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As Ameaças à Liberdade de Expressão e as Contribuições da Corte Interamericana no Caso URRUTIA LAUBREAUX vs. CHILE

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As Ameaças à Liberdade de Expressão e as Contribuições da Corte Interamericana no Caso URRUTIA LAUBREAUX vs. CHILE

Caso Urrutia Laubreaux Vs. Chile Fonte: https://www.flickr.com/photos/corteidh/51606700417/in/album-72157720052773127/

Para entender qual proteção à liberdade de expressão é fornecida pelos sistemas internacionais de direitos humanos, notadamente, as cortes europeia e interamericana, é necessário fazer um estudo minucioso de suas decisões[1]. As recentes decisões de 2019 e 2020 proferidas pela Corte Interamericana em matéria de liberdade de expressão reforçam a importância do desenvolvimento da jurisprudência da Corte no sentido de fortalecer ainda mais a proteção da liberdade de expressão nos estados americanos e vão contribuindo para o delineamento dos limites da liberdade de expressão e de outros direitos para a sua garantia no âmbito das Américas.

Destacamos dois casos recentes sobre liberdade de expressão no âmbito da Corte Interamericana: Álvarez Ramos vs. Venezuela (2019) e Urrutia Laubreaux vs. Chile (2020).

No primeiro caso, a Corte responsabilizou a Venezuela pela violação do direito à liberdade de expressão, dentre outros, do Sr. Tulio Álvarez Ramos[2]. Neste caso, a Corte Interamericana expressamente analisa os limites da liberdade de expressão em relação ao direito à honra, bem como a convencionalidade da aplicação de medidas penais para proteger a honra de funcionário público, quando o assunto for de interesse público, matéria há muito debatida – e bem resolvida – no âmbito da Corte Europeia[3].

Para fins deste artigo, trataremos do caso Urrutia Laubreaux vs. Chile julgado, em 2020, pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. Neste caso, o juiz Daniel Urrutia Laubreaux sofreu um processo disciplinar que resultou em uma sanção de censura, reduzida posteriormente a uma reprimenda, em razão de um trabalho acadêmico em que criticava as ações do Corte Suprema de Justiça chilena durante o regime militar.

Um ponto de destaque no trabalho acadêmico dizia respeito à proposta do autor para que o Poder Judiciário chileno reconhecesse publicamente sua responsabilidade e estabelecesse, em razão dela, “medidas de reparação” pelas violações de direitos humanos ocorridas durante o regime militar (§ 58). O juiz Laubreaux, então, fora questionado pelo envio do seu trabalho à Corte Suprema chilena e, ainda que a razão fora apenas demonstrar a “conclusão do curso, a alta qualificação obtida e a entrega do produto final do estudo comprometido”, recebera medida disciplinar de “censura por escrito” (§§ 61-62). Laubreaux se insurgiu contra a medida, alegando que o intuito do trabalho não fora agredir seus superiores hierárquicos, mas, apenas, tecer críticas sobre “a atuação do Supremo Tribunal Federal como uma instituição em um determinado momento histórico” (§ 63). A censura foi revertida em “reprimenta privada” registrada no currículo do juiz.

A Corte destacou a importância de observar-se as duas dimensões da liberdade de expressão: a expressão do pensamento em qualquer meio e o direito de receber informações (§§ 75-80), que devem ser protegidos simultaneamente. Além disso, a Corte IDH ressaltou que a liberdade de expressão não é um direito absoluto e que seus excessos podem ser punidos posteriormente, não cabendo, no entanto, censura prévia, direta ou indireta, e sendo que as medidas restritivas da liberdade de expressão devem ser aplicadas de modo excepcional e somente quando estritamente necessárias (§ 81).

Todos, inclusive juízes, têm garantidos a liberdade de expressão. Todavia, no que diz respeito especificamente aos juízes, estes devem agir “em todos os momentos de forma a preservar a dignidade de suas funções jurisdicionais e a imparcialidade e independência do judiciário”, constituindo um objetivo legítimo para limitação de certos direitos dos juízes. Podem os estados estabelecer restrições nesses casos, mas a análise da compatibilidade destas com relação à Convenção Americana será feita caso a caso, de modo que, para a Corte, “expressões feitas em um contexto acadêmico podem ser mais permissivas do que aquelas feitas para a mídia” (§§ 82-83).

Isso quer dizer que não é “qualquer expressão de um juiz” que pode ser restringida, embora “pessoas que exerçam funções jurisdicionais possam estar sujeitas a restrições maiores”. No caso em tela, as restrições de “expressões feitas em trabalho acadêmico sobre um tema geral” não encontram guarida na Convenção Americana (§ 84).

