
Núcleo de Estudos em Tribunais Internacionais
Faculdade de Direito
Universidade de São Paulo
Largo de São Francisco, 95
Sé – São Paulo, SP
01006-020
No dia 4 de dezembro de 2024, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) emitiu sentença relativa ao Caso Leite de Souza e outros Vs. Brasil. O referido caso envolve denúncias de desaparecimento de onze jovens negros na favela de Acari, no Rio de Janeiro, em 26 de julho de 1990, que ficou mais conhecido como a “Chacina de Acari”.
Apesar da imensa divulgação nas mídias da época, somente em 2006 a Comissão Interamericana de Direitos Humanos recebeu denúncia de violações perpetradas no Estado brasileiro em face do desaparecimento forçado dos jovens. Passados um pouco mais de quinze anos, o caso Cristiane Leite de Souza e outros foi apresentado à Corte IDH, em abril de 2022.
Na Corte Interamericana, os juízes decidiram por responsabilizar internacionalmente o Estado brasileiro pelo desaparecimento forçado de onze jovens negros da favela de Acari, além de tratar sobre presumidas violências sexuais contra duas meninas e uma mulher.
Ao longo do processo, a Corte IDH considerou o caráter pluriofensivo[1] do desaparecimento forçado e de sua natureza permanente ou continuada, cujos elementos concorrentes são: a privação de liberdade; a intervenção direta ou aquiescência de agentes estatais; e, a negativa de reconhecimento da detenção ou falta de informações sobre destino ou paradeiro da pessoa desaparecida.
Assim, a Corte IDH identificou a falta de diligência nas investigações conduzidas pelos órgãos competentes, assim como falhas quanto às punições dos assassinos e, entendeu que o Brasil violou o princípio da igualdade, tanto no que se refere ao aspecto racial quanto social, tendo em vista que as vítimas eram moradores de uma comunidade pobre da cidade do Rio de Janeiro e eram majoritariamente negras ou pardas, situação que ainda está relacionada à pobreza.
A referida Corte ainda reconheceu que preconceitos pessoais e estereótipos de gênero afetam a objetividade dos funcionários do Estado na investigação das denúncias, impactando a credibilidade das testemunhas e das próprias vítimas, o que pode redundar em negação da justiça e revitimização. Tal realidade fática levou o Estado a não conduzir as investigações de modo adequado e considerando as evidências e denúncias de violência policial, o que perpetuou a impunidade.
Esse lapso temporal entre a ocorrência do fato, até a submissão do caso à Corte IDH, mesmo com os processos judiciais iniciados posteriormente, tanto o crime de desaparecimento quanto os danos materiais e morais às famílias enfrentaram prescrições legais. Somente os crimes contra a dignidade sexual, conforme interpretação da Corte, são imprescritíveis quando praticados por agentes estatais, sendo considerados crimes de tortura.
No que tange diretamente ao desaparecimento forçado, a Corte IDH certificou que os suspeitos pelos crimes eram policiais integrantes de um grupo de extermínio no Rio de Janeiro, formado por policiais do 9º Batalhão da Polícia Militar de Rocha Miranda[2] e denominado Cavalos Corredores, que foram identificados como responsáveis por diversos crimes na favela de Acari, incluindo a Chacina de Acari em 1990, conforme investigações da Comissão Parlamentar de Inquérito da Assembleia Legislativa do estado do Rio de Janeiro (CPI-ALERJ).
De igual maneira, a Corte IDH também considerou o Brasil responsável pelo assassinato de duas familiares que buscavam justiça pelos desaparecimentos, isto é, Edméa da Silva Euzébio, mãe de um dos jovens e líder do grupo “Mães de Acari”, e de sua sobrinha Sheila da Conceição.
Desse modo, reconheceu-se a responsabilidade internacional do Estado brasileiro pela violação dos artigos 3, 4, 5, 8, 13, 16, 19, 24 e 25 da Convenção Americana, em relação aos artigos 1.1 e 2 do mesmo instrumento; dos artigos I. a, b e d, e III da Convenção Interamericana sobre o Desaparecimento Forçado de Pessoas e dos artigos 7.b 0 e 7. f) da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher mais conhecida como Convenção de Belém do Pará.
