A contribuição das Cortes Internacionais de Direitos Humanos e o direito das pessoas intersexuais: o Caso Y v. France

A demora para registro de nascimento que impede a fruição de uma série de direitos, dentre os quais, a licença maternidade ou a inserção do bebê em algum plano de saúde, cirurgias de ressignificação sexual, esterilizações involuntárias, traumas psíquicos, dependência hormonal, perda da sensibilidade genital, submissão à procedimentos desnecessários e inconsentidos são exemplos das violações cometidas contra as pessoas intersexo.

A intersexualidade é definida como toda circunstância em que a anatomia sexual da pessoa não se adequa fisicamente aos padrões culturalmente definidos para o corpo binário feminino ou masculino, seja em razão da autonomia sexual, seja por razões cromossômicas, aparente ou não ao nascimento. Não se trata de orientação sexual ou identidade de gênero (CORTE IDH, 2017,§32,d).

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos, no relatório sobre a Violência contra Pessoas Lésbicas, Gay, Bisexuais, Trans e Intersexo na América, apontou que as pessoas intersexo têm sido vítimas de “formas específicas de violência desde a infância e a adolescência, em um contexto de invisibilidade, preconceitos e tabus” (CIDH, 2015).

Como visto, as pessoas intersexo estão fora do padrão de “corporalidade feminina ou masculina” e, em razão disso, dentre as diversas formas de violência causadas a esse grupo de pessoas, destacam-se notadamente as modificações de suas características sexuais, por meio de cirurgias quase sempre irreversíveis, que causam, em muitos casos, “esterilizações involuntárias, infertilidade irreversível e a redução ou perda da sensibilidade sexual”, e que visam a “‘normalizar’ o aparecimento dos órgãos genitais”, tentando adequá-los ao sistema binário de sexo e gênero dominante (CIDH,2015).

A CIDH reconhece como esse modelo pode ser “prejudicial e devastador na vida das pessoas intersexo”. Assim, as inúmeras exposições de seus genitais e a exames médicos somadas à falta do consentimento prévio e informado sobre as cirurgias sexuais e a dificuldade de acesso aos registros médicos, acabam por atingir a saúde mental dessas pessoas e as “impede de conhecer a verdade sobre as intervenções realizadas em sua infância e adolescência” (CIDH, 2015).

A CIDH assevera ainda que as intervenções são meramente estéticas, para que os corpos “se pareçam mais com os padrões dominantes”, sem benefícios médicos evidentes, ou seja, não há perigo para a vida ou a saúde das pessoas, mas um desconforto ou uma “alegada impossibilidade por parte dos pais e mães, da comunidade médica, do registro civil e da sociedade em geral de aceitarem a ‘incerteza’ sexual porque o menino ou a menina não pode ser fácil e rapidamente classificado como menino ou menina”. Essa seria a razão para a “urgência médica” na realização dessas cirurgias durante a infância: essa falta de caracterização binária constituiria um “obstáculo” para viver uma “vida normal” e as intervenções seriam uma “tentativa de evitar sofrimento potencial mais tarde na vida”. Porém, a submissão a esses procedimentos colocam as crianças aos riscos inerentes de cirurgias, administração de hormônios e dispositivos de dilatação genitais. Essas intervenções muitas vezes ocorrem sem um esclarecimento médico-profissional devido aos genitores, que consentem – ou por coação ou por desinformação -, quando consentem (§182-195). Mais recentemente, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) realizou duas chamadas de audiência para que os Estados garantam o acesso à verdade, à justiça e à reparação das pessoas intersexo, inclusive de pessoas intersexo idosas. Desse modo, a CIDH chamou novamente a atenção para o tema, destacando as diversas formas de violência que pessoas intersexo vivenciam ao tentarem enquadrá-las socialmente em um sistema binário. No entanto, a CIDH não esclareceu, por exemplo, como os Estados devem lidar com a questão específica sobre o registro de nascimento das pessoas intersexuais (OEA, 2021, 2023), o que demonstra que no sistema interamericano a temática ainda não parece estar integralmente esclarecida.

