Do lab ao “zap”: Alfabetização Científica e Alfabetização Midiática caminhando lado a lado

Audiodescrição da imagem: é uma ilustração digital de uma pesquisadora vestida com jaleco branco observando uma amostra no microscópio. Símbolos relacionados às redes sociais circundam sua imagem, tais como o símbolo de “curtir” e o de mensagem recebida e lida no aplicativo do whatsapp, além de figuras de pessoas dialogando através das redes e a figura de um celular com destaque ao aplicativo whatsapp. Em uma dessas figuras há o destaque de um diálogo entre duas pessoas no whatsapp. A primeira mensagem é “Ouvi dizer que é só uma “gripezinha”!”, e a resposta é “De jeito nenhum” com o emoticon de polegar para baixo.

A figura representa uma proposta de educação em ciências centrada na Alfabetização Científica, incorporando o conhecimento sobre o funcionamento das mídias modernas e redes sociais quando o tema for ciência. Autoria própria.

 

07 de fevereiro de 2022 | 18:00

 

Sou Erasmo Moises dos Santos Silva, Alagoano e sanfoneiro. Também sou Licenciado em Química (UFAL-Arapiraca), Mestre em Ciências (IQSC-USP) e professor de Química da rede estadual de ensino em Cuiabá-MT. Atualmente sou doutorando em Educação (FE-USP) e desenvolvo pesquisa com tema abordado neste texto: Alfabetização Científico-Midiática.

 

Com a pandemia da COVID-19, intensificou-se a necessidade de repensar o modo como se ensina estudantes a conhecer e transformar o mundo natural. Esse compromisso da escola, conhecido como Alfabetização Científica, precisa mais do que nunca se juntar à Alfabetização Midiática, ou o ensino sobre os meios de comunicação digitais, resultando principalmente em abordagens sobre como a ciência é representada nas mídias modernas e redes sociais. Tudo isso em virtude de como a internet facilita a distorção do conhecimento científico e permite a criação de explicações alternativas e perigosas sobre o mundo, como se observa nas postagens virais que negam a eficácia de vacinas contra a COVID-19. Mas sobre quais princípios estaria firmada essa “nova” educação em ciências? Quais conteúdos deveriam ser ensinados a partir dela?

Dietmar Hottecke (pesquisador da Universidade de Hamburgo, Alemanha) e Douglas Allchin (pesquisador da Universidade de Minnesota nos Estados Unidos) propõem uma nova vertente de educação em ciências atenta a esses desafios, chamando-a de Alfabetização Científico-Midiática (ACM). No artigo intitulado “Reconceitualizando a educação sobre a natureza da ciência na era das mídias sociais” (em tradução livre) publicado em Fevereiro de 2020 na Revista Science Education (Educação Científica, em tradução livre), os autores apresentam a ACM como uma proposta que vai além do ensino e da aprendizagem de conteúdos científicos tradicionais, incorporando também a compreensão de elementos sobre como a ciência funciona (a natureza da ciência) e o entendimento crítico sobre a divulgação da ciência nas mídias modernas e redes sociais. 

 

Quais os fundamentos da ACM?

A ACM priorizaria abordagens sobre como a ciência é produzida e divulgada, indo desde a elaboração de teorias e modelos, até a divulgação de seus conhecimentos nas mídias modernas. Hottecke e Allchin propõem que as aulas de ciências pautadas na ACM estejam apoiadas em três fundamentos: o domínio dos cientistas (caracterizado pelo estudo das negociações realizadas entre cientistas para construção do conhecimento científico); domínio da mídia especializada (em que se insere o estudo das atividades de mediação exercida por canais de comunicação especializados); e o domínio dos leitores (pelo qual se estuda o funcionamento das redes sociais). 

Os autores acrescentam que os três domínios da ACM devem viabilizar a compreensão sobre como as afirmações científicas se mantêm confiáveis à medida que avançam por um longo caminho: dos laboratórios e locais de investigação ao cidadão conectado à internet. Em outras palavras, do lab ao “zap”. 