Na análise do mérito, ainda se destacam considerações sobre a falta de investigação sobre os supostos fatos de violência sexual cometidos contra as meninas Cristiane Leite de Souza e Viviane Rocha da Silva, bem como contra a senhora Rosana de Souza Santos, de modo autônomo ou vinculado ao desaparecimento, em descompasso com as obrigações de devida diligência para investigar, julgar e punir fatos de violência contra a mulher, conforme a Convenção de Belém do Pará, ratificada pelo Brasil em 27 de novembro de 1995.
Outrossim, o Brasil reconheceu somente parcialmente sua responsabilidade internacional pela violação ao direito às garantias judiciais, pela violação de garantia de prazo razoável na solução do caso desde a denúncia do Ministério Público em 2011, que levou o processo a permanecer pendente até a data de prolação da sentença, com violação dos artigos 8 e 25 da Convenção Americana de Direitos Humanos, levando à apresentação de um pedido de desculpas do Estado demandado às vítimas afetadas.
Na sentença observou-se que os elementos que configuram o caráter pluriofensivo do desaparecimento forçado, já mencionados, também estão reconhecidos na Convenção Interamericana sobre Desaparecimento Forçado de Pessoas, na jurisprudência do Tribunal Europeu de Direitos Humanos e em decisões de variadas instâncias internacionais, tratando-se de cada um de seus elementos.
Não obstante, diante da ausência de uma investigação séria, objetiva e efetiva dos fatos, a Corte IDH manifestou-se pela condenação do Brasil pela violação dos artigos 8.1, 13, 19 e 25.1 da Convenção Americana de Direitos Humanos, de 1969, em relação aos artigos 1.1 e 2. Adicionalmente, o Estado violou os artigos 7.b) e 7.f) da Convenção de Belém do Pará, referentes à obrigação de prevenir, investigar e punir atos de violência contra mulheres, e os artigos I. b) e III da Convenção Interamericana sobre Desaparecimento Forçado de Pessoas, de 1994, que tratam do dever de punir e adotar medidas legislativas para prevenir o desaparecimento forçado.
Do mesmo modo, o Brasil foi responsabilizado pela violação do direito ao reconhecimento da personalidade jurídica, à vida, à integridade pessoal e à liberdade pessoal, em relação ao desaparecimento forçado dos Jovens de Acari, atribuído a agentes estatais, quiçá de “segurança pública”. O Estado foi considerado responsável pela violação dos artigos 3, 4, 5 e 7 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, de 1969, à luz do artigo 1.1 desta mesma Convenção. Além disso, também se reconheceu que houve violação da obrigação de não praticar, permitir nem tolerar o desaparecimento forçado, conforme o artigo I. a) da Convenção Interamericana sobre Desaparecimento Forçado de Pessoas, de 1994. Do mesmo modo, a Corte reconheceu a violação dos direitos da criança, conforme o artigo 19 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, de 1990, uma vez que envolvia quatro crianças com idade entre 14 e 17 anos de idade, o que exige uma proteção especial, desde a perspectiva da prevalência do interesse superior da criança, apresentando-se como direito adicional e complementar aos demais direitos reconhecidos na Convenção Americana de Direitos Humanos.
Por fim, o Brasil foi condenado pela Corte à obrigação de investigar, processar e punir; a adoção de medidas para que o Estado do Rio de Janeiro estabeleça metas de políticas e redução da letalidade e da violência policial; o estabelecimento de um programa ou curso permanente e obrigatório para membros das polícias civil e militar do Rio de Janeiro sobre a atenção às vítimas de violência sexual e lesão corporal ou morte decorrente de intervenção policial. Porém, em 2022, a Assembleia Legislativa do Estado do Rio (ALERJ) publicou a Lei nº 9.753, que prevê a concessão de reparação financeira a título de danos material e moral, no qual se insere os familiares dos onze jovens desaparecidos em Acari.