A Corte asseverou que embora as sanções aplicadas a Laubreaux tenham sido reconhecidas e retiradas pela Corte Suprema Chilena -, tendo o estado, portanto, realizado um controle adequado e oportuno da convencionalidade com a anulação da reprimenda e com a sua exclusão do currículo do juiz (§94) -, a sanção foi mantida por mais de 13 anos, fato que “afetou razoavelmente a carreira judicial” da vítima, notadamente, no que diz respeito a promoções e nomeações a determinados cargos (§ 95), de modo que o Estado não reparou este dano, considerando a violação do artigo 13 da Convenção Americana que trata da liberdade de expressão.

Em seu voto concorrente, o Juiz Raúl Zaffaroni ressalta o caráter societário que os juízes pareciam querer conceder ao Poder Judiciário. Nesse contexto, chama a atenção para o fato de que entenderam que um “membro do Poder Judiciário perde o direito do cidadão de criticar o exercício dos poderes do estado e do poder que ele integra, mesmo em caso de crimes gravíssimos contra a humanidade”, em nome da proteção de “uma suposta honra, dignidade ou prestígio da entidade a que pertence”.

Ademais, ressalta que é impossível “garantir a imparcialidade judicial […] tentando integrar como juízes pessoas que carecem de ideologias, valores e cosmovisões” ou “pessoas que abrem mão de seus valores, ideias e cosmovisões pessoais, assumindo as de uma liderança orgânica, em uma atitude de submissão, subordinação e ocultação, indignas não só de juiz, mas de qualquer cidadão” (§ 9). Para o juiz, a “imparcialidade dos juízes, só é alcançada garantindo também a independência interna dos magistrados” (§ 12) e uma lei que permite a aplicação da referida sanção, “proíbe inclusive o juiz de defender publicamente sua própria conduta funcional sem autorização da chefia” (§ 17).

Este caso é interessante, na medida em que nos faz refletir a respeito das críticas feitas aos órgãos dos estados, inclusive o Poder Judiciário e seus membros. Com base na jurisprudência das cortes de direitos humanos, o agente público está mais sujeito a críticas, especialmente quando se trata de temas de interesse público. Óbvio que até a liberdade de expressão, como vimos, está sujeita a limitações, mas até quando ela está sujeita a limites, como, por exemplo, as restrições inerentes às funções jurisdicionais, estas não se aplicariam ao âmbito acadêmico, especialmente quando da pesquisa emergem críticas ao papel de um órgão do estado.

As constantes ameaças à liberdade de expressão no mundo e também no Brasil, inclusive versando sobre novas perspectivas em que esse tema se revela, exigem das sociedades um debate constante e uma árdua defesa da democracia e da liberdade contra estados ou instituições com viés autoritário, daí o importante papel que deve ser constantemente realizado pelas cortes internacionais de direitos humanos para garantir a liberdade de expressão direta e indiretamente, proteger os discursos e seus interlocutores e estabelecer standards claros de proteção e de limites do exercício da liberdade de expressão.

Em um ano em que a liberdade de expressão ficou sob os holofotes no mundo também no prêmio Nobel da paz[4], em tempos em que acadêmicos estão tendo suas críticas contra o governo e instituições questionadas e investigadas[5], cabe a todos nós a reflexão constante sobre os princípios democráticos, sobre a liberdade e sobre qual é o nosso papel nesse contexto. Devemos nos calar ou abrir, além dos olhos, a boca?

 


 

[1] BUCCI, Daniela. Direito Eleitoral e Liberdade de Expressão: Limites Materiais. 1a. ed. São Paulo: Almedina Brasil Ltda, 2018. 442p

[2] Ler interessante artigo sobre o caso: TORRES, Paula Ritzmann. O Caso Álvarez Ramos vs. Venezuela: limites à tutela penal da honra e da liberdade de expressão e crítica. In: Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM). ANO 27 – Nº 327 – FEVEREIRO/2020, p. 2249-2252.

[3] Conferir inúmeros casos analisados a respeito do tema. BUCCI, Daniela. Direito Eleitoral e Liberdade de Expressão: Limites Materiais. 1a. ed. São Paulo: Almedina Brasil Ltda, 2018. 442p.

[4] O Prêmio Nobel da Paz foi atribuído aos jornalistas Maria Ressa e Dmitry Muratov em reconhecimento da luta em defesa da liberdade de expressão nas Filipinas e na Rússia, reforçando o papel da liberdade de expressão e de imprensa no processo de desenvolvimento das sociedades e do indivíduo.

[5] Para exemplicar, o caso do professor de Direito Constitucional da Universidade do Estado de São Paulo (USP) Conrado Hübner.