Ad Aeternitatem: Opinião Consultiva 28/21 da Corte Interamericana e a Figura da Reeleição Indefinida

Jueces de la Corte IDH Caso Comunidades Indígenas Miembros de la Asociación Lhaka Honhat Vs. Argentina Fonte: https://www.flickr.com/photos/corteidh/47481275721/in/album-72157679583471178/

A Corte Interamericana[1] emitiu um parecer consultivo[2] solicitado pelo Estado da Colômbia sobre a “figura da reeleição indefinida no Sistema Interamericano de Direitos Humanos” (SIDH) publicado agora em agosto. A consulta se refere a três questões principais: i) seria a reeleição um direito humano protegido pela Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH)?; a) os regulamentos que limitam ou proibem a reeleição presidencial, em razão dos limites aos direitos políticos do governante que pretende se reeleger ou em razão da restrição dos direitos políticos dos eleitores violariam o artigo 23 da CADH? e b) ou seria o contrário: essas resrições estariam em linha com os “princípio da legalidade, necessidade e proporcionalidade, de acordo com com a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre o assunto?” ii) “A reeleição presidencial indefinida é compatível com a existência de democracia representativa no sistema interamericano de proteção dos direitos humanos?” (§ 37).

A Corte considerou como reeleição do mandato presidencial indefinido como “a permanência no cargo de quem exerce o cargo de Presidente da República por mais de dois períodos consecutivos de duração razoável”, sem a possibilidade de alteração da duração ao longo do mandato (§ 38)

A Corte trata da relação entre democracia, Estado de Direito e Direitos humanos e reforça que os governantes em uma democracia devem ser eleitos por maioria, mas que a proteção das minorias tem que ser um dos seus propósitos (§ 45). Ressalta, ainda, a Corte que o “exercício efetivo da democracia” é uma “obrigação jurídica internacional” (§ 55) e que a “democracia e o pluralismo político” estão garantidos ao se proteger os direitos políticos (§ 57).

A Corte apontou os critérios essenciais de uma democracia representativa, sob pena de desconfigurá-la: i) reconhecimento da proteção dos direitos humanos como um “limite intransponível” para garantir-lhes eficácia normativa. Assim, um direito humano não pode “estar condicionado aos critérios da maioria e a sua compatibilidade com os objetivos de interesse geral”, pois haveria um esvaziamento da eficácia da Convenção e dos tratados internacionais de direitos humanos (§ 70); ii) o acesso ao poder e seu exercício em um Estado de Direito precisa estar definido por leis pré-existentes e conhecidas de todos os cidadãos. Ressalta a Corte que “o processo democrático requer certas regras que limitam o poder da maioria expressa nas urnas para proteger as minorias, portanto as regras de acesso ao exercício do poder não podem ser modificadas sem qualquer limite por quem está temporariamente exercício do poder político”, de modo que “a identificação da soberania popular com a maioria expressa nas urnas é insuficiente” (§ 71); iii) obrigatoriedade de eleições periódicas, por força do artigo 23 da Convenção Americana e o artigo XX da Declaração Americana que tem por objetivo a prevenção contra a perpetuação no poder (§§ 72-75); iv) periodicidade das eleições como meio de garantia do pluralismo político, possibilitando a alternância do poder por parte de diferentes partidos políticos e posições ideológicas, de modo que haja “uma possibilidade real e efetiva de que várias forças políticas e seus candidatos possam ganhar o apoio popular e substituir o partido no poder” (§§ 76-78); v) as mudanças sobre “regras relativas ao acesso ao poder de forma a beneficiar o detentor do poder e colocar as minorias políticas em situação de desvantagem não são suscetíveis de serem decididas pelas maiorias ou seus representantes”, de modo que “governos autoritários são impedidos de se perpetuar no poder, mudando as regras do jogo democrático e erodindo a proteção dos direitos humanos” (§ 79); vi) a “concentração do poder implica tirania e opressão”, de modo que a “separação e independência dos poderes públicos supõe a existência de um sistema de controle e fiscalização, como regulador constante do equilíbrio entre os poderes públicos” (§§ 80-82).

Assim, embora o SIDH não determine um “sistema político ou uma modalidade específica sobre as limitações do exercício de direitos políticos”, as normas adotadas pelos Estados precisam estar em linha com a CADH e com os princípios da democracia representativa (§ 86).

Com base nesses fundamentos, a Corte IDH respondeu as questões entendendo que a reeleição por tempo indeterminado não constitui um direito humano autônomo e tampouco há “reconhecimento” expresso neste sentido nos diversos tratados internacionais (§§ 91-94; § 102).

Ademais, apesar de a Corte IDH reconhecer que a proibição de reeleição presidencial por tempo indeterminado é uma restrição ao direito de ser eleger, isto é, uma limitação ao direito político (§ 104), asseverou que a restrição é possível, desde que não haja uma interferência “abusiva ou arbitrária” por parte do Estado, que haja previsão em lei, tenha uma finalidade legítima a ser buscada pelo Estado e que atenda os critérios de adequação, necessidade e proporcionalidade (§ 114).