Em suma, a sentença é o resultado de trinta e quatro anos de luta dos familiares por justiça, diante dos desaparecimentos, assassinatos e a violência sexual perpetrados contra vítimas em condição de exclusão socioecônomica, estigmatização e vulnerabilidade. A relevância da sentença está em retratar parcela expressiva dos jovens residentes em comunidades do Brasil, assim como práticas de violência comuns às quais esse público é suscetível, expondo o aparato normativo do Direito Internacional dos Direitos Humanos que confere proteção a estas pessoas e cuja observância pelo Estado brasileiro é imprescindível para a construção de uma sociedade mais justa e igual.
A CONDENAÇÃO DO BRASIL PELOS DANOS CAUSADOS ÀS VÍTIMAS DO CASO LEITE DE SOUZA E OUTROS VS. BRASIL
O caso Leite de Souza e outros Vs. Brasil já fora tratado em outra oportunidade no NETI/USP. Todavia, aqui tem-se o condão de abordar especificamente a condenação do Estado brasileiro pelos danos causados às vítimas e seus familiares, ao longo de três décadas de lentidão processual e impunidade dos responsáveis pelo desaparecimento forçado de onze jovens na Favela do Acari, em 1990, na cidade do Rio de Janeiro.
Uma vez submetido o caso à Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), analisou-se a responsabilidade internacional do Estado brasileiro em relação ao desaparecimento forçado dos onze jovens, bem como as repercussões sobre seus familiares, desde 10 de dezembro de 1998, data a partir do qual o Brasil reconheceu a competência contenciosa da Corte.
A Corte IDH também considerou o caráter pluriofensivo do desaparecimento forçado, e tratou ao longo da sentença de cada um dos seus três elementos, quais sejam: 1) a privação de liberdade; 2) a intervenção direta ou aquiescência de agentes estatais; e, 3) a negativa de reconhecimento da detenção ou falta de informações sobre destino ou paradeiro da pessoa desaparecida.
A respeito das provas do desaparecimento forçado, a Corte IDH salientou a tentativa de suprimir os elementos que comprovam a detenção, paradeiro e destino das vítimas, o que dificulta ou impossibilita a obtenção de prova direta. Todavia, essa constatação não é impeditiva para o reconhecimento da responsabilidade internacional do Estado – nesse sentido, observou-se que as investigações internas não refutaram os indícios de participação de agentes estatais nos fatos, razão pela qual é possível atribuir relevância aos indícios. Frisou-se no caso que o argumento de falta de provas da defesa estatal não é válido, uma vez que é o próprio Estado que possui controle dos meios para esclarecimento dos fatos.
Ademais, pela natureza do desaparecimento forçado, no qual há intenção de ocultar a violação, as provas indiciárias, circunstanciais ou presuntivas adquirem importância especial quando consideradas em conjunto e permitam inferir conclusões consistentes sobre os fatos.[3] As conclusões das autoridades estatais podem ser levadas em consideração, mas prevalece a determinação autônoma da Corte IDH, com fundamento em sua competência e determinação próprias. Nesse quadro, a prova testemunhal adquire alto valor probatório, somada às inferências lógicas e à ocorrência de prática geral de desaparecimentos forçados.
Na avaliação das circunstâncias, a Corte IDH avaliou que houve a privação de liberdade, pois no dia 21 de julho de 1990, Wallace Souza do Nascimento dirigiu-se para a casa de sua avó em Suruí, com seus amigos e amigas, a saber: Luiz Henrique da Silva Euzébio, Viviane Rocha da Silva, Cristiane Leite de Souza, Moisés dos Santos Cruz, Edson de Souza Costa, Luiz Carlos Vasconcellos de Deus, Hoodson Silva de Oliveira, Rosana de Souza Santos e Antônio Carlos da Silva, residentes da Favela de Acari em sua maior parte. Depois do período de cinco dias, em 26 de julho de 1990, por volta das 23:00 horas, a casa da senhora Laudicena de Oliveira Nascimento, avó de Wallace Souza do Nascimento, foi invadida por um grupo de aproximadamente seis homens, que sequestraram os 10 jovens mencionados e Hédio Nascimento, filho da senhora Laudicena, que conseguiu escapar pela janela com seu neto de 10 anos de idade. Esses fatos não foram contestados pelo Estado e, por isso, a Corte IDH constatou o elemento de privação de liberdade das 11 pessoas.
