BALBÚRDIA retrô: estamos publicando no site textos divulgados exclusivamente nos nossos números digitais anteriores. No texto abaixo, divulgado no número 2, Alessandra Bizerra, docente orientadora do PIEC, analisa a produção de pesquisa sobre a comunicação pública da ciência.
Alessandra Fernandes Bizerra possui bacharelado e licenciatura em Ciências Biológicas (1992 e 2004), mestrado em Ciências Biológicas (Zoologia) (1998) e Doutorado em Educação (2009), todos pela Universidade de São Paulo. Atualmente, é docente do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo e coordena o grupo de pesquisa CHOICES. Foi Diretora do Parque CienTec da USP e tesoureira da Associação Brasileira de Ensino de Biologia (SBEnBio - Nacional). Tem experiência na área de Educação, atuando principalmente nos seguintes temas: educação não formal, divulgação científica, participação social, aprendizagem e ensino de ciências, produção de materiais didáticos e comunicacionais (Fonte: Currículo Lattes).
11 de julho de 2022 | 10:00
"Nunca as sociedades humanas souberam tanto sobre como mitigar os perigos que enfrentaram, mas concordaram tão pouco sobre o que sabem coletivamente”. Assim Dan Kahan sintetiza o paradoxo da divulgação científica - mesmo frente a evidências científicas convincentes, notícias falsas, bolhas sociais, ameaças à democracia, embora antigas na história humana, cada vez mais fazem parte de nosso cotidiano e são amplamente comunicadas. Esse proposto paradoxo nos leva a questionar como podemos resolver as tensões que emergem dessas discordâncias, sendo elas mesmas frutos de sociedades consideradas livres e democráticas. Resolver a disjunção entre sabermos muito e concordarmos pouco é um grande desafio assumido pela pesquisa em comunicação pública da ciência[1]. E não é o único.
A pesquisa em comunicação pública da ciência está amadurecendo. Em uma estimativa pouco refinada, cerca de metade dos artigos na área foi publicada nos últimos 15 anos e, se considerarmos os artigos que discutem a divulgação científica olhando para as relações da ciência na sociedade, chegamos a uma porcentagem ainda maior. Observamos também um significativo aumento na publicação de livros e no número de cursos e programas de pós-graduação, além de atividade editorial crescente, com os principais periódicos aumentando o número de seus volumes. Entretanto, esse aumento exponencial da pesquisa na área não se reflete na diminuição das desigualdades conhecidas, em que gênero e região do globo, por exemplo, ainda influenciam as possibilidades de publicação.
Em um estudo desenvolvido por pesquisadores sul-africanos sobre os três periódicos mais relevantes da área (Journal of Science Communication, Public Understanding of Science e Science Communication), vemos que 55% das publicações possuem autores masculinos, em geral como únicos autores, sediados majoritariamente nos Estados Unidos e na Inglaterra. Um número significativo de pesquisadores possui apenas uma publicação nestas revistas, o que pode sugerir um envolvimento passageiro na área ou resultados predominantemente originados de grupos restritos. A autoria de um ou dois investigadores por artigo ainda é a norma.
Mas há mudanças em curso. Em anos recentes, as mulheres aumentaram suas publicações e, geralmente, em multi-autoria. Embora com fragilidades, há uma tendência de aumento na diversidade de instituições e países, com destaque para o Brasil, Singapura e África do Sul. Em diferentes pesquisas, o Brasil aparece como líder entre os países em desenvolvimento, constantemente presente nas listas dos Top 10 em número de publicações ou figurando como pioneiro em alguns aspectos, como no estabelecimento de cursos de formação de comunicadores científicos. Entretanto, o país se mostra lento em outras ações, como no estabelecimento de cursos de mestrado, na superação de um isolamento intelectual, apartado de relações latino-americanas, e na mitigação das desigualdades de produção, causada em grande parte pelas discrepâncias de investimento.
Atualmente, em levantamento feito por Germana Barata e colaboradores sobre teses e dissertações de mais de uma centena de programas de pós-graduação na área, o Estado de São Paulo aparece como responsável por metade de todas as pesquisas. Concentrados, em sua maioria, no diálogo com as áreas de educação, comunicação e linguagem, os PPGs em Ensino de Ciências (PIEC) e em Educação da USP, em Divulgação Científica e Cultural da UNICAMP e em Comunicação da UNIMEP ganham evidência. Entre as revistas brasileiras, Ciência & Educação (UNESP), História, Ciências e Saúde - Manguinhos (FIOCRUZ) e Ensaio - Pesquisa em Educação em Ciências (UFMG), ligadas a instituições do sudeste do Brasil, são as que mais publicam artigos da área. Superar essas desigualdades, dentro e fora do país, envolve maior cooperação em pesquisa, aumento de financiamento e desenvolvimento de políticas públicas nacionais e internacionais. Necessitamos, ainda, de modelos e programas de comunicação pública da ciência definidos para contextos específicos, com relevância regional, promovendo a pesquisa no hemisfério sul.