Outro aspecto que tem gerado críticas diz respeito ao fato de que o tema sobre direitos das pessoas intersexuais é discutido juntamente com os direitos das pessoas lgbtqiapn+, de um modo geral, como pode ser verificado no próprio Relatório da CIDH Sobre Violência Contra pessoas Lésbicas, Gays, Bissexuais, Trans e Intersexo nas Américas (CIDH, 2015) citado. Essa abordagem prejudica o debate sobre as formas de violência cometidas especificamente contra esse grupo e, consequentemente, a análise, promoção e efetivação de políticas voltadas a ele, repousando o tema na invisibilidade.

Mais um ponto a ser destacado é que não há uma discussão específica sobre esse tema no âmbito da Corte Interamericana. O caso contencioso de referência é o Atala Riffo e crianças vs. Chile (CorteIDH, 2012), onde se debate a guarda de crianças da mãe que assumiu sua orientação sexual e não propriamente os direitos das pessoas intersexo. Já no âmbito consultivo, a Opinião Consultiva 24/2017 que trata da identidade de gênero, igualdade e não discriminação a casais do mesmo sexo, define a intersexualidade e reforça a necessidade de os Estados eliminarem práticas de submissão a tratamentos hormonais, ou intervenções cirúrgicas, inclusive de esterilização, aos adolescentes intersexuais, com base nas recomendações do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e do Comitê sobre os Direitos da Criança e dos Princípios de Yogyakarta (§148), mas também não trata da questão específica sobre o registro das pessoas intersexuais, aplicando-se a essas pessoas o entendimento aplicado aos transgêneros.

De fato, na OC 24/17, a Corte assinala que os Estados não apenas devem proteger, mas garantir que os dados constantes nos registros correspondam à identidade sexual e de gênero assumidas pelas pessoas transgêneros (§112), garantindo a elas a modificação de seus registros (§117). Nos parece que ao definir a intersexualidade e trazer pontos relevantes para a discussão, as pessoas intersexuais devem se beneficiar dos mesmos direitos aplicados aos transgêneros, embora, como dito, a Corte não tenha abordado especificamente a situação dos registros nos casos das pessoas intersexo e nem tratado de suas especificidades, especialmente no que tange às crianças e adolescentes. Na fase adulta, parece estar claro que os Estados devem garantir a identidade também das pessoas intersexo. No entanto, como tratado acima, muitas vezes a indefinição do sexo do bebê já pode, desde logo, acarretar na demora do registro de nascimento, prejudicando a fruição de direitos, tanto para o bebê quanto para mãe, como por exemplo, licença maternidade, plano de saúde, dentre outros.

Com relação ao tema, no âmbito da Corte Europeia de Direitos Humanos, destacamos o caso Y v. França, em que o Requerente teve seu pedido de registro como intersexo negado. Nesse caso, a Corte analisou notadamente o pedido de uma pessoa intersexo que solicitou que as palavras “neutro” ou “intersexo” fossem escritas em sua certidão de nascimento em vez de “masculino”. O caso Y v. França foi analisado pela Corte Europeia de Direitos Humanos (CEDH) em relação à violação por parte do Estado francês ao artigo 8º  da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, que protege o direito ao respeito pela vida privada. A sentença foi publicada dia 31 de janeiro de 2023 e a Corte, no entanto, não reconheceu que houve violação do referido artigo, isto é, o tribunal internacional se absteve de condenar o Estado francês.

Apesar da abstenção, a CEDH observou que o requerente é uma pessoa com variações no desenvolvimento sexual, conhecida como intersexo, e que apresenta uma ambiguidade sexual (CEDH, 2023, §40-44). A Corte apreciou o caso sob três pontos principais: a obrigação positiva do Estado, os princípios gerais relacionados às obrigações positivas e o equilíbrio dos direitos envolvidos. No primeiro ponto, a Corte considerou que o caso envolveu a obrigação positiva do Estado de garantir o respeito pela vida privada das pessoas em sua jurisdição, devido a uma lacuna na lei francesa (CEDH, 2023, §69-70). Quanto ao segundo ponto, a CEDH destacou que os Estados têm uma margem de apreciação ao implementar obrigações positivas sob o artigo 8º  e que essa margem pode ser restrita quando está em jogo um aspecto importante da existência ou identidade de um indivíduo. Por outro lado, a margem de apreciação é mais ampla quando não há consenso entre os Estados membros do Conselho da Europa sobre a importância relativa do interesse em pauta ou sobre os melhores meios de protegê-lo, especialmente quando a questão levanta aspectos morais sensíveis ou questões éticas. Assim, a CEDH concluiu que o Estado francês não ignorou sua obrigação positiva de garantir o respeito pela vida privada do requerente (CEDH, 2023,§71-88).