Para a Corte, no caso, a finalidade legítima da referida restrição é assegurar a democracia representativa, evitando que alguém se perpetue no poder; assegurar o “pluralismo político, alternância no poder”, e “proteger o sistema de freios e contrapesos que garantem a separação de poderes” (§ 121). Na análise da CorteIDH, não há “medida igualmente ideal” para atingir tais propósitos. Além disso, a CorteIDH avaliou o impacto sobre os direitos políticos daquele que pretende se reeleger, considerando o “direito dos demais cidadãos de votar e participar na gestão dos assuntos públicos por meio de representantes escolhidos livremente” (§ 123) e ponderou que “o sacrifício implicado pela restrição a sua capacidade de participar nas eleições é menor e justificada para garantir que uma pessoa não se perpetue no poder e, com isso, evite a degradação do democracia representativa” (§ 124).

A Corte ainda observou que o direito ao voto não garante uma “escolha ilimitada de candidatos para a Presidência”, mas que o indivíduo possa escolher livremente entre os “candidatos inscritos” e que “os direitos de cada pessoa são limitados pelos direitos dos outros, pela segurança de todos e pelas justas exigências do bem comum”, de modo que a limitação analisada na presente opinião consultiva é compatível com a CADH (§ 125).

Por fim, a Corte relembra que os Estados se comprometeram a “garantir o efetivo exercício da democracia” o que compreende não apenas a realização de eleições regulares, como também criar “todas as  medidas necessárias para garantir a separação de poderes, o Estado de direito, o pluralismo político, a alternância no poder e impedir que a mesma pessoa se perpetue no poder” (§ 128).

A Corte IDH chama a atenção para os efeitos nocivos que a permanência no poder indefinidamente por um governante tem sobre “regime plural de partidos e organizações políticas, típicas de uma democracia representativa, porque favorece a hegemonia no poder de certos setores ou ideologias” (§ 133), pondo em risco os “direitos políticos de grupos minoritários”, enfraquecimento de partidos políticos da oposição, já que prejudica a “expectativa clara sobre sua capacidade de acessar o exercício do poder” (§ 134). A clareza sobre o período para o exercício do mandato do presidente é importante no jogo democrático. Além disso, a exposição com a mídia e o eleitor, o domínio de recursos públicos,  a percepção popular de que a continuidade no cargo é essencial para o “funcionamento do Estado” mina o direito de qualquer cidadão “participar na gestão dos assuntos públicos, de ser eleito e de acesso a funções públicas em condições gerais de igualdade”, criando vantagens e favorecendo àquele que pretende a reeleição (§§ 141-144). A reeleição indefinida viola a CADH e a DADH e, ainda, contraria os princípios da democracia representativa.

No SIDH, quatro países se encaixariam na possibilidade de reeleição indefinida para o cargo de presidente: Bolívia, Honduras, Nicarágua e Venezuela. No entanto, a contribuição desta opinião consultiva vai além do debate da reeleição indefinida. A Corte IDH reforça a importância da existência de regras claras e prévias, o papel da oposição[3] e a proteção da participação dos grupos minoritários no processo democrático. A liberdade de expressão política formal[4] consubstanciada, portanto, no direito de participação a que todo o indivíduo tem é expressamente protegida na OC 28/21.

Tais pontos são importantes para a reflexão, em geral, do processo eleitoral no Brasil: partidos políticos há décadas no poder, uso de recursos públicos que favorecem reeleições[5], problemas de representatividade, existência de leis que geram dúvidas a respeito de sua interpretação. Quanto a este ponto, inclusive, a Missão de Observação Eleitoral da Organização dos Estados Americanos (OEA) em seu relatório sobre as eleições presidenciais do Brasil de 2018[6], confirmando tese anterior de que o Brasil viola a liberdade de expressão política[7] em vários aspectos, reforçou a necessidade de reformulação de leis eleitorais, a fim de deixá-las mais claras e precisas e compatíveis com as normas interamericanas, fato que requer um amplo debate social e reformas urgentes.

[1] Sobre jurisdição e competência da Corte IDH, vide MENEZES, Wagner. Tribunais internacionais: jurisdição e competência. São Paulo: Saraiva, 2013.

[2] Sobre o funcionamento do sistema consultivo da Corte IDH, vide CARVALHO RAMOS, André. Processo Internacional de Direitos Humanos: análise dos sistemas de apuração de violações dos direitos humanos e a implementação das decisões no Brasil. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2015.

[3] SALEM CAGGIANO, Mônica Herman. Oposição na Política. São Paulo: Angelotti, 1995

[4] BUCCI, Daniela. Direito Eleitoral e Liberdade de Expressão: Limites Materiais. 1ª.ed. São Paulo: Editora Almedina, 2018

[5] Conforme estudo, na América Latina somente em três ocasiões um chefe de estado candidato à reeleição foi derrotado. PRZEWORSKI, Adam. Self-Government in Our Times: Democracy and Its Limits. New York: Cambridge University Press, 2009, p. 103-104

[6] Disponível em: http://scm.oas.org/pdfs/2019/CP40397PRELATORIOFINALMOEBRASIL2018. pdf. Acesso em 05 set. 2021.

[7] BUCCI, Daniela. Direito Eleitoral e Liberdade de Expressão: Limites Materiais. 1ª.ed. São Paulo: Editora Almedina, 2018