 

O que ensinar sobre ACM?

No artigo, Hottecke e Allchin apresentam também propostas de conteúdos para serem ensinados em aulas de ciências considerando cada um dos três domínios da ACM. Sobre domínio dos cientistas, os autores defendem que haja discussões sobre o funcionamento da ciência em sala de aula, trazendo à tona, por exemplo, que é esperado haver discordâncias entre um grupo de cientistas acerca de um certo problema, mas que o conhecimento científico é baseado em um consenso de especialistas credenciados a tratar sobre o tema. Por isso, um certo estudo isolado sobre a COVID-19, com procedimentos metodológicos “discutíveis”, ou a opinião de um certo indivíduo sem experiência e autoridade para a pesquisa sobre vírus e epidemias, não representaria a verdade científica sobre a doença. 

Quanto ao domínio da mídia especializada, os autores destacam que a comunicação estabelecida por diversas mídias para tratar de temas científicos não é neutra. Portanto, estudantes precisam compreender que as mídias são “negócios” e que a sua principal razão de ser é o lucro. Isso significa que mesmo uma certa fonte de informação com boa reputação pode apresentar informações científicas de maneira tendenciosa, sem que haja qualquer preocupação com a veracidade dos fatos, tudo isso com o intuito de aumentar a audiência.

A respeito do domínio dos leitores, Hottecke e Allchin são taxativos ao dizer que embora a internet forneça acesso sem precedentes a uma diversidade de informações, o seu efeito pode ser exatamente o oposto, como reforçar crenças pré-existentes e desprezar o contraditório. Desse modo, os autores argumentam que as aulas de ciências devem incluir discussões sobre o fenômeno “filtro bolha”, evidente quando regras e dados matemáticos que fazem funcionar a internet – os famosos algoritmos - mapeiam o comportamento de um usuário e, a partir dos resultados, reservam a ele informações personalizadas, criando uma “bolha de informação” no entorno do internauta. Além do mais, o filtro bolha seria responsável pelas “câmeras de eco”, ou comunidades em redes sociais formadas por pessoas com preferências parecidas, entre as quais ideias cientificamente falsas têm mais probabilidade de serem aprovadas do que contestadas. Os autores acrescentam que a ação desses dois fenômenos leva a uma percepção de que a visão cientificamente distorcida de um certo grupo não é limitada só aos seus integrantes, mas que faz parte de um consenso muito maior, uma “sabedoria popular”. Os autores chamam isso de falso consenso.

 

Por que a ACM é responsabilidade de professores de ciências?

É necessário destacar que quando a ciência é mal representada na internet o que sobressai são distorções no processo de construção do conhecimento científico. Por isso, nada mais coerente de que esse seja um problema para aulas de ciências. Hottecke e Allchin acrescentam que a ACM complementa a educação científica já em curso em muitas escolas, pois avaliar e responder sobre como a ciência é representada na internet requer não somente conhecimentos sobre mídias e o funcionamento da ciência, mas também conteúdos científicos tradicionais.

É importante considerar que a epidemia das informações falsas reforça ainda mais a importância da ACM, principalmente quando essas mentiras surgem maquiadas por uma falsa autoridade científica e se espalham ainda mais rapidamente que o próprio vírus da COVID-19. A ACM, portanto, além de representar uma nova educação em ciências, representa a ferramenta da escola contra os que planejam criar um mundo alternativo em que a verdade é perigosamente mutável e conveniente. 

 

Ficou interessado no assunto e quer saber mais sobre? Acesse abaixo a pesquisa completa!

HOTTECKE, Dietmar; ALLCHIN, Douglas. Reconceptualizing nature-of-science education in the age of social media. Science Education, v. 104, p. 641–666, 2020. Disponível em: <https://onlinelibrary.wiley.com/doi/full/10.1002/sce.21575>