O Caso Barbosa de Souza e outros Vs. Brasil: decisão que chama atenção para a violência estrutural e continuada de gênero

Corte Interamericana de Direitos Humanos. Fonte: https://www.corteidh.or.cr/historia.cfm?lang=es

A jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos tem reforçado um compromisso que há no sistema interamericano de direitos humanos com o princípio da proteção integral. Assim, mais do que condenar um Estado, importa dissolver as razões estruturais que provocam as violações continuadas, enfatizando a sua obrigação internacional em reparar e reprimir as violências, como ato de responsabilidade internacional. 

A exemplo disso, o Caso Barbosa de Souza e outros vs. Brasil, de 07 de setembro de 2021, analisa o feminicídio cometido em 1998, por um parlamentar. O deputado estadual no Estado da Paraíba, Aércio Pereira de Lima assassinou Márcia Barbosa de Souza.

A petição inicial do caso foi apresentada à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) pelo Centro pela Justiça e pelo Direito Internacional (CEJIL) e pelo Movimento Nacional dos Direitos Humanos (MNDH)/Regional Nordeste, em março de 2000.A denúncia do Ministério Público perante a justiça brasileira o havia imputado como autor dos delitos de “homicídio duplamente qualificado” e ocultação de cadáver (CIDH, 2021b).

O caso chama peculiar atenção para as interseccionalidades que comumente giram em torno dos casos de violência: pobreza, cor da pele e, no caso de Márcia, jovem estudante vinda do interior da Paraíba. A Corte destaca o perfil das mulheres mortas no brasil: jovem, negra e pobre, embora a Corte manifesta sua preocupação com a dificuldade de se obter os dados a respeito da violência contra a mulher no país.

 Outro aspecto importante ressaltado pela Corte IDH, diz respeito às falhas na investigação e condenação do responsável, fato que é comum no Brasil, mas que aqui foram analisados também considerando-se a falta da perspectiva de gênero.

A Corte assevera que há “fortes indícios” de tratar-se de um crime de violência de gênero e que, nesse caso, “a falta de investigação por parte das autoridades sobre possíveis motivos discriminatórios de um ato de violência contra a mulher pode constituir em si mesmo uma forma de discriminação baseada no gênero” (§§124-125). Essa ineficácia gera a impunidade e consequentemente a “repetição” das ações violentas e sinaliza que essa violência “pode ser tolerada e aceita”, o que gera insegurança e desconfiança no sistema de administração de justiça, constituindo “discriminação à mulher no acesso à justiça” (§ 125), questão analisada em diversos outros casos da CorteIDH [1].

A Corte ressalta que é difícil provar que um crime foi motivado por razões de gênero e por essa razão, é necessária uma investigação efetiva, especialmente se há suspeitas neste sentido, o que não ocorreu no caso brasileiro (§130-133).

A Corteidh concluiu, portanto, que o Estado brasileiro violou os artigos 5.1 (direito à integridade pessoal), 8.1 (garantias judiciais), 24 (princípio de igualdade e não discriminação) e 25.1 (proteção judicial) da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, com relação ao artigo 4 (direito à vida) e com as obrigações estabelecidas nos artigos 1.1 e 2 do mesmo instrumento, bem como pela violação do artigo 7 da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará).

É possível verificar ainda da leitura da sentença que a Corte Interamericana, assim como se nota na postura adotada no âmbito do sistema interamericano, a busca pela não repetição de novos casos [2], tal como ocorrera no âmbito da CIDH no caso Maria da Penha sobre violência doméstica, em que a evidente omissão brasileira no trato da questão, bem como no silêncio do Estado perante à própria CIDH ensejou tornar público e exigir um conjunto de recomendações ao Brasil [3,4], bem como, pressionou, em conjunto com a mobilização dos movimentos feministas, a criação da  Lei nº 11.340/2006, que estabeleceu o dever de capacitação de todos os envolvidos em um caso de violência de gênero, com o objetivo de “mudar a cultura” que revitimiza e julga as próprias vítimas da violência.  

Neste diapasão, a decisão da Corte no caso Márcia Barbosa destaca a violência contra as mulheres no Brasil, como um problema estrutural e generalizado” (CIDH, 2021b, p.16) na época dos acontecimentos –  assim como o é hoje. A Corte pontuou diversos aspectos para justificar sua afirmação: i) ausência de estatísticas nacionais, especialmente antes dos anos 2000, sobre o número de mortes violentas de mulheres em razão de gênero; ii) óbices à formulação e à implementação de políticas públicas eficazes; iii) compilação mais recentes de dados sobre feminicídio e, por fim, v) reconhecida tolerância à violência contra a mulher e sua  comum ligação com altos índices de feminicídio (CIDH, 2021b, p.16, §§ 47-57).  

