O Caso Sales Pimenta vs. Brasil e os conflitos pelo direito à terra no país

Fonte: Flickr CorteIDH

Em 04 de outubro de 2022, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) publicou a sentença do caso “Gabriel Sales Pimenta” que responsabilizou o Brasil  em um notório caso de violação de direitos humanos. Segundo a Corte, o Estado brasileiro era responsável pela violação dos direitos às garantias judiciais e à proteção judicial (artigos 8.1 e 25 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos – CADH) do direito à verdade e do direito à integridade pessoal (artigo 5.1), em relação à obrigação de respeito e garantia dos direitos (artigo 1.1), do advogado e ativista Gabriel Sales Pimenta

Na década de 1980, Pimenta foi um dos primeiros advogados a residir em Marabá, Estado do Pará, e atuava nos movimentos sociais na região de Pau Seco, sendo representante da Comissão Pastoral da Terra (CPT), prestando assessoria jurídica aos trabalhadores rurais. Em 1980, fazendeiros alegaram a aquisição do domínio útil de Pau Seco e começaram a explorar a madeira existente na região, gerando conflitos com trabalhadores rurais. No ano seguinte, esses fazendeiros conseguiram, na justiça estadual, uma liminar de reintegração de posse do território e, com isso, a polícia militar procedeu  ao despejo dos trabalhadores.

O Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Marabá, por intermédio de seu advogado Gabriel Sales Pimenta, impetrou Mandado de Segurança no Tribunal de Justiça do Pará, que concedeu medida liminar que reverteu a expulsão de 150 trabalhadores das terras objeto do litígio. A partir de então, o advogado e os trabalhadores rurais passaram a receber ameaças de morte, informadas à Secretaria de Segurança Pública em Belém, que não adotou medidas para garantir a segurança das vítimas.

Em 18 de julho de 1982, Gabriel Sales Pimenta, ao sair de um bar conhecido como “Bacaba”, em Marabá, na companhia de alguns conhecidos, foi morto com três tiros nas costas, à queima-roupa, por um homem que saiu de um veículo e fugiu logo em seguida. As investigações do caso se iniciaram no dia seguinte, porém uma série de omissões no decorrer das investigações e no processo judicial levaram à impunidade do crime, evidenciando as “graves falências do Estado” (§ 119), que resultaram na prescrição do processo, 24 anos após a morte de Gabriel. Com isso, até o momento, não foram esclarecidas as circunstâncias da sua morte, apesar da identificação de três suspeitos e da existência de duas testemunhas oculares e de outros meios de prova que se encontravam à disposição das autoridades estatais. Segundo a Corte IDH, o Brasil foi incapaz de identificar o autor dos disparos contra o senhor Sales Pimenta e de sancionar todos os responsáveis.

A Corte IDH considerou que as falhas do Estado brasileiro na sua obrigação de investigar, processar e punir os responsáveis pela morte de Gabriel Sales Pimenta, defensor de direitos humanos e advogado do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Marabá, expõe o contexto de “impunidade estrutural” em crimes contra trabalhadores rurais e seus defensores (§ 120). Em sua sentença, o Tribunal Interamericano também ressaltou que a devida diligência da investigação por parte do Estado é reforçada quando se trata de defensores de direitos humanos, pois as consequências dessa violência assumem um efeito amedrontador (chilling effect) quando esses crimes ficam impunes. Nas palavras da Corte IDH:

[…] as ameaças e os atentados à integridade e à vida dos defensores de direitos humanos e a impunidade dos responsáveis por estes fatos são particularmente graves porque têm um efeito não apenas individual, mas também coletivo, na medida em que a sociedade se vê impedida de conhecer a verdade sobre a situação de respeito ou de violação dos direitos das pessoas sob a jurisdição de um determinado Estado (CORTE IDH, 2022, p. 28).

