Reflexões pós-eleições: a educação no debate e no embate

Legenda: Ato de caminhoneiros paralisados contra resultado das eleições de 2022 no Brasil na BR-381 em Timóteo/MG é consequência de um fenômeno de dissonância cognitiva entre apoiadores do presidente Bolsonaro, derrotado nas urnas. Créditos: HVL. Fonte: Wikimedia Commons.

À convite da Revista BALBÚRDIA, a professora Lúcia Helena Sasseron, orientadora do PIEC-USP, escreve texto onde mostra alguns entrecruzamentos entre política e educação.

Lúcia Helena Sasseron

É licenciada em Física (2001), mestra em Ensino de Ciências (modalidade Física) (2005), Doutora em Educação (2008) e Livre-docente (2018) pela Universidade de São Paulo (USP). Professora Associada do Departamento de Metodologia do Ensino e Educação Comparada da Faculdade de Educação da USP, ministra disciplinas para os cursos de Pedagogia e Licenciatura em Física e também é orientadora de pós-graduação do Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação e do PIEC-USP. Pesquisa sobre o desenvolvimento da Argumentação e da Alfabetização Científica em sala de aula. Desde o ano de 2016, coordena o grupo de pesquisa LaPEF - Laboratório de Pesquisa e Ensino de Física, sediado na Faculdade de Educação da USP.

Tags

Espaço do docente; Número 5

12 de dezembro de 2022 | 10:00

O convite para a escrita do texto veio com antecedência, em algum momento entre o primeiro e o segundo turno das eleições gerais de 2022. Como me posicionar sobre as ações necessárias à educação em um momento de incerteza, em um momento em que vislumbrava destinos diametralmente opostos para a educação no Brasil a depender do resultado do pleito? Decidi, portanto, esperar e, definidas as votações, esboçar impressões forjadas pelo que vivemos e sustentadas por esperança.

Por vivenciar política como cidadã, e não como especialista em estudos da área, não tenho qualquer pretensão de emitir análises e previsões sobre o cenário político que se constrói pós-eleições. Mas concebo a impossibilidade de debater educação sem debater ideologias e, portanto, política. 

Não preciso me alongar na descrição do que representou às ciências e à educação (e ao país, como um todo) a ascensão de políticas reacionárias e de extrema-direita ocorrida nos anos recentes. É muito imediato lembrarmos dos cortes de verba, que não foram poucos nem pequenos, atingiram áreas estratégicas para o bem-estar social e o futuro minimamente justo e sustentável, e mesmo a ascensão de intolerâncias antes um pouco mais veladas ou dissimuladas. No entanto, neste texto exponho minhas preocupações com o constante e orquestrado desrespeito ao conhecimento e aos profissionais das ciências e da educação. Esse desrespeito a quem atua para produzir, comunicar e disseminar conhecimentos sustenta uma clara intenção de construir uma outra realidade, em que os conhecimentos validados não se sustentam senão em interesses ideológicos, mercadológicos e políticos.

Antes de continuar, penso ser necessário lembrar alguns acontecimentos do ano de 2016 e destaco aqui apenas três episódios importantes para a discussão que venho traçar: o impeachment de Dilma Rousseff aqui no Brasil, o Brexit ocorrido no Reino Unido e a eleição de Donald Trump para presidente dos Estados Unidos da América.

Comecemos pelo último: a eleição de Trump levou à escolha do termo “post-truth” (ou pós-verdade, tradução do termo para a língua portuguesa) como palavra do ano de 2016. A conhecida definição presente no dicionário Oxford expõe tratar-se de algo “relacionado a ou denotando circunstâncias em que fatos objetivos são menos influentes na formação da opinião pública do que apelos à emoção e crenças pessoais”. 

Notícias em mídias diversas, compartilhamento de ideias e opiniões em redes sociais, disseminação de ideias distorcidas, falsas ou falaciosas sem quaisquer mecanismos de controle foram decisivos para a ascensão de Trump, sua eleição e para o levante de cidadãos do Reino Unido contra a permanência na União Europeia. Aqui em nossa realidade nacional, estudos mostram a exposição massiva e tendenciosa de casos de corrupção ocorridos ao longo dos anos dos governos Lula e Dilma3,9,10 forjando a opinião acerca de uma relação direta entre governos mais alinhados a questões sociais e o surgimento e a conivência com a corrupção. 

