A Opinião Consultiva da Corte Interamericana de Direitos Humanos Nº 26/2020 e o Dever de os Estados Protegerem os Direitos Humanos: O Último a Sair Apaga a Luz?

Corte Interamericana de Direitos Humanos. Fonte: https://www.corteidh.or.cr/historia.cfm?lang=es

O Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH) é um sistema regional de proteção de direitos que existe ao lado do Sistema Europeu e o Sistema Africano e engloba os trinta e cinco países membros da Organização dos Estados Americanos (OEA). A Carta da OEA, a Declaração Americana de Direitos Humanos de 1948 (DADH) e a Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH) ou Pacto de San Jose, – como é conhecida –, e o seu protocolo adicional sobre direitos econômicos, sociais e culturais (Protocolo de San Salvador) reforçam e declaram direitos, criam mecanismos de monitoramento, controle e implementação.

A CADH cria a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CorteIDH)[1] estabelecendo duas funções principais: uma função conteciosa e uma função consultiva. A função contenciosa da Corte, via de regra, avalia os casos encaminhados pela Comissão Interamericana (CIDH)[2].

Conforme o artigo 64 da CADH, na função consultiva, qualquer Estado membro da OEA, tendo reconhecido ou não a jurisdição obrigatória, e a Comissão Interamericana (CIDH) podem solicitar um parecer da CorteIDH. O parecer fornecido pela CorteIDH poderá versar sobre a convencionalidade de leis internas ou a interpretação das normas de direitos humanos[3].

Ao longo da história da Corte, vinte e seis opiniões consultivas foram emitidas por ela, tendo a CorteIDH contribuído com diversos temas importantes, apesar de não possuírem força vinculante[4]. Destaca-se, por exemplo, a OC 5/85 que tratou sobre a associação obrigatória de jornalistas ao órgão de classe, interpretando o direito à liberdade de expressão – nas suas dimensões: individual e social – e de informação previstos na CADH com reflexos no debate sobre a desobrigação do diploma de jornalista no Brasil.

A mais recente Opinião Consultiva foi emitida pela CorteIDH em novembro de 2020, em razão da solicitação por parte da Colômbia. Na Opinião Consultiva 26, a CorteIDH debateu um tema[5] extremamente relevante: como fica a proteção dos direitos humanos, se um Estado parte denunciar a CADH e a Carta da OEA? A importância desta opinião se destaca com a possível saída de países membros da OEA do SIDH, a exemplo da Venezuela que em 2012 denunciou a Convenção Americana de Direitos Humanos e manifestou expressamente e formalmente sua intenção de sair da OEA.

Nesta OC 26/20, a Corte analisa as obrigações internacionais no que se refere aos direitos humanos do Estado que denunciar a CADH, esclarecendo, basicamente, que no período entre a solicitação e a efetivação da denúncia, as obrigações internacionais do Estado decorrentes da CADH permanecem e que os efeitos da denúncia efetiva não são retroativos. As obrigações decorrentes da ratificação de outros tratados regionais continuam válidas e, dessa forma, também válidos os “critérios internos derivados da norma convencional interpretados como um parâmetro preventivo de violações de direitos humanos” (§115), permanecendo as obrigações de proteção contidas na Carta da OEA e na DADH sob a avaliação da CIDH. Já no caso da denúncia feita pelo Estado da Carta da OEA, a Corte dispôs sobre a irretroatividade dos efeitos da denúncia efetiva, sobre a obrigação de cumprir as decisões emitidas pelos órgãos de proteção de direitos humanos do SIDH restando mantidas até o cumprimento integral, e sobre a permanência das obrigações oriundas de outros tratados interamericanos de direitos humanos ratificados.

A CorteIDH, no entanto, enfatiza que, ainda que o Estado tenha denunciado a CADH e a Carta da OEA, permanecerá o dever de respeitar o “núcleo essencial dos direitos humanos representados nas normas consuetudinárias, aquelas derivadas de princípios gerais do direito internacional e as pertencentes ao jus cogens, como fontes autônomas de direito internacional geral que protegem universalmente a dignidade humana” (§155), existindo o dever de cumprir também as obrigações decorrentes da Carta das Nações Unidas (ONU) (§161). A CorteIDH destaca, portanto, a necessidade de os Estados americanos continuarem protegendo os direitos humanos, independentemente de serem parte da Convenção Americana ou da Carta da OEA.

Outro ponto relevante tratado no parecer foi a ideia de “garantia coletiva”, baseada na “cooperação, solidariedade e boa vizinhança” (§163) entre os países da região e na qual todos os Estados membros devem garantir a eficácia da Convenção Americana, Carta da OEA e a Declaração Americana, como uma obrigação erga omnes. Tal garantia implica um dever a todos os Estados de proteger os direitos e liberdades aos quais se comprometeram internacionalmente (§ 173).

A CorteIDH deixou evidente na OC 26/20 que todos os Estados têm obrigações internacionais ao fazerem parte do SIDH. Ao fazer uma convocação a todos Estados sobre o dever de cada um e de todos para garantir a eficácia dos mecanismos interamericanos de proteção, a Corte ressalta a necessidade de cooperação entre os Estados para o fortalecimento dos referidos mecanismos e para a promoção e proteção de direitos e expressamente afirma que a luta em prol dos direitos humanos, depende de um esforço em conjunto, de um construído. Além disso, ainda que o Estado denuncie a Convenção e a Carta da OEA continuará sendo responsável não apenas até a efetivação da denúncia, como também deverá cumprir as regras consuetudinárias, os princípios gerais do direito e as normas cogentes de direito internacional que garantam a proteção de direitos dos indivíduos e sua dignidade. Para a Corte, nos parece, que o Estado não pode simplesmente sair e apagar a luz.

 


 

[1] Ler mais a respeito da jurisdição da Corte Interamericana e sobre o seu funcionamento, respectivamente MENEZES, Wagner. Tribunais internacionais: jurisdição e competência. São Paulo: Saraiva, 2013; e CARVALHO RAMOS, André. Processo Internacional de Direitos Humanos: análise dos sistemas de apuração de violações dos direitos humanos e a implementação das decisões no Brasil. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2015.

[2] Além da CIDH, a CADH prevê a possibilidade de os Estados membros da convenção apresentarem suas demandas diretamente perante a Corte, nos termos do art. 61. Estabelecerá a Corte as medidas de reparação, nos termos do artigo 63.

[3] Conforme André de Carvalho Ramos, “a jurisdição consultiva é considerada missão fundamental”, pois interpretam as normas “fixando o seu alcance e conteúdo, mesmo na ausência de casos contenciosos.” CARVALHO RAMOS, 2015, p. 265.

[4] Ensina o autor que apesar disso “é certo que os mesmos declaram o Direito Internacional e com isso, possibilitam maior certeza jurídica aos sujeitos de Direito Internacional.” CARVALHO RAMOS, 2015, p. 265.

[5] Sobre este e outros pontos importantes analisados pela Corte e também sobre o papel da Corte, sugerimos a leitura das análises críticas e detalhadas realizadas por Lucas Carlos Lira e Lucas Mendes Felippe a respeito da opinião consultiva 26/2020. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-opiniao-consultiva-26-20-da-corte-interamericana-de-direitos-humanos-28122020 e https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/o-que-esta-em-jogo-com-a-opiniao-consultiva-26-da-cidh-03072020.