Corantes Naturais e Química: a cultura indígena nas aulas de Ciências

Legenda da imagem: Célia Xakriabá e Sônia Guajajara, deputadas federais indígenas eleitas, em manifestação política com pintura corporal na face. Créditos: Douglas Freitas @alassderivas Fonte: Reprodução/Apib (https://www.flickr.com/photos/apiboficial/48554524467/)

O conhecimento de povos originários sobre corantes naturais utilizados para pinturas corporais permite articular a Lei 11.645/2008 com o ensino de Química.

Caio Ricardo Faiad

Professor, químico, linguista e, o mais importante, fã da Beyoncé. No doutorado, trabalho na pesquisa de interface Ciência e Literatura na perspectiva da Educação das Relações Étnico-raciais.

Nas redes sociais: @ocaiofaiad

06 de fevereiro de 2023 | 10:00

Desde 2004, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) organiza o Acampamento Terra Livre (ATL), o maior evento indígena do Brasil. Na edição de 2022, foram lançadas diversas pré-candidaturas para os cargos federais e estaduais. Das 30 candidaturas apoiadas pela Apib, duas se elegeram: Célia Xakriabá (PSOL-MG) e Sônia Guajajara (PSOL-SP). A pauta indígena atrelada à pauta climática e ambiental possui hoje maior destaque midiático, sendo possível ver as ativistas indígenas e parlamentares eleitas aparecerem com frequência com a face pintada por corantes naturais.

É tendo os corantes naturais como enfoque temático que foi publicado na forma de artigo na Revista Debates em Ensino de Química um recorte da pesquisa de mestrado desenvolvido por Vânia da Costa Ferreira Vanuchi na Universidade Federal de Santa Maria sob orientação de Mara Elisa Fortes Braibante. Esse artigo evidencia o tratamento da cultura indígena em salas de aula de ciências considerando a Química Orgânica como veículo curricular. Dessa forma, por meio dos conceitos de função orgânica e solubilidade, deu-se visibilidade química aos corantes naturais de urucum, mogno, jenipapo, açafrão e pau-brasil utilizados por determinadas comunidades indígenas brasileiras.

Cor-pigmento e os corantes naturais

As cores são um dos fenômenos mais bonitos de serem apreciados. Seja pelas mãos da natureza, como na aurora boreal, seja pelas mãos de um artista, em uma pintura. Cientificamente é possível diferenciar o processo da produção de cores da aurora boreal e de uma pintura pelo conceito cor-luz e cor-pigmento.

Entende-se como cor-luz, a cor da onda eletromagnética oriunda do sol, da lâmpada, da lanterna etc. Assim, uma lâmpada vermelha emite diretamente uma radiação eletromagnética na região espectral da luz visível com comprimento de onda situado entre 350 e 750 nm. É o fenômeno da emissão que explica a aurora boreal, onde a interação de elétrons do plasma solar com os átomos existentes no ar, libera energia com um determinado comprimento de onda na região do visível.

A cor-pigmento, no entanto, funciona de maneira diferente por se caracterizar como uma luz que foi refletida por um objeto. A cor de uma camiseta, por exemplo, não se dá pela emissão direta de radiação das fibras do tecido, mas do processo de absorção parcial da luz e da reflexão de uma determinada frequência de onda (Figura 1). Pigmento é a substância que quando aplicada a um material lhe confere cor, então, se nessa camiseta tiver um pigmento que absorve a luz solar e reflete a radiação entre 625 e 740 nm, então dizemos que essa camiseta é vermelha. É manipulando pigmentos que artistas indiretamente se utilizam da absorção e reflexão da luz para produzir suas obras.

Figura 1. Exemplificando a cor-pigmento. Na imagem, uma luz branca incide no objeto, todos os comprimento de onda são absorvidos, exceto o vermelho que é refletido. Fonte: https://cdn.kastatic.org/ka-perseus-images/7133281e21114abc4a84600a27392f3e45a4a75e.png

Mas não é só pela arte que o ser humano manipula a cor-pigmento. A história da humanidade é marcada pelo uso de pigmentos e de seus significados sociais. Diversas comunidades ao redor do globo terrestre, ao longo de anos e gerações, construíram conhecimentos por meio da descoberta, seleção e manejo de vegetais, animais e minerais. É no conhecimento tradicional indígena referente a obtenção de corantes e na química da cor-pigmento que Vanuchi e Braibante fundamentam sua pesquisa em Educação em Ciências.

