Caso Olivera Fuentes vs. Peru: a responsabilização internacional das empresas por violação de direitos humanos e a proibição da discriminação por orientação sexual

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A Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) publicou, em 4 de fevereiro de 2023, a sentença do Caso “Olivera Fuentes” que declarou a responsabilidade internacional do Estado do Peru por atos de discriminação praticados em razão de orientação sexual, sendo considerada a primeira sentença por discriminação praticada por uma empresa em relações de consumo no âmbito interamericano (CABRERA; PARADA, 2023). O Estado foi declarado responsável pela violação dos artigos 7.1 (direito à liberdade pessoal), 8.1 (garantias judiciais), 11.2 (vida privada), 24 (igualdade perante a lei) e 25.1 (proteção judicial) da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), em relação à obrigação de respeito e garantia dos direitos (artigo 1.1) do mesmo instrumento.

O caso diz respeito à violação dos direitos do Senhor Crissthian Manuel Olivera Fuentes que, em 11 de agosto de 2004, enquanto tomava café com seu companheiro, foi repreendido por funcionários da cafeteria “Dulces y Salgados” do Supermercado “Santa Isabel de San Miguel” em razão de ter demonstrado publicamente atos de afeto ao seu companheiro. Segundo a vítima, as demonstrações de carinho consistiram em “proximidade física e olhares românticos” e, de acordo com o Supermercado, Olivera Fuentes e seu companheiro trocaram “carícias, abraços e beijos” (parágrafo 47 – tradução dos autores).

Na cafeteria, Olivera Fuentes e seu namorado foram orientados a abster-se de trocarem afetos em respeito aos demais clientes e às crianças que circulavam no local, caso contrário, deveriam se retirar do estabelecimento (parágrafo 48). Em resposta, a vítima afirmou que se tratava de tratamento discriminatório, pois os parceiros heterossexuais podiam demonstrar afeto livremente.

Em 17 de agosto seguinte, Olivera foi a outro centro comercial da mesma empresa em companhia de um casal heterossexual, que também exibiu condutas afetuosas; no entanto, apenas Olivera e seu namorado foram novamente repreendidos.

Diante dos atos discriminatórios, em 1 de outubro de 2004, o Sr. Olivera Fuentes apresentou denúncia contra o supermercado perante a Comissão de Proteção ao Consumidor (CPC), vinculado ao Instituto Nacional de Defesa da Competência e Proteção da Propriedade Intelectual (Indecopi), órgão administrativo de proteção ao consumidor, alegando ter recebido tratamento discriminatório em razão de sua orientação sexual.

Em sua defesa administrativa, o supermercado argumentou que a intervenção aconteceu em “respeito pela moral e pelos bons costumes” e em defesa do interesse superior das crianças que se encontravam no local. Apresentou como prova um informe pericial do psiquiatra R. F. intitulado “Relatório médico-psicológico que trata do significado de limitar a exibição pública de manifestações eróticas entre casais do mesmo sexo e seus efeitos nas crianças quando frequentam circunstancialmente tal situação”, que recomendava à CPC “ter em mente os efeitos negativos que a exposição de menores ao estilo de vida gay teria na infância” (parágrafo 54 – tradução dos autores), além de cartas de respaldo de clientes que rechaçavam as demonstrações de afeto de Olivera e seu companheiro.

Em 31 de agosto de 2005, a CPC declarou que a denúncia era infundada porque não se comprovou o tratamento discriminatório, existindo falhas na produção probatória especialmente diante das versões apresentadas por ambas as partes. Em relação à tutela do interesse superior da infância, a Comissão afirmou que as crianças podem ser negativamente afetadas ao presenciar “comportamento homossexual” (parágrafo 57).

Os recursos seguintes, em âmbito administrativo e judicial, foram rechaçados e a fundamentação utilizada pelo Estado peruano manteve o conteúdo discriminatório e homofóbico para justificar a ação do supermercado. A última decisão desfavorável ocorreu em 11 de abril de 2011, quando a Sala de Direito Constitucional e Social Permanente da Corte Suprema de Justiça,  ao julgar um recurso de cassação, declarou-o improcedente porque não se podia valorar novamente as provas dos autos.

Ao julgar o caso, a Corte IDH considerou  o contexto de violência, estigmatização e discriminação estrutural que sofre a população LGBTIQ+ no Peru e em toda região latinoamericana. Assim, o Tribunal Interamericano teceu considerações a respeito de: 1) direito à igualdade e à não discriminação; 2) empresa e direitos humanos, especialmente o estabelecimento de standards em matéria de igualdade e não discriminação por orientação sexual, identidade de gênero e expressão de gênero aplicados às empresas; e 3) produção de prova.

Em matéria de igualdade e de não discriminação, a Corte IDH recordou que, desde o caso “Atala Riffo e crianças vs. Chile”, de 2012, a orientação sexual e a identidade de gênero são protegidas pela CADH sob a expressão de “qualquer outra condição social” mencionada no artigo 1.1. Por sua vez, a Opinião Consultiva OC nº 24/17, de 24 de novembro de 2017, incluiu também a expressão de gênero como categoria igualmente protegida.