A CorteIDH, portanto, asseverou que: i) as investigações não observaram o padrão mínimo de diligência; estavam repletas de estereótipos de gênero e revitimizantes, sem a necessária perspectiva de gênero (§172), considerando a necessidade de reabertura das investigações (§173) e determinou, dentre outros pontos, a reparação pelos danos causados com o objetivo que casos semelhantes não venham a ocorrer, inclusive o pagamento de despesas médicas, psicológicas ou psiquiátricas pelos sofrimentos da mãe de Márcia Barbosa de Souza (§182).

A Corte destacou a falta de dados oficiais sobre a violência contra a mulher, especialmente em situações interseccionais, tais como as negras e pobres que “continuam imersas em um contexto de discriminação e violência estrutural” (§185), razão pela qual a Corte considerou a necessidade de criar um sistema nacional e centralizado de dados sobre as formas de violência contra a mulher, para “dimensionar a real magnitude deste fenômeno” e criar políticas públicas direcionadas para a prevenção e a erradicação da discriminação e violência contra as mulheres com diversos indicadores, tais como, idade, classe social, perfil da vítima, do agressor etc (§193).

A decisão é considerada um marco na luta contra a violência contra a mulher, não apenas expõe a completa falência no sistema investigativo brasileiro, mas escancara como o modelo está permeado de estereótipos de gênero que determinam – ou não! -, os rumos da investigação, com a revitimização da violência, por exemplo, estendida também aos familiares da vítima, com a perpetuação da violência, especialmente em razão da impunidade e pela tolerância e aceitação social que são desencadeadas pela falta de perspectiva de gênero que se dá, inclusive, na investigação. 

A decisão também chama a atenção para a falta de dados necessários para a criação e, consequentemente, para o direcionamento de políticas públicas especializadas, vez que deixa-se de observar uma série de variantes que poderiam ser determinantes no estudo da prevenção e erradicação da discriminação e violência contra a mulher e que poderiam, portanto, salvar um número incalculável de mulheres vítimas da violência diária no Brasil. A Corte joga luz na necessidade de se debater determinados institutos e analisá-los na perspectiva dos direitos humanos, tal como ocorre com a imunidade parlamentar, por exemplo.

Assim, apesar de alguns avanços positivos notados e referenciados na decisão, ainda estamos muito longe de atingir resultados práticos, pelo menos, enquanto os estados não levarem à sério a necessidade de uma mudança radical de cultura, dentre eles o Brasil.  


[1] BUCCI, Daniela; REIS, G. T. S. . FEMINICÍDIO: A CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS E A PERSPECTIVA DE GÊNERO PARA O ALCANCE DE JUSTIÇA SOCIAL. In: MENEZES, WAGNER (COORD); NUNES FILHO, ALDO; OLIVEIRA, PAULO HENRIQUE REIS DE (ORG). (Org.). Tribunais internacionais e a garantia dos direitos sociais. 1ed.CURITIBA: ABDI EDITORA, 2021, v. , p. 165-184.

[2] Caso Barbosa de Souza e outros Vs. Brasil . Disponível em https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_435_por.pdf. Acesso em 20 jan 2022.

[3] Portal Geledés. Brasil só criou Lei Maria da Penha após sofrer constrangimento internacional. Disponível em https://www.geledes.org.br/brasil-so-criou-lei-maria-da-penha-apos-sofrer-constrangimentointernacional/?gclid=CjwKCAjwrqqSBhBbEiwAlQeqGibInqFouLM4NAqR6HDjnQznh9zYV8nHtxmrkIf3Au93PmVmjjia5BoCBjUQAvD_BwE. Acesso em 02 abril 2022.

[4] A CIDH determinou o efetivo e célere o processamento penal contra o ex-marido de Maria da Penha; “investigação séria, imparcial e exaustiva” com relação aos atrasos, com a adoção de medidas cabíveis; reparação de natureza civil simbólica e material pelas violações em razão de atrasos, impunidade de mais de15 anos; “processo de reforma que evite a tolerância estatal e o tratamento discriminatório com respeito à violência doméstica contra mulheres no Brasil”, de modo que o estado brasileiro crie “medidas de capacitação e sensibilização dos funcionários judiciais e policiais”, simplificação de procedimentos judiciais penais, formas alternativas às judiciais, rápidas e efetivas de solução de conflitos intrafamiliares, ampliar o número de delegacias da mulher e estabelecer em planos pedagógicos o respeito à mulher e a seus direitos reconhecidos (§61). Disponível em: https://www.cidh.oas.org/annualrep/2000port/12051.htm. Acesso em 16 abr. 2022.