Precisamos refletir sobre a educação para o futuro

Uma sala de aula convencional. Essa é, ainda, a sala de aula mais adequada para a educação para o futuro? Fonte: Pixabay.

O que devemos estar ensinando às nossas crianças que permitam a elas sobreviver e pertencer ao mundo de 2050 ou 2100?

João Pedro Ocanha Krizek é licenciado em Ciências Biológicas pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (IFSP), onde foi bolsista de Iniciação em Desenvolvimento Tecnológico e Inovação (PIBITI/CNPq) por três anos consecutivos. Atualmente encontra-se especializando em História, Ciências, Ensino e Sociedade pela Universidade Federal do ABC (UFABC), é professor de Educação Básica na rede pública de ensino e membro do Grupo de Pesquisa Interdisciplinar em Meio Ambiente, Ensino, Tecnologia e Cidade (AMBIENTEC). Na área acadêmica, é um apaixonado por ecologia, biologia evolutiva, sociobiologia e filosofia da biologia. Na vida pessoal, é fissurado por literatura, histórias em quadrinhos e cinema de horror. 

Instagram: @jpok_bio

05 de setembro de 2022 | 10:00

O que é o professor? Do latim “professus”, o professor é aquele que se pronuncia, aquele se declara perante um público. Na tentativa de fazer jus à essa definição eu, enquanto professor, escrevo este texto como um convite à reflexão sobre o funcionamento do nosso modelo de educação escolar e sua atuação na formação de cidadãos para o futuro. 

A Constituição Brasileira de 1988 define as três grandes finalidades da educação escolar: o pleno desenvolvimento da pessoa, o preparo para o exercício da cidadania e a qualificação para o trabalho. A primeira finalidade enfatiza que a educação escolar deve oportunizar a realização da personalidade de cada aluno, capacitando cada cidadão para realizar sua vida presente e futura conforme seus interesses e aspirações. A segunda finalidade destaca que a educação escolar também deve assegurar a formação de indivíduos capazes de conviver, solidariamente, com seus concidadãos, a partir da construção e do fortalecimento de laços afetivos e sociais. A terceira finalidade ressalta que a educação escolar deve permitir ao aluno a construção de um projeto de vida que lhe possibilite, no futuro, sustentar-se com um trabalho1. Assim sendo, pensar a educação é pensar a formação de indivíduos atuantes, que participem ativamente na transformação da realidade presente e na construção do mundo futuro.

Na minha prática docente, diariamente me questiono em relação às aprendizagens que devem ser cultivadas entre meus alunos. Enquanto professor de Ciências que atua exclusivamente na rede pública de ensino, ensino crianças com onze, doze, treze anos. Por volta de 2050, essas crianças terão idade em torno de quarenta. Pode ser que algumas delas ainda estejam vivas em 2100. Por isso, compartilho aqui algumas questões que me percorrem, mas que, creio, necessitam afetar a todos: o que devemos estar ensinando às nossas crianças que permitam a elas sobreviver e pertencer, não apenas ao presente, mas ao mundo de 2050 ou 2100? Quais aprendizados são essenciais para que elas exerçam plenamente sua cidadania e sejam qualificadas para o mundo de trabalho daqui a trinta ou cinquenta anos? Quais habilidades elas vão precisar para ter um emprego, entender a realidade ao seu redor e caminhar nas sinuosas estradas da vida?

A má notícia é que ninguém sabe qual será o aspecto do mundo em 2050, quem dirá em 2100. Desconfie de quem disser que tem a resposta. Até onde vai nosso conhecimento científico, clarividência não existe, e o papa não é mais capacitado que o dono do bar da esquina em predizer o futuro. Não temos certeza de como as pessoas ganharão a vida. Quais serão os próximos avanços da medicina, isso ainda é incerto. Como as burocracias, as relações comerciais e os exércitos se comportarão, é difícil dizer. Que inovações tecnológicas teremos por aí, ninguém sabe. Todavia, podemos refletir sobre qual deve ser o nosso envolvimento pessoal e pedagógico na construção de um futuro incerto. 

Em seu livro Homo deus2, o historiador e filósofo israelense Yuval Noah Harari analisa as tendências científicas, políticas e sociais da atualidade e, com base nelas, trata das implicações do mundo moderno para o futuro da humanidade. Devido aos aprimoramentos da engenharia genética, aos sucessos das interfaces computador-cérebro e à evolução da inteligência artificial, a mudança é uma constante previsível para o futuro. Pense na inteligência artificial, por exemplo, que está cada vez mais superando os empregados humanos em termos de habilidades. Caso a automação continue a substituir as pessoas nas diversas modalidades de trabalho, a ameaça de perda de emprego será real. Para o pensador, o desaparecimento de muitos trabalhos tradicionais será parcialmente balanceado pela criação de novos trabalhos humanos, talvez concentrados nos serviços de inteligência artificial e seu aprimoramento. Por esse motivo, é possível que muito do que os alunos aprendem hoje seja irrelevante em 2050 ou 2100.  

