Podcast: Existe ética na mentira?

Segundo o professor Renato Janine, não existe um dever absoluto de dizer a verdade, especialmente quando esta pode servir a um criminoso ou diz respeito à questões íntimas

Vamos começar com a regra geral: mentira é uma infração à confiança recíproca. Então, se nós queremos ter uma sociedade em que as pessoas confiem umas nas outras, é importante a gente não mentir. Esse é o princípio básico. Agora, mentir não é obrigação universal. Eu não tenho essa obrigação, por exemplo, em relação a um criminoso que chegar para mim e perguntar onde está a pessoa que ele quer matar, roubar ou até estuprar. Eu não tenho obrigação nenhuma de dizer para ele onde está.
.
Na verdade, do ponto de vista ético, eu devo proteger essa pessoa que é o alvo dele. O interessante é que essa foi uma discussão importante no século 18. O grande filósofo Emanuel Kant, um dos principais filósofos da história humana, argumentou que em hipótese alguma você deve mentir. É uma discussão mais complexa, mas chega aí, e justamente pela confiança que deve haver entre os membros de uma mesma sociedade.
.
Um pensador do tempo dele, Benjamin Constant, nascido na Suíça, pensador francês liberal, muito ativo no final do século 18, começo do século 19, retrucou: “E o que eu vou fazer se um criminoso quer saber onde está a possível vítima dele? Eu devo dizer a verdade? Porque se eu disser a verdade, eu estou colocando essa pessoa à mercê dele”. E ele começa a responder e se enrola.
.
É  interessante porque quando eu li essa passagem do Kant fiquei chocado. Ele diz que nós devemos dizer a verdade em todos os casos. É uma resposta quase burocrática, como se fosse o culpado pelo assalto, assassinato ou estupro fosse o assaltante, o assassino ou estuprador, mas não a pessoa que disse a verdade. É uma visão burocrática: “Eu só respondo pelo que eu fiz”. E aí ele engata numa explicação, que é mais absurda ainda. Ele diz: “Bom, se eu disser que a vítima foi pela direita, quando ela na verdade foi para a esquerda, mas se depois que sair da minha vista a vítima virar para o lado que eu disse que ela não foi, será que dessa forma eu terei causado esse crime? Então, não devo mentir em hipótese alguma”.
.
Essa discussão é importante, é longa etc. É curioso porque, como Kant é filósofo muito respeitado nos departamentos de filosofia, inclusive no meu na USP, é muito difícil alguém ter coragem de criticá-lo. Eu já vi comentários em que os comentadores se viram de tudo que é jeito para defender o indefensável, que é essa tese do Kant de que eu devo ser cúmplice na prática do assassinato, do roubo, do estupro como mencionado. É interessante que Umberto Eco tem um artigo em que ele desmonta a tese. Ele fala que Kant estava num dia ruim para dizer essa bobagem gigantesca.
.

Yves de La Taille. Professor do IPUSP

Talvez uma boa saída seja uma leitura que é feita por um colega nosso, professor Yves de La Taille, do Instituto de Psicologia da USP, que diz que a obrigação de dizer a verdade não é universal, é obrigação relacional. Quando é relacional, ela se torna num certo sentido relativa. A quem eu tenho obrigação de dizer a verdade? Eu tenho obrigação de dizer a verdade a pessoas honestas, a pessoas que não vão fazer uma chantagem, não vão cometer um crime etc.
.
E vamos até citar um caso mais específico. Há alguns anos, o presidente Bill Clinton, dos Estados Unidos, foi processado por um adultério que ele cometeu com uma estagiária na Casa Branca e houve toda uma questão. Tentaram até mesmo fazer o impeachment, porque ele mentiu sobre esse  relacionamento. É interessante porque ninguém tem o direito de saber com quem Clinton manteve relações ou não, a não ser a mulher e talvez a filha dele. Outras pessoas,  eu, você, não é da nossa conta e esse ponto é muito importante. Nós não temos o direito de chegar para qualquer pessoa e cobrar dela informações sobre assunto que não é da nossa conta, sobre as quais não temos direito. E o caso mais grave, efetivamente, é quando se trata de um criminoso querendo, com base nessas informações, cometer um crime.

Jornal da USP, 19/7/2023: https://jornal.usp.br/?p=661609