Quanto ao desaparecimento forçado, a intervenção direta ou aquiescência de agentes estatais, fora considerado o contexto de violência praticada por milícias no Rio de Janeiro, com especial relevância entre a população negra, em situação de pobreza e residente em favelas em referido estado. A decisão cita informações da Comissão Parlamentar de Inquérito da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (CPI-ALERJ) a respeito da ação de milícias, que reconhece entre seus integrantes agentes públicos estatais e da Polícia Militar, ao lado de civis.
No caso, a Corte IDH considerou que havia elementos compatíveis com o contexto de violência praticada por grupos de extermínio nos quais participavam agentes estatais e indícios de participação do grupo Cavalos Corredores. Entre esses indícios, a sentença traz fato ocorrido 12 dias antes do desaparecimento das onze pessoas, a invasão da casa da senhora Edmea da Silva Euzébio, na já mencionada Favela de Acari, por grupo de seis policiais militares que integrariam os Cavalos Corredores, que detiveram e ameaçaram três das supostas vítimas: Edson de Souza Costa, Moisés dos Santos Cruz e Viviane Rocha da Silva, exigindo dinheiro em troca da liberação dos jovens.
A maior parte do valor exigido foi entregue e os jovens liberados, mas seis dias após, um policial retornou à casa da senhora Edmea e ameaçou de morte por vingança Edson de Souza Costa e Moisés dos Santos Cruz, jovens que desapareceram posteriormente em 26 de julho de 1990. Além disso, no ano de 1995 uma testemunha policial militar e motorista relatou que os jovens desaparecidos foram levados para propriedade de “Peninha”, também policial militar e chefe dos Cavalos Corredores, sendo que a mencionada testemunha atuava como seu funcionário. No local referido, as três meninas teriam sido vítimas de estupro, todos teriam sido assassinados e seus corpos jogados no Rio Estrela.[4]Outrossim, houve o homicídio da senhora Edmea da Silva Euzébio, mãe de Luiz Henrique da Silva Euzébio (um dos jovens desaparecidos) e líder do grupo Mães de Acari, pouco tempo após seu depoimento a uma autoridade judicial sobre a participação de policiais no desaparecimento dos 11 jovens, vindo também a sofrer homicídio a senhora Sheila da Conceição, prima de Luiz Henrique da Silva Euzébio.
Quanto ao terceiro e último elemento do desaparecimento forçado, a negativa no reconhecimento da detenção ou a ausência das informações de destino ou paradeiro, a Corte IDH observou que depois de quase 34 anos, não houve esclarecimentos sobre os fatos e o paradeiro das supostas vítimas.
A partir das considerações acima expostas, a Corte IDH declarou que o Brasil foi responsável pela violação dos direitos ao reconhecimento da personalidade jurídica, à vida, à integridade pessoal e à liberdade pessoal, conforme assegurado nos artigos 3, 4, 5 e 7 da Convenção Americana, em relação ao artigo 1.1 do mencionado instrumento, assim como pela violação da obrigação de não praticar, permitir ou tolerar o desaparecimento forçado, nos termos do artigo I. a da Convenção Interamericana sobre Desaparecimento Forçado de Pessoas, em detrimento de Hédio Nascimento, Wallace Souza do Nascimento, Moisés dos Santos Cruz, Edson de Souza Costa, Luiz Carlos Vasconcellos de Deus, Luiz Henrique da Silva Euzébio e Rosana de Souza Santos. A Corte considerou o Estado réu responsável pela violação de todas as disposições acima citadas, em conjunto com a violação dos direitos da criança, de acordo com o artigo 19 da Convenção Americana, em detrimento de Cristiane Leite de Souza, Viviane Rocha da Silva, Hoodson Silva de Oliveira e Antônio Carlos da Silva, crianças à época de seu desaparecimento forçado, com idades de 17, 14, 16 e 17 anos, respectivamente.
A Corte IDH ainda considerou que a Convenção Interamericana sobre Desaparecimento Forçado de Pessoas entrou em vigor para o Estado Brasileiro em 03 de fevereiro de 2014, porém o Tribunal não tem notícias de atividades investigativas sobre o caso desde o ano de 2006, mesmo após a reabertura da investigação no ano de 2011, razão pela qual se concluiu que o Brasil faltou com sua obrigação de devida diligência em uma busca séria, coordenada e sistemática das vítimas até alcançar certeza sobre os seus destinos ou paradeiros.[5] A falta de diligências sobre as violências sexuais cometidas e buscas no tocante aos desaparecimentos forçados por mais de 34 anos foi mencionada também como violação da garantia de um prazo razoável de investigação.
