Feuerbach – Tratado de Direito Penal

FEUERBACH. Paul Johann Anselm Ritter von. Tratado de derecho penal común vigente en Alemania. Trad. Eugenio Raúl Zaffaroni e Irma Hagemeier. Buenos Aires: Hammurabi, 2022.

O Tratado de Feuerbach contém a exposição do direito penal alemão imediatamente anterior à codificação, isto é, o direito penal comum alemão que tem por base legal a Constitutio Criminalis Carolina. O autor destinou esta obra principalmente à prática e ao ensino; por essa razão, o texto nem sempre reflete, como pontua Zaffaroni em ensaio preliminar ao Tratado, as ideias penais de Feuerbach: trata-se de sua exposição como jurista positivista. Em vista da amplitude do objeto da obra, este post terá como foco apenas as considerações de Feuerbach acerca da “função da pena”.

Como prolegômenos, Feuerbach define o direito criminal como a ciência dos direitos que tem o Estado, fundamentando-se em leis penais, perante seus súditos como possíveis infratores de referidas leis. A ciência do direito punitivo estaria integrada pelos princípios sobre a punição das ações antijurídicas em geral (Parte Geral ou Filosófica), bem como pelos direitos particulares do Estado que têm em vista a punição das ações antijurídicas específicas (Parte Especial).

Ao iniciar sua exposição da Parte Geral em seus primeiros princípios, Feuerbach já aponta para a necessidade de uma coação psicológica. De acordo com o autor, a união da vontade e da energia dos indivíduos proporciona o fundamento da sociedade civil para garantir a todos a liberdade recíproca. Um Estado é uma sociedade civil organizada constitucionalmente mediante a submissão a uma vontade comum. Esta forma de organização tem como objetivo a garantia da existência conjunta dos seres humanos em conformidade às leis. Logo, toda forma de lesão jurídica contradiz o objetivo do Estado, que é, precisamente, o de que, no âmbito do Estado, não haja lesão jurídica alguma. Portanto, o Estado deve estabelecer instituições que impeçam as lesões jurídicas.

Tais instituições, prossegue Feuerbach, devem ter natureza coativa. Primordialmente, deveria haver uma coerção física por parte do Estado, a qual impediria uma lesão jurídica ainda não consumada, ou obrigaria o infrator a reparar o dano decorrente de sua conduta. Entretanto, a coerção física é insuficiente para impedir as lesões jurídicas. Com efeito, a coerção prévia à lesão somente seria possível em situações em que haja pressupostos que permitam ao Estado reconhecer a certeza ou alta probabilidade de lesão. A coerção posterior, de seu turno, tem como limite a proteção de direitos irreparáveis. Assim, se é necessário que se impeçam as lesões jurídicas, então deverá existir outra coerção junto à física, que se antecipe à consumação da lesão jurídica e que, provindo do Estado, seja eficaz em cada caso particular, sem que requeira o prévio conhecimento da lesão. Uma coação desta natureza somente pode ser de índole psicológica.

Segundo Feuerbach, todas as contravenções têm sua causa psicológica na sensorialidade, na medida em que os desejos humanos impulsionam condutas. Este impulso pode ser cancelado, caso se saiba que, após a conduta, irremediavelmente, seguir-se-á um mal que será maior que o desgosto emergente da insatisfação do impulso ao fato. Para fundar a convicção geral acerca da vinculação necessária entre o mal e a infração, deve-se garantir: (I) que uma lei estabeleça tal relação como necessária consequência do fato (cominação legal). Ademais, (II) deve-se mostrar tal relação (isto é, entre o mal e a infração) na realidade, isto é, havendo a contravenção, deverá ser infligido o mal a que a ela se conecta (execução). A coação psicológica se configura, portanto, mediante a efetividade harmônica dos poderes legislativo e executivo no comum objetivo intimidatório.

A razão, dessa forma, da existência da pena é a necessidade de preservar a liberdade recíproca de todos mediante o cancelamento do impulso sensorial dirigido a lesões jurídicas. O objetivo da cominação legal da pena, portanto, é a intimidação de todos, como possíveis protagonistas de lesões jurídicas. O objetivo da aplicação da pena é o de dar fundamento efetivo à cominação legal, visto que sem a aplicação a cominação seria ineficaz.

Importante pontuar que, em razão do já exposto, a pena não tem por objeto nem por fundamento: (I) A prevenção contra futuras contravenções de um infrator em particular, porque isso não seria pena, já que não se vislumbra qualquer fundamento jurídico para uma semelhante antecipação sancionatória; (II) Nenhuma retribuição moral, porque esta pertence ao âmbito do ético e não à ordem jurídica; (III) Nenhum tipo de intimidação mediata de outro por meio dos sofrimentos infligidos ao infrator; (IV) Nenhum melhoramento moral, porque este seria objetivo da expiação, não da pena.

Feuerbach, respondendo às críticas de sua época de que seu sistema abriria a possibilidade de um terrorismo estatal (e, acrescentamos, esclarecendo o ponto III do parágrafo anterior) , esclarece que as penas cruéis operam justamente a antítese da intimidação. Seria uma questão de “sabedoria legislativa” determinar quais penas e quais formas de execução penal poderia, simultaneamente, atender não só às finalidades da sanção, mas também atentar-se para “outros fins humanos e civis”.

Sintetiza o autor: “toda pena jurídica dentro do Estado é a consequência jurídica, fundada na necessidade de preservar os direitos externos, de uma lesão jurídica e de uma lei que comine um mal sensível”. Daí, Feuerbach extrai importantes princípios: (I) Toda imposição de pena pressupõe uma lei penal (nulla poena sine lege); (II) A imposição de uma pena está condicionada à existência da conduta cominada (nulla poena sine crimine); (III) O fato legalmente cominado (o pressuposto legal) está condicionado pela pena legal (nullum crimen sine poena legali). Consequentemente, o mal, como consequência jurídica necessária, vincular-se-á mediante a lei a uma lesão jurídica determinada.

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