A pesquisa produzida por Daniel Camparo Avila, que gerou sua tese de doutorado defendida no IPUSP, constatou que oficinas terapêuticas em grupo com canções oferecia à crianças com Transtorno do Espectro Autista (Autismo) uma forma de se comunicarem melhor entre si, e a partir daí, passarem a redescobrir a si próprias.
A terapia com música é uma técnica conhecida e já estabelecida como um método de bons resultados para crianças com autismo. Normalmente essas terapias são desenvolvidas por meio da improvisação, porém Daniel decidiu desenvolver uma forma diferente de trabalhar com essas crianças, que foi através das canções, que são músicas cantadas. “Eu queria fazer alguma coisa diferente, eu trabalhei muito tempo com improvisação (…) então eu me propus esse desafio que não era o mais comum, nem na prática clínica, nem na pesquisa científica, que era justamente as canções”.
A ideia inicial dessa linha de pesquisa específica de terapia com canções surgiu quando Avila tocava gaita durante uma das oficinas e o coordenador do projeto, Tiago Lima, violão. Ele acrescentou a letra da canção conhecida “Revolution”, dos Beatles na melodia que estava sendo tocada e umas das crianças com autismo, muito inibida até aquele momento, teve uma reação entusiasmada. Daniel descreve ”essa criança, que até então era passiva, nesse momento saiu correndo pela sala, me abraçou, abraçou outro terapeuta, e foi nesse momento que tive a ideia de introduzir as canções no meu trabalho e na minha pesquisa”.
Ao questionar-se o porquê da canção ter causado tal atitude na criança, o conceito de identidade sonora foi levantado pelo pesquisador. Tal teoria defende que as primeiras experiências sonoras de um sujeito deixam “marcas” em seu psiquismo, e que essa “assinatura sonora” que existe é ativada conforme a pessoa tem encontros com a música ao longo de sua vida. É o que justifica, por exemplo, quando algo é cantado por uma pessoa, mas o ouvinte tem a sensação de aquilo dizerrespeito de uma experiência própria.
Para Avila, clinicamente falando, essas questões de gostos e preferências podem ser trabalhados como uma forma de acessar o conteúdo inconsciente e pessoal da pessoa, e a partir daí desenvolver uma terapia. No caso das crianças com autismo, que possuem muita dificuldade de comunicação, as suas identidades sonoras foram trabalhadas juntamente com o conceito de musicalidade comunicativa. Esta é a capacidade de conferir sentido às formas de expressão no tempo sonoro para comunicar-se com o outro. Assim, é possível, por meio das canções, ajudá-las de alguma forma a superar a dificuldade de interagir socialmente.
Para desenvolver tal projeto foram realizadas oficinas semanais, durante um ano, com a participação de cinco crianças entre quatro e nove anos de idade. As técnicas musicais selecionadas para desenvolver a terapia foram à improvisação musical, o jogo musical e a recriação de canções. Apesar da presença das duas primeiras técnicas, as canções ocuparam a maior parte do tempo durante as sessões.
Daniel ressalta que o ponto essencial nos resultados não é a quantidade de interações geradas pela terapia em grupo, mas sim a qualidade delas. Para ilustrar essa afirmação o pesquisador cita um vídeo em que um bebê que viria a desenvolver autismo está em sua festa de aniversário e muitos convidados tentam chamar sua atenção, porém ele não faz contato visual com ninguém, até que um de seus tios passa ao seu lado cantando, e ao ouvir a música o bebê olha para o tio e sorri. Isso mostra a importância que a música teve para que um vínculo fosse estabelecido com a criança.
Logo, para analisar melhor os resultados obtidos, Daniel gravou vídeos de todas as sessões da terapia em grupo e posteriormente utilizou a técnica de microanálise para estudar melhor as imagens. Esse é um método utilizado para “investigar microprocessos, isto é, processos e mudanças ocorridos em períodos curtos de tempo.” Assim é possível identificar microexpressões que são expressões “micromomentâneas” e involuntárias de emoção que podem ocorrer quando um indivíduo experimenta uma emoção forte, mas tenta esconder seus sentimentos. Sua duração é muito mais curta que as expressões faciais normais, girando ao redor de 1/15 ou 1/30 de segundo.” e por isso demandam essa forma de análise minuciosa.