Nesse sentido, a jurisprudência interamericana tem reconhecido que as formas de discriminação são múltiplas, tanto no âmbito público quanto privado, manifestadas enquanto “falha em punir aqueles que desafiam as normas de gênero” (parágrafo 89), e que têm o propósito de impedir ou anular o reconhecimento, gozo e exercício de direitos humanos e liberdades fundamentais.

Especificamente em relação ao Estado do Peru, a Corte IDH destacou que a situação de discriminação histórica da população LGBTIQ+ foi discutida no Caso “Azul Rojas Marín y otra vs. Perú”, em 2017.  Até o referido ano, inexistiam dados estatísticos no país sobre essa parcela da população e o resultado da primeira pesquisa realizada explicitou o cenário de violência sistêmica: 62,7% havia sido vítimas de violência ou discriminação, sendo que 17,7% foi vítima de violência sexual; 56,5% sentia temor de expressar sua orientação sexual e/ou identidade de gênero e o principal motivo era o medo de ser agredido e/ou discriminado (72%).

Tal cenário afeta diversos direitos, desde à vida e à integridade pessoal (como no caso “Azul Rojas Marín y otra vs. Perú”), o direito à identidade de gênero e/ou expressão de gênero, e todos os demais direitos que estão conectados aos mesmos. A Corte IDH manifestou:

  1. Além disso, esta Corte indicou em outros casos que o reconhecimento da afirmação da identidade sexual e de gênero está protegido pela Convenção Americana em seus artigos 7 e 11.2, uma vez que a identidade de gênero e sexual está vinculada ao conceito de liberdade, ao direito à privacidade a vida e, em suma, a possibilidade de cada ser humano se autodeterminar e escolher livremente as opções e circunstâncias que dão sentido à sua existência, de acordo com as suas próprias convicções. (tradução dos autores)

Quanto ao princípio do interesse superior da infância, o Tribunal concluiu que este não pode ser empregado para justificar atos discriminatórios em razão da orientação sexual (parágrafo 120) e que as resoluções administrativas da jurisdição peruana reforçaram estereótipos negativos por orientação sexual, que contêm uma carga pejorativa não aplicada a casais heterossexuais. Assim, esse vício na ponderação de direitos realizada pelo sistema administrativo e judicial do Peru constituiu também um ato discriminatório por orientação sexual (parágrafo 122).

Sobre o tema empresas e direitos humanos, a Corte IDH salientou os deveres de garantia dos Estados, dentre eles, os relacionados aos atos de particulares dentro de sua jurisdição, que demandam, entre outras, de ações positivas para os atores privados respeitarem direitos humanos e o dever de abstenção em situações que ponham em risco os direitos dos indivíduos sob sua jurisdição. A Corte ressaltou também que a responsabilidade do Estado sobre as ações dos particulares deve levar em consideração o caso concreto para apurar eventual violação ao dever de garantia (parágrafo 95).

O Tribunal utilizou-se de uma série de instrumentos de soft law, como os Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas e os Princípios de Yogyakarta, os quais sobrelevam o dever de os Estados agirem para que os atores privados respeitem direitos humanos. Exige-se dos Estados o desenvolvimento de políticas adequadas e atividades de regulamentação, monitoramento e fiscalização das atividades empresariais para que as empresas implementem políticas apropriadas para a proteção dos direitos humanos; incorporem boas práticas de governança corporativa com foco nas partes interessadas; adotem processos de devida diligência para a identificação, a prevenção e a correção de violações de direitos humanos, bem como garantir trabalho digno e decente; e estabeleçam processos que permitam a reparação de tais violações decorrentes das atividades desenvolvidas, especialmente quando afetam pessoas que vivem em situação de pobreza ou pertencem a grupos em situação de vulnerabilidade (parágrafo 100).

Em matéria de produção de prova, a Corte estabeleceu a inversão da carga probatória (“inversão do ônus da prova” ou “carga dinámica de la prueba”) em casos de discriminação contra pessoas LGBTIQ+, tendo em vista que “as vítimas de atos de discriminação não controlam as provas ou os meios para esclarecer prima facie os atos de discriminação” (parágrafo 108 – tradução dos autores).

Na conclusão, a Corte IDH ordenou o cumprimento de medidas de reparação consistentes no acesso gratuito, imediato, oportuno, adequado e eficaz a tratamento psicológico e/ou psiquiátrico para o Sr. Crissthian Manuel Olivera Fuentes; no pagamento de USD 15.000 por danos imateriais; e na publicação da sentença nos termos indicados no parágrafo 145.

