Ensino Médio em disputa

Legenda: Capa da edição número 6, Revista Balbúrdia.

À convite da Revista BALBÚRDIA, a professora Maria Regina Dubeux Kawamura, professora e pesquisadora no PIEC-USP, escreve texto em que discute aspectos de currículo e do Ensino Médio.

Maria Regina Dubeux Kawamura

Regina Kawamura é bacharel em Física pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1972), mestra (1979) e doutora (1986) em Física pela Universidade de São Paulo. É professora Instituto de Física da Universidade de São Paulo desde 1986, tendo atuado nas Áreas de Pesquisa de Física do Estado Sólido, com ênfase em Biofísica (1986-1995) e Pesquisa em Ensino de Física (1990-atual). Ao longo de sua carreira, envolveu-se em projetos de pesquisa na área de Ensino de Física investigando temas a respeito de currículo, formação de professores. Atualmente, trabalha, dentre outros, com temas relacionados à complexidade e problemas socioambientais, em sua inserção no ensino de Física. Orientou mais de trinta dissertações e teses em seu percurso profissional, além de trabalhos de conclusão de curso da graduação e projetos de iniciação científica. É coordenadora do projeto PROFIS/GREF que aproxima alunos da licenciatura, professores da rede particular e pública aos projetos de pesquisa e de formação continuada.

11 de setembro de 2023 | 11:00

Sim, o Ensino Médio está em disputa....  (Isso é bom ou é ruim?)

De qualquer forma, todo currículo é um espaço de disputa... De valores, de propósitos, de interesses e intenções, fazendo com que existam controversas e contradições intrínsecas. Sempre.

E diante de tantas discussões, intervenções, considerações, depoimentos, talvez seja possível avançar um pouco mais considerando as implicações do que seja um currículo. Não para obter respostas para as questões atuais, mas para ampliar e sistematizar outras necessárias perguntas.

O que é currículo?

Mas, afinal, o que é um currículo? Também para isso há diferentes compreensões. Etimologicamente, do latim currere, significa caminho, jornada, trajetória, percurso a seguir. 

Na concepção mais geral, currículo é a proposta de um percurso, para viabilizar um projeto de educação, para uma escola, uma rede, um sistema. Portanto, não é apenas um documento. Um currículo implica em valores, objetivos, mas também em diagnósticos e instrumentos para viabilizar transformações, em propostas a serem implementadas para construir percursos. E, de alguma forma, em procedimentos de avaliação com potencial para ajustar rumos. Em uma aproximação mais contemporânea, políticas educacionais, currículo e avaliação vêm juntas em um mesmo pacote, ainda que suas relações nem sempre sejam explicitadas.

Em se tratando do Ensino Médio, tem a ver necessariamente com as perspectivas políticas para a educação de toda uma faixa etária, que, por sua vez, tem a ver com as pautas sociais e econômicas e com as políticas educacionais de diferentes setores. Ao longo do tempo, especialmente a partir do século XX, quando a escolarização passou a ser função do Estado, diferentes projetos para essa etapa foram sendo propostos. E articulados com estratégias educacionais, em geral através de propostas de ação, bem ou mal sucedidas.

De uma forma geral, um projeto educacional para essa faixa etária visaria apontar formas pelas quais os jovens possam se construir como sujeitos do seu tempo e, também, se preparar para o futuro. 

Então, com a proposta do novo ensino médio, estamos vivenciando apenas um momento de uma longa disputa. No entanto, trata-se de um momento muito especial, já que ocorre em meio a uma grande crise social, política e do próprio capitalismo. Do ponto de vista do sistema político, a proposta atual quer promover a formação de profissionais para campos de trabalho tradicionais ou em desenvolvimento, garantindo-os em compasso com a economia.  (Mas, quer também garantir a escola como “espaço de contenção”, onde os jovens possam ser acompanhados ou contidos em seus eventuais movimentos...).

Preparar para quê? O que esperar para o futuro? 