Com esse estudo foi possível perceber mudanças mínimas nas atitudes das crianças que passavam despercebidas pelo terapeuta durante as oficinas, como em uma situação em que foi solicitado que elas tocassem os instrumentos disponibilizados, e uma criança aparentemente não participa da atividade proposta, porém, no vídeo, Daniel pode perceber que ela tocou as cordas do violão de uma forma sutil. Dessa forma, ficou mais claro para o pesquisador as atitudes que cada criança tinha a partir de seus estímulos musicais, possibilitando que ele valorizasse as respostas positivas ao máximo durante o processo terapêutico. O pesquisador salienta que essas pequenas interações são importantes porque para crianças autistas elas são um grande avanço.
O autismo ainda é uma condição pouco esclarecida, e muitos estudos foram e estão sendo feitos para compreender a sua causa e acompanhamentos eficazes para o desenvolvimento das pessoas com essa condição. Porém, há o consenso de que a maior dificuldade dos autistas é interagir e se comunicar com outras pessoas. Ao mesmo tempo, difunde-se cada vez mais a ideia de que o autismo não é uma doença já que não existe “cura”, mas sim uma deficiência, e assim como a sociedade se adapta para receber, por exemplo, os cegos ou surdos, com o autista o procedimento deve ser o mesmo. “Algumas associações, sobretudo de pais de crianças autistas, defendem que elas precisam de uma adaptação das condições escolares, trabalho, pensões etc, assim como acontece com os deficientes.” afirma Avila.
Porém, apesar de não existir uma cura de fato para o autismo, respostas muito positivas são percebidas quando algum tratamento terapêutico é feito durante a infância. “Um fator evidente é que quanto antes você intervém, melhores são os resultados. Logo, a evolução da criança é maior quando esse problema é abordado na infância. Isso está envolvido em diversas questões como a plasticidade do cérebro, etc.” diz Daniel. Ele acredita que algumas das questões levantadas durante sua pesquisa podem contribuir para refinar os protocolos de detecção do autismo já existentes, como a forma particular que as crianças autistas têm de se comunicar.
Durante as oficinas foi possível perceber que, apesar de o desenvolvimento das relações pessoais não ser igual ao de uma criança sem o distúrbio, uma parcela da comunicabilidade é mantida nas crianças autistas, e cabe à terapia trabalhar com isso para progredir nesse sentido. “Se as crianças não podem se comunicar ou se expressar com a linguagem, elas demonstram que podem fazer através da música” afirma Avila. O pesquisador diz que os encontros proporcionaram um ambiente “seguro” em que as crianças tinham liberdade de se comunicarem da forma que desejassem, e assim uma relação de alteridade foi sendo construída. Uma das hipóteses levantadas foi a de que, por conta da música ser uma comunicação pré-verbal ela possibilita o estabelecimento da musicalidade comunicativa entre os participantes do grupo.
Em relação aos resultados obtidos, o aspecto em que houve o maior avanço no grupo foi a intersubjetividade, ou a relação de pessoa a pessoa. Para uma criança autista lidar com o outro representa uma grande dificuldade, e por meio da música a falta de interação foi superada. E, finalmente, esse convívio refletiu diretamente nas crianças e o seu próprio eu, dando-lhes a capacidade de se “reinventar”. “Reinventar é criar novas possibilidades de ser, sentir e pensar, de estar com outro, de se expressar, de interagir com os outros, de cooperar com os outros, etc.” afirma Daniel, e o que permitiu a reinvenção foi a alteridade manifestada através da musicalidade comunicativa “Para as crianças com autismo o grande motor dessa transformação é justamente uma interação com o outro.”
Por Mariana Navarro
Supervisão Islaine Maciel e Daniel Avila