Embora sejam três episódios distintos, em todos eles há mecanismos semelhantes: informações advindas de fontes não-confiáveis; informações advindas de fontes confiáveis, mas tratadas por vieses ideológicos, mercadológicos e políticos; e informações mentirosas disseminadas a partir de orientações emocionais.  

Estudos de psicologia social mostram já ser bem conhecida a relação entre crenças, valores e pertencimento, a partir de situações reconhecidas como de dissonância cognitiva, de conformidade social e de viés de confirmação. 

Uma marca da dissonância cognitiva é a busca de indivíduos por alguma forma de coerência entre fatos e crenças. No dia em que escrevo esse texto, isso pode ser exemplificado pela assunção de apoiadores do presidente atual em ter havido fraudes nas urnas eletrônicas ou nas eleições de modo geral uma vez que o pleito elegeu o candidato que não é a escolha deles. Com isso, também caracteriza a dissonância cognitiva um grau de irracionalidade nesse pensamento. No caso mencionado, perguntas como as que seguem colocam isso em pauta: Existem fatos que comprovem as fraudes? Onde elas ocorreram? Como elas ocorreram? Por que não há menções a fraudes nos resultados das eleições para deputados, senadores e governadores que ocorreram utilizando o mesmo método? 

Crenças equivocadas, no entanto, quando compartilhadas por indivíduos em grupo podem gerar pressões, afetando a racionalidade de outros indivíduos que tendem a descartar evidências e a seguir o comportamento do grupo em que estão inseridos em busca de harmonia1. Popularmente, a conformidade social pode ser chamada de efeito manada, ou seja, a tendência de indivíduos renunciarem a uma análise crítica de fatos e crenças em favorecimento ao pertencimento ao grupo e, como consequência, comportarem-se como a maioria à sua volta.

Há ainda o viés de confirmação que se caracteriza pela tendência de interpretar ou buscar informações para confirmar crenças e hipóteses iniciais12 e, consequentemente, não haver esforço de busca por outros modos de analisar a mesma situação. Com isso, ainda que possa haver outras explicações para um fato, confirmando ou rejeitando hipóteses iniciais, reduz-se o espectro de busca pela satisfação atingida.

Elementos como os mencionados permitem entender a constituição de um raciocínio motivado, ou seja, um raciocínio emocionalmente enviesado que sustenta a formação de opinião e a tomada de decisão6.

Com certa constância e clareza, temos vivenciado situações em que dissonância cognitiva, conformidade social, viés de confirmação e raciocínio motivado sustentam o pensamento e a tomada de decisão de indivíduos ao nosso redor. O surgimento e a expansão das redes sociais e de aplicativos de mensagem instantâneas não são a causa desse modo de comportamento, mas certamente trazem influência em sua existência em muitos casos, especialmente porque permitem a disseminação em quantidade e velocidade sem precedentes na história da humanidade. E um aspecto importante desse cenário reside no fato de que a disseminação de informações pelos meios citados, em sua imensa maioria, ocorre sem qualquer ação para verificação de veracidade dos fatos e a partir de algoritmos que tornam o acesso a elas cada vez mais restrito a um mesmo tipo de ideias2,7,8, limitando a existência de dissenso.

No cenário exposto, a validade de informações disseminadas não é atestada por critérios ou mecanismos de avaliação fundamentados na necessidade de análise a partir de fatos, evidências e provas, mas sim pela confiança que se tem em que as expõe, em alinhamento com fatores emocionais e crenças, ou seja, por reforçarem o que já se pensa8,11.

Isso traz à tona a necessidade de ponderarmos sobre critérios e meios pelos quais possam ser avaliadas e atestadas as informações disseminadas, especialmente em redes sociais e aplicativos de mensagens instantâneas, mas também em mídias claramente tendenciosas em termos ideológicos, mercadológicos e políticos. 

Entendo que esse é um debate amplo que deve congregar diferentes áreas, dentre as quais a comunicação social, as ciências políticas e a sociologia, e, por sua importância na formação dos sujeitos, a educação também pode tomar assento.

A educação pode contribuir de muitos modos para o modo como as pessoas acessam, analisam e constroem posições a partir de informações, especialmente porque situações e espaços educativos são marcados pela diversidade e, com isso, pelo encontro e confronto de modos de perceber e de estar no mundo.