Outro desafio aos pesquisadores é levar em conta que as ações de divulgação científica são produzidas não somente em redes de atores especialistas ou quase especialistas, mas cada vez mais de não especialistas, com interação dinâmica e maior permeabilidade ciência/sociedade. Além disso, a ideia de públicos (no plural) com diferentes interesses, atitudes e necessidades em relação às ciências, se fortaleceu, exigindo sutileza e sofisticação em nossos processos investigativos. Diálogo, contexto, engajamento, participação passaram a fazer parte das práticas de comunicadores científicos, demandando da pesquisa na área novas abordagens metodológicas, ao mesmo tempo em que foram fortalecidos pelas investigações de cunho participativo.
Não podemos nos esquecer das novas mediações. Uma quantidade e uma variedade sem precedentes de materiais, como vídeos, blogs, canais de ciência, entre tantos outros, têm sido facilitadas pelas mídias digitais. Meios tradicionais da comunicação pública da ciência, como jornais, revistas, programas de TV e rádio, estão perdendo sua centralidade, embora ainda sejam requeridos como garantias da qualidade da informação. Cabe pensarmos em como enfrentar as barreiras ainda impostas ao acesso e às possibilidades de apropriação da ciência, relacionadas à assimetria social e à privatização do conhecimento e promotoras de rompimentos no tecido social.
Vemos assim que a complexidade da comunicação da ciência nos chama a repensar nossa atividade de pesquisadores. A área tem buscado avançar no entendimento de como os modelos de comunicação em ciência se apresentam nos cenários locais, regionais e globais, como têm se dado as relações ciência/sociedade/tecnologia nesses contextos, quão equitativas e “inclusivas” têm sido as ações desenvolvidas, que abordagens específicas às investigações podem ser usadas para analisar a ciência na sociedade, como promover, interseccionalmente, participação e diálogo, entre tantas outras questões. Mas há desenvolvimento significativo para a comunicação pública da ciência ser considerada uma nova disciplina?
Hoje, há uma certa concordância de que embora apresente elementos de uma disciplina, como a presença de uma comunidade, historicidade, métodos e instrumentos e a existência de uma rede de comunicações, a pesquisa na área se constitui de forma interdisciplinar e multidisciplinar, extraindo suas ferramentas e conceitos, em nível internacional, de áreas como sociologia, psicologia, estudos de mídia, entre outras. Para se tornar uma disciplina, vemos na literatura a sugestão de uma articulação de teorias que abordem questões centrais e também de resolução de problemas de fronteira com áreas vizinhas, como os Estudos de Ciência e Tecnologia e a Educação em Ciências. Mas talvez seja justamente a interdisciplinaridade característica da área que nos ajudará a resolver questões desafiadoras sobre as maneiras mais eficazes de possibilitar que a ciência seja criticamente aproveitada pela sociedade.
Parabenizo a Revista BALBÚRDIA por fazer parte do enfrentamento a esses e outros desafios!
Alessandra Bizerra
Instituto de Biociências/USP
- [1] Optei pelo termo “comunicação pública da ciência” por considerá-lo abrangente, permitindo englobar outros como divulgação científica, popularização ou disseminação, e por entendê-lo como dialógico. Entretanto, reconheço e concordo que o termo “divulgação científica”, muitas vezes usado para traduzir a expressão “science communication”, é o mais utilizado no Brasil e possui uma grande polissemia, sendo talvez exageradamente restritiva a crítica de que “divulgar" confere um caráter de déficit, de transmissão unilateral, ao processo comunicacional.
Referências
BARATA, G.; CALDAS, G.; GASCOIGNE, T. Brazilian science communication research: national and international contributions. Anais da Academia Brasileira de Ciências, v. 90, n. 2 (supl. 1), p. 2523–2542, 2018.
KAHAN, D. What is the “science of science communication”? Journal of Science Communication, v. 14, n. 3, 2015.
GUENTHER, L.; JOUBERT, M. Science communication as a field of research: identifying trends, challenges and gaps by analysing research papers. Journal of Science Communication, v. 16, n. 2, 2017.