O direito de conhecer o paradeiro das vítimas foi tratado no caso como um componente do direito à verdade e por ser de interesse não somente dos familiares das vítimas, mas da sociedade em geral, por sua contribuição em prevenir novos casos de desaparecimento forçado. Com efeito, o direito à verdade tem seu maior fundamento no direito de acesso à justiça, porém fora observado seu caráter amplo, sendo possível que sua violação esteja relacionada com inúmeros direitos da Convenção Americana.
Quanto à morte de Edmea da Silva Euzébio e Sheila da Conceição, a sentença retoma a jurisprudência sobre a privação do direito à vida que sedimenta a relevância da investigação e sanção para não tolerar um meio de impunidade e evitar a repetição de novos casos. Considerando os riscos aos quais se submetem as mulheres defensoras de direitos humanos, tais como as Mães de Acari, a Corte IDH observou que esses fatores implicam em um dever reforçado do Estado de investigar e sancionar de forma célere os responsáveis.
Quanto aos impactos do desaparecimento forçado sobre os familiares das vítimas, ainda foram reconhecidos os impactos especiais sobre os familiares que à época eram crianças, o que acarretou o crescimento em uma família desestruturada e graves consequências emocionais em tenra idade. Enfatizou-se, assim, que a falta de ações efetivas das autoridades estatais prejudicou as novas gerações de familiares das vítimas. Deste modo, o Estado brasileiro foi considerado responsável pela violação do artigo 17, que estabelece a proteção da família e do artigo 19, que trata dos direitos da criança, em relação ao artigo 1.1, da Convenção Americana.
Diante da ausência de proteção estatal aos Direitos Humanos por parte do Brasil, bem como da gravidade dos fatos narrados por toda a sentença da Corte IDH, esta resolveu, por fim, condenar o Brasil às reparações expostas abaixo, com o devido fulcro ao que demanda o art. 63.1 da Convenção Americana Sobre Direitos Humanos:
A Corte considerou a necessidade de conceder diversas medidas de reparação para compensar os danos de maneira integral, de forma que, além das compensações pecuniárias, as medidas de restituição, reabilitação, satisfação e garantias de não repetição têm especial relevância pelos danos ocasionados.[6]
Em primeira senda a Corte, em proteção às partes lesadas diretamente, determina ao Brasil a obrigação de investigar os fatos, identificar, julgar e, se for o caso, sancionar os responsáveis, notadamente em prazo razoável e sem possibilidade de anistias ou qualquer outra disposição análoga, prescrição, irretroatividade da lei penal, coisa julgada, ne bis in idem ou qualquer outro mecanismo similar de exclusão de responsabilidade para se eximir dessa obrigação. Ainda neste ponto, percebendo que existem vítimas indiretas – sabidamente a família dos desaparecidos ou mortos – o Estado tem ainda a obrigação subsidiária de lhes conferir segurança e integridade pessoal, tendo em vista que ficou clara a participação direta de milícias nos fatos.
Em nova obrigação, agora em relação aos 11 desaparecidos, a Corte determina que o Estado adote medidas para encontrar os restos mortais destes e lhes entregue aos familiares como forma de aliviar o sofrimento e angústia da incerteza do paradeiro destes pelos últimos 34 anos. Para tanto, exige que o Brasil persiga nas investigações, dando o aparato de recursos humanos, técnicos e científicos adequados e capacitados necessários para tal desfecho, sem deixar de lado a participação efetiva da família dos envolvidos em todo o processo e servindo todo o aparato financeiro para eventuais despesas funerárias ou similares que surgirem.