A primeira ação para isso é reconhecer que esse é um papel da escola: ser o local em que há análise de informações para entendimento e tomada de posição. Disso implica entender que a escola não é espaço privilegiado para acesso a informações, mas é local em que podem estar em conjunto percepções diversas sobre informações, pautadas em vivências, em crenças, em aspectos culturais que revelam o pertencimento das pessoas aos seus grupos. Também disso deriva outra importante contribuição objetiva da educação: a contínua promoção de discussões. Fomentar debates permite a explicitação de diferentes ideias e exige posicionamentos, especialmente em situações em que não há consenso. Efetiva, portanto, o respeito à diversidade, pela exposição dos sujeitos a diferentes informações, fontes de informações e modos de descrever situações e de perceber contextos, causas e consequências. 

É preciso cuidar, no entanto, para o que representam os debates. Há que se assumir que qualquer assunto pode e deve ser debatido e, de modo semelhante, é preciso ter ciência de que há limites sobre o que é aceito durante a discussão. Assumir esses limites não implica em tolher o direito de expressão, mas, antes, manter a racionalidade e a civilidade para que a expressão não seja preconceituosa, conspiratória e negacionista. Talvez a principal tarefa seja mesmo identificar esses limites e não deixar que eles sejam transpostos a risco de oportunizar que desinformações sejam entendidas como conhecimento válido, que teorias de conspiração sejam analisadas como reações lógicas e admissíveis e que o desprezo e o desrespeito floresçam em nome de uma suposta liberdade. 

Em ciências, esses limites estão claros, por exemplo, pelos conhecimentos e pelos métodos já legitimados na área. Questionar os conhecimentos é possível, mas isso demanda reconhecer as normas por meio das quais os conhecimentos são propostos, avaliados e legitimados na comunidade4,5.

O papel da educação também precisa ser considerado como de alcance muito mais amplo do que apenas nos espaços escolares. São necessárias ações educativas em diferentes âmbitos e, em especial, para a manutenção da lembrança dos tempos obscuros. Do contrário, eles tendem a voltar ou a ganhar forças, pela união em torno do medo, do ódio e do rancor. Devem ser, portanto, ações para enfrentamento dos preconceitos, colocando-os como temas em exposição. 

Essa é, portanto, uma defesa a um compromisso conjunto que nós, professores, podemos empreender junto à sociedade. O compromisso contra modos simplistas de raciocínios, que apenas consolidam nossas vontades e crenças; um compromisso a favor de ferramentas que auxiliam no desenvolvimento de pensamento crítico, da lógica e da racionalidade. Isso só pode ocorrer pelo contato com a diversidade, pela abertura ao debate, pela compreensão ampla pela sociedade de que não se pode mais aceitar a exclusão e o desprezo que se encarnam em xenofobia (inclusive a regional), misoginia, racismo e homofobia.

 

Referências bibliográficas

  1. 1. ASCH, Solomon E. Opinion and social press. Scientific American, v. 193, 1955.
  2. 2. BUCCI, Eugenio. Existe democracia sem verdade factual? Barueri: Estação das Letras e Cores, 2019.
  3. 3. CUNHA, Karenine Miracelly Rocha da. Agora é Lula: enquadramentos do governo do PT pelo Jornal Nacional. Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Unesp - Bauru, 2005.
  4. 4. LONGINO, Helen. Science as social knowledge: values and objectivity in scientific inquiry. Princeton: Princeton University Press, 1990.
  5. 5. LONGINO, Helen. The fate of knowledge. Princeton: Princeton University Press, 2002.
  6. 6. McINTYRE, Lee.  Pos-Truth. Cambridge: The MIT Press, 2018.
  7. 7. MOROZOV, Evgeny. Big Tech: a ascensão dos dados e a morte da política. São Paulo: Ubu Editora, 2018.
  8. 8. SANTAELLA, Lucia. A pós-verdade é verdadeira ou falsa? Barueri: Estação das Letras e Cores, 2019.
  9. 9. SANTANA, Eliara. Jornal Nacional, um ator político em cena: Do impeachment de Dilma Rousseff à eleição de Jair Bolsonaro. Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras, PUC-MG, 2020.
  10. 10. SARTORI, Débora. O julgamento do mensalão no Jornal Nacional: os recursos dramáticos na construção da narrativa. Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Informação, UFRGS, 2014. 
  11. 11. VOSOUGHI, Soroush; ROY, Deb; ARAL, Sinan. The spread of true and false news online. Science. V. 359, n. 6380, p. 1146-1151, 2018. DOI: 10.1126/science.aap9559
  12. 12. WASON, P. C. The failure to eliminate hypotheses in a conceptual task. Quarterly Journal of Experimental Psychology, 1960.