Atualmente, muitas pessoas – professores, inclusive – enxergam a escola como uma instituição que tem como objetivo central inundar seus estudantes com informações. Outrora isso até fazia sentido, já que o acesso à informação era limitado – pense em uma época onde não existia rádio, televisão, bibliotecas públicas ou internet. Entretanto, neste momento, estamos abarrotados por imensas quantidades de informações. Tanto que governos já não são tão eficazes em lidar com elas e qualificá-las; pelo contrário, muitos políticos estão ocupados disseminando informações falsas (“Se eu contar uma mentira, você acredita se quiser”, declarou o presidente Jair Bolsonaro) ou nos distraindo com irrelevâncias (“O que é golden shower?”, o presidente indagou no Twitter, causando grande alvoroço midiático). Em uma realidade como essa, a última coisa que a escola deve fazer é priorizar a transmissão de informações. Os estudantes já têm informações demais. Em vez disso, defende Harari, “as pessoas precisam da capacidade para extrair um sentido da informação, perceber a diferença entre o que é importante e o que não é, e acima de tudo combinar os muitos fragmentos de informação num amplo quadro do mundo"3

Pessoalmente, adoro lecionar em classes do sexto ano. Muitos desses alunos são “cientistas natos”, para usar uma expressão do físico e divulgador da ciência Carl Sagan. São curiosos, fazem uma série de perguntas perspicazes e demonstram enorme entusiasmo. Todavia, quando assumo aula com os estudantes do Ensino Médio, me deparo, geralmente, com uma situação bastante diferente. Eles memorizam as informações. Simplesmente perderam a admiração por trás dessas informações, o entusiasmo da descoberta, a empolgação em compreender sobre o funcionamento da natureza. Ou seja, algo vem ocorrendo entre o Ensino Fundamental e o Ensino Médio. Assim como Sagan4, creio que essa situação decorra, em parte, do fato de a escola priorizar notas a curto prazo em detrimento do aprendizado a longo prazo; em parte, da natureza das provas em priorizar a memorização de informações; em parte, da noção de que estudar ciências não levará a uma carreira promissora; em parte, de que tão pouco seja esperado de nossos alunos; e, em parte, de que haja pouca recompensa para o aprendizado. Os poucos que mantêm seu interesse são depreciados como nerds

Além de informações, as escolas também se dedicam em munir os estudantes de um conjunto fixo de habilidades predefinidas. Essas habilidades se referem, de acordo com a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), às aprendizagens essenciais que devem ser asseguradas aos alunos nos diferentes contextos escolares. Mas, dado que não compreendemos como o mundo e o mercado de trabalho funcionarão em 2050 ou 2100, na realidade não sabemos de quais habilidades específicas essas crianças vão precisar. Uma alternativa, defendida por muitos pedagogos, é que as escolas passem a cultivar habilidades que tenham como pilares os “quatro Cs”: pensamento crítico, comunicação, colaboração e criatividade5. Isto é, as escolas deveriam minimizar o desenvolvimento de habilidades técnicas e ressaltar o desenvolvimento de habilidades para propósitos genéricos da vida – como as habilidades de flexibilidade e adaptabilidade; habilidades de autodirecionamento e iniciativa; habilidades de convívio social; e habilidades de produtividade, responsabilidade e liderança. Para sobreviver ao mundo de 2050 ou 2100, nossos alunos terão que lidar com mudanças (possivelmente como migrações para o espaço, novos ramos empregatícios, identidades de gênero fluidas, catástrofes ecológicas e diferentes experiências sensoriais ocasionadas por futuras tecnologias), aprender coisas novas e manter o equilíbrio mental diante de tantas mudanças. Além disso, precisamos cultivar, entre nossos alunos, a habilidade de concentração, numa época em que um texto de quinze linhas parece cansativo demais e quando ficar longe do celular por dez minutos parece uma eternidade. 

Em outras palavras, nossas escolas precisam se reinventar. Elas devem garantir conhecimentos às nossas crianças, prepará-las para o mercado de trabalho, transmitir-lhes uma cultura e torná-las resilientes no enfrentamento de situações não familiares. Estamos indo pelo caminho certo?

Notas e referências:

  1. 1. Para uma discussão mais detalhada das três finalidades prospectivas da educação escolar: CHIZZOTTI, Antonio. As finalidades dos sistemas de educação brasileiros. Revista Educação em Questão, v. 58, n. 55, p. 1–19, 2020.
  2. 2. HARARI, Yuval Noah. Homo deus: uma breve história do amanhã. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
  3. 3. HARARI, Yuval Noah. 21 lições para o século 21. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
  4. 4. SAGAN, Carl. O mundo assombrado pelos demônios: a ciência vista como uma vela no escuro. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
  5. 5. Algumas sugestões de trabalhos que realizam essa defesa:
    TRILLING, Bernie; FADEL, Charles. 21st century skills: learning for life in our times. San Francisco: Jossey-Bass, 2009.
    KIVUNJA, Charles. Teaching students to learn and to work well with 21st century skills: unpacking the career and like skills domain of the new learning paradigm. International Journal of Higher Education, v. 4, n. 1, 2015.