Fica ainda disposto na sentença, de modo reparativo a obrigação do Estado brasileiro de fornecer tratamento médico, psicológico e/ou psiquiátrico às famílias vítimas, como reconhecimento da violação direta ao direito à integridade pessoal destas, devendo serem então aparadas de maneira gratuita, facilitada, prioritária, adequada e afetiva, tendo, portanto, as vítimas o prazo de 18 meses – contados da sentença – para manifestarem o seu interesse no tratamento. E, o Estado terá um prazo máximo de três meses, contados a partir do recebimento da confirmação dos familiares para efetivamente oferecer o atendimento requerido e designar um interlocutor ou interlocutora para comunicação com as vítimas.
Há ainda a exigência para reparação de cunho imaterial das vítimas no sentido de construir um memorial para “As vítimas de Acari” no bairro de mesmo nome, na cidade do Rio de Janeiro, em homenagem às vítimas, no prazo máximo de dois anos.
Em tempo, deve ainda o Brasil realizar um ato público de reconhecimento de responsabilidade internacional em relação aos fatos do presente caso, com a presença indispensável dos familiares das vítimas e pessoas envolvidas no caso, no prazo de um ano a partir da notificação desta sentença, fazendo referência aos fatos e às violações sofridas pelas famílias vitimadas.
O ato deve, ainda, mencionar o impacto particular sofrido pelas vítimas pertencentes ao grupo Mães de Acari, relacionado ao seu gênero e ao seu papel como mães buscadoras, em razão do desaparecimento e da busca de seus filhos e filhas, no contexto da atuação de milícias e grupos de extermínio nas favelas e outras comunidades em situação de pobreza no Brasil.
Sobre as obrigações, frisa-se ainda obrigação de dispor dos meios necessários para tipificar o crime de desaparecimento forçado, de acordo com os padrões interamericanos sobre a matéria, como uma das medidas estatais necessárias para coibir novos intentos da mesma natureza.
Ocorre que a mesma Corte IDH salienta no escopo da sentença, que o Brasil já foi condenado à mesma reparação no caso Gomes Lund e outros (“Guerrilha do Araguaia”) Vs. Brasil, em 2010, e que o Brasil alertou que já haviam os projetos de lei nº 301/2007 e nº 4.038/2008 em tramitação, porém, mesmo passados quase 14 anos, o Poder Legislativo do país ainda não adotou as medidas pertinentes para o cumprimento da obrigação, que fora reforçada na decisão aqui analisada.
Ainda no escopo das obrigações de fazer e diante da flagrante atuação de grupos de milícias no país, principalmente no Estado do Rio de Janeiro, a Corte entendeu ainda da necessidade do Brasil elaborar um estudo atualizado sobre a atuação de “milícias” e grupos de extermínio no Rio de Janeiro e recomendações e propostas de ferramentas, medidas, estratégias e soluções administrativas, judiciais, legislativas e policiais, entre outras, para combater essas organizações criminosas, com prazo de 1 ano para formação do grupo e mais 1 ano para a conclusão do referido estudo.
Em tempo, como última obrigação de fazer, a Corte IDH determina que o Estado brasileiro adeque ou adote protocolos de investigação, no estado do Rio de Janeiro, respeitando os padrões internacionais de investigação de supostos casos de violência policial com enfoque de gênero, infância e interseccionalidade, no prazo de dois anos a partir da notificação da presente Sentença.
No tocante às indenizações pecuniárias, tendo em vista que no curso do processo não foi possível analisar com maior precisão os valores referentes aos danos materiais, e tampouco o Brasil apresentou quaisquer comprovações de pagamento de indenizações às vítimas no âmbito interno, decidiu a Corte IDH por determinar valores a serem pagos aos parentes das vítimas à título de dano material e dano imaterial.
No que concerne ao Direito Imaterial, entende a Corte IDH que, apesar de estes danos não poderem ser precisados em valores pecuniários, devem ser atribuídos valores que possam minimizar as angústias e sofrimentos causados às famílias e às vítimas, que, entendeu a Corte, levando em consideração as circunstâncias do presente caso, as violações cometidas, os sofrimentos ocasionados e o tempo transcorrido, ser pertinente fixar, com base na equidade, a quantia de USD$ 90.000,00 (noventa mil dólares dos Estados Unidos da América) em favor de cada uma das 11 vítimas desaparecidas, devendo ser pagos aos herdeiros legais conforme o Direito aplicado.