Construindo uma abordagem didática para os corantes naturais

Corantes naturais são aqueles extraídos de plantas, animais, minerais e, até mesmo, microrganismos. Urucum, mogno, jenipapo, açafrão e pau-brasil são alguns dos vegetais utilizados por distintas comunidades indígenas para obtenção das colorações. Os pigmentos obtidos são usados para fins estéticos, econômicos, bélicos, sociais e religiosos.

No artigo intitulado “O Uso de Corantes Naturais por Algumas Comunidades Indígenas Brasileiras: Uma Possibilidade para o Ensino de Química Articulado com a Lei 11.645/2008”, Vanuchi e Braibante apresentam a descrição química desses corantes naturais, bem como, algumas das comunidades que as utilizam. No quadro 1, esquematizo as informações trazidas pelas pesquisadoras.

É a partir da estrutura molecular dos pigmentos (Figura 2) que a Química orgânica é escolhida como disciplina base para a abordagem, sendo objeto didático de estudo as funções orgânicas, como alcoóis, aldeídos, cetonas, éter e ésteres.

As pesquisadoras também descrevem o modo como determinadas comunidades indígenas realizam a extração dos pigmentos. Um caso interessante é o do urucum, em que comunidades diferentes realizam distintas formas de obtenção da coloração desejada: 

  • os Asurini do Trocará (TO), os Xikirin (PA) e os Karajá (MT) amassam as sementes com as mãos e espalham pelo corpo.
  • os Xerentes (TO) obtêm a tintura por meio da fervura prolongada da semente de urucum e após esfriar, espalham pelo corpo.
  • os indígenas do Alto Xingú ralam as sementes, peneiram e fervem em água até formar uma pasta.

É a partir desse saber tradicional de extração que as pesquisadoras realizam uma atividade experimental de teste de solubilidade de pequenas amostras de urucum (sementes), mogno (casca), jenipapo (polpa do fruto) e açafrão (tubérculo) em diferentes solventes: água, álcool etílico, acetona, diclorometano e hexano.

História e Cultura indígena na aula de Química

Pela primeira vez, o Brasil terá um Ministério dos Povos Indígenas, sendo a deputada eleita Sônia Guajajara a primeira ministra da pasta. Essa maior visibilidade na política institucional da pauta indígena poderá fornecer para os professores caminhos para implementação da lei 11.645/2008 que obriga a inclusão da História e Cultura afro-brasileira e dos povos indígenas brasileiros em todo o currículo escolar. Mas não cabe só ao professor essa tarefa. Secretarias Municipais e Estaduais de Educação deverão fornecer aos educadores formação adequada para a implementação da lei 11.645/2008 na sala de aula.

O relato de experiência da professora e mestra Vânia Vanuchi, atualmente doutoranda na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, planejado e analisado por um aparato acadêmico, mostra como a teoria e a prática docente podem estar politicamente engajadas com a ruptura de ideias racistas que fundamentam o pensamento social brasileiro, sem minimizar o conteúdo curricular. Vanuchi e Braibante materializam no ensino de Química uma célebre frase de Paulo Freire: “Se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda”.

Ficou interessado pelo universo dos corantes e como o conhecimento de povos originários podem ser integrados ao ensino de Química? Leia o artigo produzido por Vanuchi e Braibante na íntegra:

VANUCHI, Vânia da Costa Ferreira; BRAIBANTE, Mara Elisa Fortes. O uso de corantes naturais por algumas comunidades indígenas brasileiras: uma possibilidade para o ensino de química articulado com a Lei 11.645/2008. Revista Debates em Ensino de Química, v. 7, n. 2, p. 54-74, 2021. Disponível em: https://www.journals.ufrpe.br/index.php/REDEQUIM/article/view/4207