Aqui temos uma parte importante do problema. Que futuro será esse? Qual a compreensão para esse mercado de trabalho do futuro?  Qual o espaço do profissional especializado, do trabalhador uberizado, das competências e do espaço de conhecimentos necessários?  Caberia perguntar e discutir o que se quer apontar para esse jovem. Como será possível garantir seu futuro, em um mundo em transformações e com profundas incertezas? Ou seja, cabe indagar sobre os objetivos não explicitados na proposta. Qual a análise que acompanha a pretensão do currículo que está sendo proposto? O que isso significa em um mundo em que é preciso educar para o imponderável? Para além de um conjunto de competências gerais que se pretende poder construir, que horizonte apresentam para o futuro? 

Ou seja, um currículo tem texto e contexto. Como investigar melhor os contextos? Qual seria o papel, por exemplo, de órgãos internacionais (tipo OCDE), como pressão externa e internacional sobre o estabelecimento de políticas unificadoras de currículo? Além disso, qual o papel dos movimentos empresariais na educação, construindo uma agenda própria e estratégias mais comprometidas com seus interesses? Qual a influência das fundações (ou dos “reformadores empresariais”) dedicadas ao desenvolvimento de uma educação cuja qualidade é algo por elas mesmas definida?  Quais valores mais ocultos vêm embutidos nesses pacotes? De uma certa maneira, as próprias universidades têm sido seduzidas pelo “inova”, “empreende”, além do “internacionaliza”, como caminhos a serem perseguidos. O que teriam essas aproximações a ver com a proposta do currículo para a escola básica, que dá acesso ao ensino superior?

E quais políticas educacionais estão sendo/serão priorizadas?

Outro aspecto essencial nessa discussão diz respeito aos meios de implementar o currículo, uma vez delimitados seus objetivos. Se currículo é projeto em desenvolvimento, teria que vir, necessariamente, acompanhado de estratégias. Essas, por sua vez, devem partir do reconhecimento da realidade escolar. Nesse sentido, quais políticas educacionais estão sendo desenhadas (e garantidas) para que seja possível desenvolver o currículo proposto?  Que medidas podem viabilizar a superação das dificuldades já reconhecidas? Quais políticas educacionais poderiam valorizar as ações dos professores e da escola? É suficiente apontar para um eventual aumento do tempo de trabalho escolar (escola integral)? Quais seriam as medidas a serem adotadas para acompanhar, superar dificuldades, e adequar rumos? Qual o espaço das políticas educacionais? Quem seriam responsáveis por sua promoção, com quais recursos, em que relação com outras políticas já existentes (como PNLD, valorização de professores, formação de professores, etc.)?

Embora sejam muitos os aspectos em discussão, um outro, muito presente, é a questão do ENEM. Nesse quadro, temos ainda a aspiração de parte da população jovem ao acesso ao ensino superior, com a confiança de que essa seria uma garantia de sucesso profissional. Também essa é uma questão pouco discutida, em que seria importante considerar a desigualdade da própria estrutura econômica, muitas vezes eclipsada pelas oportunidades e condições de desempenho individuais e pela meritocracia. Nesse âmbito, a questão do ENEM se apresenta não como instrumento de avaliação da formação propiciada pelo currículo, mas como instrumento de seleção para o ensino superior. Portanto, existe uma necessária discussão sobre o ENEM, antes de simplesmente readequar os conteúdos a serem “cobrados”...

Para além dessas questões, digamos, “clássicas” em relação aos currículos, há um aspecto adicional, vinculado profundamente a todos os outros, que tem a ver com a desigualdade educacional desse país....  Uma desigualdade muito mais antiga. Há quem pense que ela se resolve com uma base nacional curricular comum. Aliás, essa tem sido uma bandeira da propaganda da BNCC desde suas primeiras propostas, em 2014/2015. Mas, como tantas pesquisas têm demonstrado, em sendo suas raízes sociais, não bastam propostas pedagógicas. De novo, que políticas estão sendo propostas para fazer frente às desigualdades, já tão identificadas e mapeadas?