Em relação às medidas de não repetição, determinou-se: 1) a implementação de uma campanha nacional, a ser realizada anualmente, através dos meios de comunicação, para promover a cultura de respeito, não discriminação e garantia dos direitos das pessoas LGBTIQ+; 2) a elaboração de um plano pedagógico abrangente sobre diversidade sexual e de gênero, igualdade e não discriminação, perspectiva de gênero e direitos humanos das pessoas LGBTIQ+ no âmbito das relações de consumo, que deverão ser incorporados nos cursos de formação regular em todos os órgãos administrativos e judiciais, bem como a criação de manual sobre os standards interamericanos em casos de discriminação contra pessoas LGBTIQ+; e, 3) a concepção e a implementação de política pública com o objetivo de monitorar e supervisionar as empresas e os seus trabalhadores, trabalhadoras e colaboradores no cumprimento da legislação nacional, bem como com os standards interamericanos sobre igualdade e não discriminação de pessoas LGBTIQ+.

Alguns autores têm afirmado que os principais avanços relacionados ao reconhecimento dos direitos da população LGBTIQ+, no âmbito do Direito Internacional dos Direitos Humanos, decorrem da evolução jurisprudencial dos organismos internacionais, considerando-se a ausência de disposição dos Estados para a adoção de tratados sobre a temática (NASCIMENTO; MARINO; CARVALHO, 2021). A Corte IDH, assim, tem interpretado a CADH para proteger direitos dos indivíduos que histórica e sistematicamente têm sido vítimas de violências em razão de suas expressões de gênero, sexualidade e identidades dissidentes do padrão heterocisnormativo dominante nas Américas.

Nota-se que a Corte parece se preocupar não apenas com a mera declaração de direitos, mas com uma efetiva mudança de conduta, com a eliminação dos estereótipos, possível de se alcançar por meio do fortalecimento da cultura de respeito e não discriminação e da conscientização de toda sociedade para a proteção de direitos. A Corte contribui verdadeiramente com as mudanças estruturais e institucionais no momento em que exige a criação de uma campanha nacional anual, ou quando estabelece a necessidade de um plano pedagógico sobre diversidade sexual e de gênero no âmbito das relações de consumo que seja aplicado aos cursos de formação dos órgãos administrativos e judiciais, como visto acima. Ao lado disso, a criação de uma política pública de supervisão das empresas e dos seus trabalhadores surge como um instrumento de efetivação da legislação nacional, no sentido de concretizar as mudanças essenciais que se busca pautadas nos parâmetros interamericanos.

Desse modo, ao incorporar a agenda do movimento LGBTIQ+ em sua jurisprudência, a Corte IDH tem contribuído para o estabelecimento de uma cidadania interamericana da diversidade, comprometida com a consolidação do constitucionalismo latinoamericano que tutela os direitos de todos os indivíduos em sua livre expressão de ser.

 

Referências

CABRERA, Francisco Rivasplata; PARADA, Miriam Tovar. Caso Olivera Fuentes vs. Perú: sentencia establece precedente sobre discriminación por orientación sexual en el ámbito del consumo. Disponível em: https://idehpucp.pucp.edu.pe/analisis1/caso-olivera-fuentes-vs-peru-sentencia-establece-precedente-sobre-discriminacion-por-orientacion-sexual-en-el-ambito-del-consumo/. Acesso em: 31 ago. 2023.

COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Avances y desafíos hacia el reconocimiento de los derechos de las personas LGBTI en las Américas: Aprobado por la Comisión Interamericana de Derechos Humanos el 7 de diciembre de 2018 / Comisión Interamericana de Derechos Humanos. Disponível em:http://www.oas.org/es/cidh/informes/pdfs/LGBTI-ReconocimientoDerechos2019.pdf. Acesso em: 16 ago. 2023.

CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Azul Rojas Marín e outra vs. Peru. Sentença de 12 de março de 2020 (exceções preliminares, mérito, reparações e custas).

CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Olivera Fuentes vs. Peru. Sentencia de 4 de febrero de 2023. Serie C No. 484. Disponível em: <https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_484_esp.pdf>. Acesso em: 10 ago. 2023.

CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Opinião Consultiva OC-24/17. Identidade de gênero, igualdade e não discriminação a casais do mesmo sexo. 24 de novembro de 2017.

NASCIMENTO, João Pedro Rodrigues; MARINO, Tiago Fuchs; CARVALHO, Luciani Coimbra de. A Corte Interamericana de direitos humanos e a proteção dos direitos LGBTI: construindo um Ius Constitutionale Commune baseado na diversidade. Revista Brasileira de Políticas Públicas, Brasília, v. 11, nº 2, ago/2021. Disponível em: <https://www.publicacoesacademicas.uniceub.br/RBPP/article/view/7382>. Acesso em: 10 ago. 2023.

SMART, Sebastián. Olivera Fuentes vs. Perú: avances en materia de derechos humanos y empresas y población LGBTIQA+. Disponível em: https://agendaestadodederecho.com/olivera-fuentes-vs-peru-avances-en-materia-de-derechos-humanos-y-empresas-y-poblacion-lgbtiqa/. Acesso em: 16 ago. 2023.