Na conclusão, a Corte IDH ordenou o cumprimento de medidas de reparação que envolvem: a) investigação, identificação, julgamento e, se for o caso, punição dos responsáveis pelo crime; b) criação de grupo de trabalho para identificar as causas e circunstâncias da impunidade estrutural com relação à violência contra as pessoas defensoras de direitos humanos dos trabalhadores rurais, indicando ações para solucioná-las; c) medidas de reabilitação, com atenção à saúde física e mental, dos familiares de Gabriel Sales Pimenta; d) medidas de satisfação que considerem os danos materiais e imateriais causados, com publicação da sentença, ato público de reconhecimento de responsabilidade internacional, atos de preservação da memória (nomeação de duas praças públicas com o nome de Gabriel Sales Pimenta e criação de um espaço público de memória no qual se valorize, proteja e resguarde o ativismo das pessoas defensoras de direitos humanos no Brasil); e) garantias de não repetição, com o fortalecimento do Programa de Proteção de Defensores de Direitos Humanos e um diagnóstico independente, sério e efetivo da situação dos defensores de direitos humanos no contexto dos conflitos sobre terra, além de criar e implementar protocolo nacional de devida diligência para a investigação de crimes contra as pessoas defensores de direitos humanos; destaca-se ainda a criação de um mecanismo que viabilize o cumprimento da sentença da Corte Interamericana nos casos de responsabilidade internacional do Estado pelo descumprimento da obrigação de investigar violações de direitos humanos imparcialmente e diligentemente, com a criação de um mecanismo interno que permita a reabertura de investigações e processos judiciais, inclusive em casos em que houve prescrição, e f) indenizações compensatórias: pagamento de quantias a título de dano material (US$ 100 mil), imaterial (US$ 280 mil), custas e gastos (US$ 32.500).

Dentre as relevantes reflexões que o Caso Sales Pimenta impulsiona, como por exemplo a extrema delonga processual para julgar crimes graves e a reafirmação da impunidade sistêmica e estrutural no país, ressalta-se a histórica luta das pessoas do campo em torno do direito à terra e à propriedade no Brasil, um contexto de violência que revela a complexa desigualdade estrutural da sociedade brasileira. Tal cenário discrimina grupos socialmente vulneráveis no acesso aos direitos humanos em razão de sua posição econômica, conforme já acentuou a Corte IDH no Caso Fazenda Brasil Verde (2016).

Historicamente, o Brasil é um dos países mais desiguais do mundo. De acordo com o último Relatório de Desenvolvimento Humano (RDH), elaborado pela Organização das Nações Unidas (ONU), que analisa a concentração de riquezas, o país ocupa o segundo lugar no ranking de má distribuição de renda (ONU, 2022). Essa desigualdade apresenta múltiplas origens e, dentre as suas causas estruturais, está a concentração de terras que desencadeia o êxodo rural, o uso inadequado de recursos naturais, a degradação do meio ambiente e a “formação de uma poderosa elite associada a um modelo agrícola baseado no latifúndio de monocultivo, voltado à produção de commodities para exportação e não para a produção de alimentos” (OXFAM, 2016, p. 1). A distribuição desequilibrada de propriedade no Brasil, herança do projeto colonial que se perpetua na contemporaneidade, tem gerado conflitos agrários que põem em risco a vida de famílias, dos povos originários e das comunidades tradicionais. Associado ao problema está a dificuldade de avançar a reforma agrária e demais políticas públicas de acesso à terra, diante da atuação da bancada ruralista no Congresso Nacional e do lobby do agronegócio perante o Estado, situação que revela a dinâmica da rede de poder, na tensão entre política e direito, que tem no poder econômico um forte agente de influência nas decisões estatais, criando ainda mais violações de direitos e impedindo o avanço de pautas sociais (CARVALHO; ÁVILA, 2017).

Nesse sentido, em abril de 2023, a CPT publicou os dados de conflitos ocorridos no campo no Brasil durante o ano de 2022, em que foram registradas 1.572 ocorrências de conflitos por terra no país, atingindo 181.304 famílias. Seguindo o cenário revelado no Caso Sales Pimenta, a região Norte concentrou o maior número de ocorrências de conflitos por terra do país (626 casos), seguida da região Nordeste (496), Centro-Oeste (278), Sudeste (94), e região Sul (78). Os estados com os maiores números de ocorrências desse tipo de conflito foram: Bahia (179), Maranhão (178), Pará (175), Amazonas (152) e Mato Grosso (147).