O que fazer?

Em síntese: expectativas quanto à formação mais geral desejada, explicitação de relações da formação com o mercado de trabalho, um programa de políticas educacionais que visem garantir a implementação da proposta curricular, além de procedimentos de acompanhamento e avaliação do que está sendo desenvolvido - todos esses deveriam ser aspectos indispensáveis nas discussões nesse momento.

Ao discutir-se a BNCC, tal como apresentada e estabelecida em 2017, e ainda que acompanhando seu histórico, tem-se escapado, também, de identificar as eventuais necessidades de uma sua atualização (considerando que é algo que se arrasta por quase dez anos!). Nos últimos anos, muitas mudanças impactaram nossa realidade, em relação aos valores sociais, à violência, às mídias, às fake sciences, etc. que precisariam ser reconsideradas.  E, em especial, os aprendizados com a pandemia, o que nos fizeram compreender quanto à função e o papel que passou a se esperar da escola? Ou seja, o que aprendemos com a pandemia?  Com essa nova percepção a escola, não haveria que tornar urgente uma nova compreensão de seu papel, para além de transmissão do conhecimento e/ou promoção de competências? Não se trata, mais do que nunca, de reconhecê-la como um espaço social de relacionamentos, de afetos, de construção do respeito à diversidade e do acolhimento de uns aos outros? Como esse aspecto, que é central, deveria ser incluído na própria proposta curricular?

Com essas considerações, é fácil perceber, então, que a BNCC é muito mais do que a lista de competências e os apontamentos sobre questões relativas aos conhecimentos selecionados. Mesmo esses aspectos, exigiriam revisões importantes, em função das outras discussões aqui apresentadas.

Ainda que de forma breve, o que se procura mostrar é que essas questões (que passam longe da consulta pública do MEC), seriam muito mais importantes do que o número de horas ou itinerários. Considerações dessa natureza podem sinalizar com mais clareza as reinvindicações que se fazem necessárias para uma revisão de propostas para o Ensino Médio. 

Nessas disputas, não há caminhos fáceis, nem atalhos rápidos, mas é preciso resiliência. Com reflexão e ação conscientes. O que nos parece revigorante é compreender que currículos não se estabelecem por decreto, currículos se constroem em cada escola, em cada sala de aula... Sempre. É preciso reconhecer e valorizar a autonomia de ação, de professores e alunos, dentro de um quadro de preocupações comuns. 

Não queremos uma escola que prepare para o futuro. Mas precisamos vivenciar desde já novas relações, novos afetos, novas culturas, ou seja, os novos futuros.

 

Para quem quiser saber mais, segue algumas indicações de leitura:

  1. Educação é a base? (23 Educadores discutem a BNCC). Fernando Cássio, Roberto Catelli Jr. (orgs.). São Paulo, Acção Educativa, 2019.
  2. Neoliberalismo, qualidade total e Educação – Visões críticas. Pablo A.A. Gentili, Tomas Tadeu da Silva (orgs.). Petrópolis, Rio de Janeiro, Editora Vozes, 2015.
  3. Todos pela Educação? Uma década de ofensiva do capital sobre as escolas públicas. Nívea Silva Vieira, Rodrigo Lamosa, Curitiba, Appris, 2020.
  4. Base Nacional Curricular: dilemas e perspectivas. Carlos Roberto Jamil Cury, Magali Reis, Teodoro Adriano Zanardi. São Paulo, Cortez Editora, 2018.
  5. Saberes e incertezas sobre o currículo. José Gimeno Sacristan (org.). Porto Alegra, Penso, 2013.
  6. Educar para o imponderável – Uma ética da aventura. Luís Carlos de Menezes, Cotia, São Paulo, Atelier Editorial, 2021.
  7. Os reformadores empresariais da educação. C. Freitas, Educação e Sociedade33(119), p379-404, Campinas, 2012.