Sofrimento mental e físico: o ‘novo normal’ das universidades brasileiras

Obra resenhada: MAIA, Heribaldo. Neoliberalismo e sofrimento psíquico: o mal-estar nas universidades. Recife: Ruptura, 2022.

Disponível no site da Ruptura Editorial.

Caian Cremasco Receputi

Olá pessoal. Meu nome é Caian Cremasco Receputi. Sou Licenciado em Química pela UFES e mestre em Ensino de Ciências PIEC-USP. Durante a graduação foi bolsista de Iniciação à Docência no PIBID e, posteriormente, atuei como professor substituto na universidade em que me formei. Atualmente curso o Doutorado no PIEC-USP. Tenho interesse pelos temas de Educação e Política. Tenho grande admiração pelas lutas travadas por Paulo Freire e Florestan Fernandes. Nas horas livres gosto de ler um livro ou assistir a um filme. Sigo lutando para que um dia a Educação se torne um projeto que vise à emancipação do povo em nosso país.

22 de agosto de 2022 | 10:00

As universidades são comumente caracterizadas como uma “torre de marfim” com o objetivo de evidenciar como essas instituições normalmente estão apartadas da sociedade, e que os que nela trabalham ou estudam possuem pouca inserção com o restante da sociedade. Mas essa expressão esconde as transformações que o ambiente universitário vem sofrendo nos últimos anos. A ideologia neoliberal2 tem se constituído como mais uma transfiguração do capitalismo, modelando as instituições, os sujeitos e as relações sociais em todo mundo. Como isso tem afetado o trabalho do professor e a formação do estudante universitário? É a essa e outras questões que Heribaldo Maia, militante comunista, licenciado em História e mestrando em Filosofia pela Universidade Federal de Pernambuco busca responder na obra “Neoliberalismo e sofrimento psíquico: o mal-estar nas universidades”, publicada em 2022 pela Editora Ruptura.

O livro está dividido em três grandes capítulos. No primeiro capítulo, realiza-se um resgate histórico do conceito de sofrimento e sua relação com os sujeitos e a sociedade. O autor conclui que o sofrimento psíquico é um sintoma que reflete o tipo de sociedade em que os sujeitos estão inseridos.

No segundo capítulo, o autor busca identificar quais são as mudanças sociais que implicam em novos sofrimentos presenciados na contemporaneidade. Se as histerias e neuroses3 eram sintomas de uma sociedade altamente normativa e disciplinar, em que se havia controle rigoroso e opressivo dos desejos, o que se percebe hoje é o desenvolvimento de novos sofrimentos, por exemplo, a depressão, a ansiedade e o esgotamento (burnout). Esses sintomas são ocasionados por uma sociedade que passa a ser marcada por uma fragmentação dos papéis sociais (conjunto de normas, direitos e deveres que condicionam o comportamento dos indivíduos dentro de uma instituição, por exemplo, o papel da mulher ou do homem, o papel do trabalhador ou da trabalhadora, dos estudantes etc.), na qual a cultura da lei repressiva deu lugar a uma falsa sensação de liberdade, da gestão de si, pautada no modelo empresarial de desempenho. Nesse sentido, o sujeito passa a ser visto como uma empresa que precisa acumular valor continuamente (por exemplo, na acumulação de certificados de atividades e cursos realizados, refletindo em um suposto acúmulo de ‘capital humano’) em um ambiente de concorrência absoluta, uma guerra de todos contra todos.

No terceiro capítulo, são apresentadas algumas formas como o neoliberalismo tem modificado o Ensino Superior brasileiro. As reformas neoliberais tiveram início na década de 1990, mas permaneceram constantes nos diferentes Governos. Ao longo desses anos, houve um aumento do número de cursos, acompanhado por um crescente número de matrículas. Entretanto, esse aumento do número de vagas nas universidades não foi acompanhado de um aumento adequado do número de verba e de contratação de professores e técnicos administrativos, o que sobrecarrega o trabalho desses profissionais, prejudicando, consequentemente, a formação dos estudantes. Por exemplo, no ensino de ciências, a formação de professores tem sido prejudicada pela dificuldade dos professores ministrarem aulas experimentais, consequência da falta de técnicos, materiais e reagentes, excesso de disciplinas por professor e excesso de estudantes matriculados nessas disciplinas.

Para além da precarização material e simbólica, também foi possível identificar uma mudança na cultura da Academia, passando de uma concepção de ensino fundamentada na formação crítica, ética e moral dos estudantes em prol da justiça social para uma concepção de ensino fundamentada no desempenho, no qual cada indivíduo deve ser responsável por suas escolhas, sempre buscando obter o melhor retorno pessoal e financeiro.  Essa mudança na cultura acadêmica acaba acentuando o individualismo e a competitividade, o que dificulta a formação de coletivos que busquem modificar essa situação (por exemplo, associações e entidades representativas de estudantes, de professores e de técnicos administrativos).

O resultado desse processo ‘neoliberalizante’ das universidades é o declínio de espaços que tradicionalmente têm promovido solidariedade e acolhimento, afetando todo o corpo universitário. Como consequência, há um aumento dos sintomas de sofrimento psíquico. Por exemplo, em 2003, 36,9% dos estudantes das universidades federais afirmavam ter problemas ligados à saúde emocional e mental, já em 2010 esse quadro cresceu para 47,7%, em 2014 passou para 79,8%, até chegar a 83,5% em 2018, evidenciando que este é um problema urgente e deve ser enfrentado.

O acompanhamento psicológico e psiquiátrico é indicado e recomendado, claro, mas é preciso entender que ele não resolve o problema, pois embora o sofrimento se manifeste no sujeito, é a forma em que a sociedade está organizada que causa esse sofrimento. Portanto, para além de medidas pontuais, como programas de combate ao sofrimento psíquico, é preciso que as pessoas se organizem em coletivos que visem à superação do modo de produção e socialização em que estamos inseridos, o capitalismo neoliberal.

Portanto, esse é um livro indispensável para se compreender algumas das mudanças sociais ocorridas nas últimas décadas, mais especificamente aquelas que envolvem o mundo do trabalho e as relações interpessoais. Embora o livro direcione o olhar para como essas mudanças impactam na saúde mental e física e na trajetória formativa dos estudantes universitários, contribuem para refletirmos sobre os diversos ataques de diferentes Governos à todo o Sistema Educacional Brasileiro.


(1)  A expressão ‘novo normal’ se refere ao estado em que a economia e a sociabilidade se instalam após uma crise, que se apresenta de forma distinta da situação econômica e social a qual a presidiu. Aqui é utilizada de forma irônica para evidenciar que o que é entendido como ‘normal’, sendo ele novo ou antigo, está longe de ser o mais adequado.
(2) A ideologia neoliberal considera que tudo na sociedade, incluindo a educação, deve ser administrada como uma empresa, ou seja, deve-se reorganizar todo tipo de trabalho buscando se alcançar o maior lucro possível.
(3) As histerias e neuroses são sintomas de sofrimento psíquico, fruto da contradição entre o que se deseja e o que é permitido pela sociedade.