Esse cenário de deliberada ausência de políticas públicas efetivas de garantia à terra e ao desenvolvimento da vida no campo contribui fundamentalmente para a violação de outros direitos humanos. De acordo com a Relatora Especial sobre moradia adequada da ONU (2015), o favorecimento do lucro em detrimento dos direitos humanos através da alocação desigual de terras, bens imóveis, moradia e serviços relacionados nas cidades é uma das causas centrais da condição de pessoa em situação de rua, por exemplo.

Ademais, a ausência do acesso à terra associado ao atual estágio da precarização do trabalho e da agudização da fome no Brasil leva à submissão de cidadãs e cidadãos à escravização contemporânea. Os dados da CPT, em 2022, apontam para o aumento de 29% no número de pessoas resgatadas e 32% no número de casos, em relação ao ano de 2021, com 207 casos de trabalho análogo à escravidão no meio rural, com 2.615 pessoas envolvidas nas denúncias e 2.218 resgatadas, o maior número dos últimos dez anos. Esse dado da escravidão rural representou, em 2022, 88% do total de pessoas libertas no país, sendo os outros 12% de pessoas resgatadas em atividades laborais não rurais (CPT, 2022).

O Caso Sales Pimenta, portanto, tem o potencial de provocar a discussão em torno de problemas estruturais da sociedade brasileira e que reclamam a ação urgente do Estado e de toda a sociedade para a proteção dos defensores de direitos humanos e a melhoria das políticas públicas de acesso à terra. A Corte IDH desempenha, assim, o seu importante papel na concretização dos direitos humanos no continente e na consolidação do ius constitutionale commune latino-americano.

 

REFERÊNCIAS

 

CARVALHO, José Lucas Santos; ÁVILA, Flávia de. A constitucionalização simbólica da Emenda Constitucional Nº 81/2014 e a vida nua do trabalhador escravo no Brasil. Revista da Faculdade de Direito UFPR, Curitiba, PR, Brasil, v. 62, n. 3, p. 267-284, set./dez. 2017. ISSN 2236-7284. Disponível em: <http://revistas.ufpr.br/direito/article/view/54646>. Acesso em: 23 abril 2023.

 

COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. Mais de 2 mil pessoas são resgatadas de condições análogas à escravidão no campo em 2022; o agronegócio segue sendo o principal responsável pela prática criminosa. Disponível em: https://www.cptnacional.org.br/downlods?task=download.send&id=14285&catid=95&m=0. Acesso em: 22 abril 2023.

 

COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. Conflitos por terra no Brasil aumentam 16,7% e atingem 181.304 famílias em 2022. Disponível em: https://www.cptnacional.org.br/downlods?task=download.send&id=14287&catid=95&m=0. Acesso em: 22 abril 2023.

 

CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Sales Pimenta vs. Brasil. Sentença de 30 de junho de 2022 (Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas). Disponível em: Acesso em: 22 abril 2023.

 

CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde vs. Brasil. Sentença de 20 de outubro de 2016 (Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas). Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_318_por.pdf. Acesso em: 22 abril 2023.

 

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Relatório da Relatora Especial sobre moradia adequada como componente do direito a um padrão de vida adequado e sobre o direito a não discriminação neste contexto. Disponível em: https://terradedireitos.org.br/wp-content/uploads/2016/11/Relat%C3%B3rio_Popula%C3%A7%C3%A3o-em-situa%C3%A7%C3%A3o-de-rua.pdf. Acesso em: 22 abril 2023.

 

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Relatório do Desenvolvimento Humano 2021/2022. Tempos incertos, vidas instáveis. Construir o futuro num mundo em transformação. Disponível em: <https://hdr.undp.org/system/files/documents/global-report-document/hdr2021-22overviewptpdf.pdf?_gl=1*1pyi4cr*_ga*ODA3ODE0NTguMTY4MjI5MTI2OQ..*_ga_3W7LPK0WP1*MTY4MjI5MTI2OS4xLjAuMTY4MjI5MTI2OS42MC4wLjA.> Acesso em: 22 abril 2023.

 

OXFAM. Terrenos da desigualdade: Terra, agricultura e desigualdade no Brasil rural. Disponível em: https://www.oxfam.org.br/publicacao/terrenos-da-desigualdade-terra-agricultura-e-desigualdade-no-brasil-rural/. Acesso em: 22 abril 2023.