Em suma, a Corte Europeia de Direitos Humanos decidiu que, dadas as circunstâncias e a falta de consenso europeu sobre o assunto, o Estado francês tinha uma margem de apreciação nacional para determinar como responder aos pedidos de pessoas intersexo em relação ao estado civil. Portanto, considerou que não houve violação do artigo 8º  da Convenção (CEDH, 2023,  §91-92). Assim, apesar da sentença trazer diversas reflexões importantes sobre os direitos das pessoas intersexuais e avançar na matéria, principalmente por abordar questões importantes para  a comunidade lgbtqiapn+ como um todo, não apenas no que tange à promoção dos direitos humanos e a eliminação da discriminação contra pessoas intersexuais, como também questões ligadas à identidade de gênero na sociedade, a CEDH não reconheceu que houve a violação ao direito ao respeito pela vida privada.

No Brasil, uma decisão do Conselho Nacional de Justiça relacionada ao registro de crianças intersexo progrediu no tema ao dispor que crianças que nascerem sem o sexo definido poderão ser registradas com o sexo “ignorado” na certidão de nascimento. Além disso, poderão realizar, a qualquer momento, a designação de sexo em qualquer Cartório de Registro Civil sem a necessidade de decisão judicial ou prévia cirurgia de redesignação de sexo (IBDFAM, 2021).

É possível entender isso como um avanço dos direitos das pessoas intersexuais nesse aspecto, tendo em vista que poderão ser registrados segundo a sua vontade. No entanto, assim como o caso acima citado, não há a possibilidade de serem registrados com a informação sexo “intersexo” ou “neutro”, o que seria mais adequado já que o bebê não estaria adstrito ao enquadramento em um sistema binário, no qual de fato não está incluído.

 

Referências

CIDH. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Relatório sobre violência Contra pessoas Lésbicas, Gays, Bissexuais, Trans e Intersexo nas Américas. 2015. Disponível em http://www.oas.org/pt/cidh/docs/pdf/violenciapessoaslgbti.pdf. Acesso em 01 de novembro de 2023.

CorteIDH. Corte Interamericana de Direitos Humanos. CASO ATALA RIFFO E CRIANÇAS VS. CHILE. 2012. Disponível em https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_239_por.pdf Acesso em 01 de novembro de 2023.

CEDH. Corte Européia de Direitos Humanos. Caso Y c. FRANCE. 2023. Disponível em: https://hudoc.echr.coe.int/eng#%7B%22itemid%22:%5B%22001-222780%22%5D%7D . Acesso em 31 de outubro de 2023.

IBDFAM. Instituto Brasileito de Direito de Família. Provimento do CNJ sobre registro de crianças intersexo com “sexo ignorado” já vale em todo o país. 2021. Disponível em: https://ibdfam.org.br/noticias/8905/. Acesso em 31 de outubro de 2023.

OEA. Organização dos Estados Americanos. A CIDH chama os Estados a garantir o direito à verdade, justiça e reparação das pessoas intersexo. 2021. No. 283/21. Disponível em: https://www.oas.org/pt/cidh/jsForm/?File=/pt/cidh/prensa/notas/2021/283.asp. Acesso em 01 de novembro de 2023.

OEA. Organização dos Estados Americanos.A CIDH faz um chamado para garantir os direitos das pessoas intersexo idosas. 2021. No. 250/23. Disponível em: https://www.oas.org/pt/cidh/jsForm/?File=/pt/cidh/prensa/notas/2023/250.asp. Acesso em 01 de novembro de 2023.

OEA. Organização dos Estados Americanos. Opinião Consultiva n° 24/2017. Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/docs/opiniones/seriea_24_esp.pdf. Acesso em 21 de novembro de 2023.