Os valores referentes aos gastos e custas durante a perenidade processual não foram integralmente comprovados no momento processual adequados, portanto, diante da ausência de suporte probatório suficiente sobre as despesas incorridas na jurisdição interna e no litígio do caso no âmbito internacional, o Tribunal ordenou o montante de USD$ 20.000,00 (vinte mil dólares dos Estados Unidos da América) a título de custas e despesas, a ser dividido entre os representantes das vítimas.
A Corte ordena ainda ao Estado reembolso ao Fundo de Assistência Jurídica de Vítimas da Corte Interamericana, conforme preceitua a Assembleia da Organização dos Estados Americanos (OEA) de 2008, e, baseado nos valores apresentados em maio de 2024, o valor de USD$ 3.684,46 (três mil seiscentos e oitenta e quatro dólares e quarenta e seis centavos de dólares dos Estados Unidos da América) em virtude dos gastos necessários realizados, com prazo de pagamento de seis meses, contados a partir da notificação da Decisão.
Os valores apresentados na decisão devem ser pagos diretamente aos nomeados, ou seus representantes no prazo de um ano contado da ciência da referida sentença.
Vê-se, portanto, que a Corte IDH tentou, de maneira cuidadosa e minuciosa, abordar o maior número de pontos de reparação possíveis para que as vítimas sejam devidamente amparadas, bem como para que o Estado condenado tenha, nas obrigações de fazer, escopo suficiente para evitar repetições dos danos humanísticos causados, e, que, caso ocorram, possam ser reparados dentro do âmbito interno com fluidez, celeridade e justiça.
Referências Bibliográficas
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Leite de Souza e outros Vs. Brasil. Sentença de 4 de julho de 2024. Disponível em: https://jurisprudencia.corteidh.or.cr/es/vid/1048554615 . Acesso em: 10 dez. 2024.
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica). Adotada em 22 de novembro de 1969. Entrada em vigor em 18 de julho de 1978. Disponível em: https://www.oas.org/pt/cidh/mandato/Basicos/convencion.pdf. Acesso em: 10 dez. 2024.
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará). Adotada em 9 de junho de 1994. Entrada em vigor em 5 de março de 1995. Disponível em: https://www.oas.org/pt/cidh/mandato/Basicos/belemdopara.asp. Acesso em: 10 dez. 2024.
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Convenção Interamericana sobre o Desaparecimento Forçado de Pessoas. Adotada em 9 de junho de 1994. Entrada em vigor em 29 de março de 1991. Disponível em:https://www.oas.org/pt/cidh/mandato/Basicos/desaparicion.pdf. Acesso em: 10 dez. 2024.
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Protocolo de San Salvador). Adotado em 17 de novembro de 1988. Entrada em vigor em 16 de novembro de 1999. Disponível em: https://www.oas.org/pt/cidh/mandato/Basicos/sansalvador.pdf. Acesso em: 10 dez. 2024.
[1] Há caráter pluriofensivo quando o resultado atinge mais de um bem jurídico.
[2] CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Leite de Souza e outros Vs. Brasil. Sentença de 4 de julho de 2024. Disponível em: https://jurisprudencia.corteidh.or.cr/es/vid/1048554615 . Acesso em: 10 dez. 2024. p. 32.
[3] CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Leite de Souza e outros Vs. Brasil. Sentença de 4 de julho de 2024. Disponível em: https://jurisprudencia.corteidh.or.cr/es/vid/1048554615 . Acesso em: 10 dez. 2024. p. 29.
[4] CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Leite de Souza e outros Vs. Brasil. Sentença de 4 de julho de 2024. Disponível em: https://jurisprudencia.corteidh.or.cr/es/vid/1048554615 . Acesso em: 10 dez. 2024. p. 32.
[5] CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Leite de Souza e outros Vs. Brasil. Sentença de 4 de julho de 2024. Disponível em: https://jurisprudencia.corteidh.or.cr/es/vid/1048554615 . Acesso em: 10 dez. 2024. p. 29.
[6] CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Leite de Souza e outros Vs. Brasil. Sentença de 4 de julho de 2024. Disponível em: https://jurisprudencia.corteidh.or.cr/es/vid/1048554615 . Acesso em: 10 dez. 2024. p. 60.
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