível individual ou pessoal, como em nível coletivo, e, por outro lado, é preciso promover a alfabetização política. O diálogo e os temas controversos podem fomentar a relação entre a educação científica e a formação cidadã.
Um caminho para a transformação do currículo de Ciências
Há muito que avançar no currículo de Ciências da Educação Básica. A articulação entre sentimentos e emoções, temas sensíveis ou controversos juntamente com o aprendizado contextualizado nas histórias de vida dos estudantes é um dos atuais desafios na transformação desse currículo. Estas reflexões podem fundamentar novas práticas na Educação Básica, possibilitando a formação de sujeitos mais engajados nas diversas esferas da Sociedade. Este, segundo as autoras do texto, é um princípio importante para se combater o negacionismo científico.
Ficou interessado? Então leia o artigo na íntegra:
VILELA, Mariana Lima; SELLES, Sandra Escovedo. É possível uma Educação em Ciências crítica em tempos de negacionismo científico?. Caderno Brasileiro de Ensino de Física, v.37, n.3, p.1722-1747, 2020.