
Núcleo de Estudos em Tribunais Internacionais
Faculdade de Direito
Universidade de São Paulo
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01006-020
Em decisão paradigmática, a Corte Europeia de Direitos Humanos condenou, em 9 de abril de 2024, a Suíça pela ausência de medidas que buscassem mitigar os efeitos das mudanças climáticas. A decisão reconheceu violações à Convenção Europeia de Direitos Humanos, especificamente, das obrigações previstas em seu art. 8, que discorre sobre ingerência estatal no respeito à vida privada; e, em seu art. 6, sobre o direito a um processo equitativo. Este julgamento é de notória relevância por ser pioneiro na responsabilização internacional estatal perante a questão climática.
O caso teve como principal requerente o grupo Verein KlimaSeniorinnen Schweiz (“Associação de Idosas pelo Clima da Suíça”, em tradução livre), uma organização não-governamental da Suíça composta por mais de 2 mil senhoras suíças, todas mulheres, com faixa etária média de 73 anos. Destas, aproximadamente 650 associadas possuem mais de 75 anos, como descrito no §10. A associação recorreu à Corte Europeia de Direitos Humanos após esgotar todas as vias processuais de jurisdição nacional suíça. A representação denunciou a violação do acesso à justiça, ao passo em que todas as ações e recursos judiciais em jurisdição doméstica teriam sido rejeitados sob fundamentos arbitrários. Com fundamento nas conclusões publicadas Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), no §58, argumentou-se que as autoridades suíças estavam cientes dos riscos climáticos, e que, ainda assim, furtaram-se a adotar as medidas cientificamente afirmadas como necessárias no combate às mudanças climáticas. Em razão disso, a associação reivindicou o reconhecimento expresso de que o Estado suíço falhou em suas obrigações positivas de combate às mudanças climáticas, bem como, a adoção de medidas concretas para a redução das emissões de gases de efeito estufa, em conformidade com os compromissos internacionais assumidos pelo Estado Suíço.
A Suíça contestou a representação, como exposto entre §83 e §102 do conteúdo da referida ação. Inicialmente, o país alegou questões procedimentais preliminares de incompetência da Corte para conhecer e decidir sobre obrigações de autoridades nacionais em matéria climática. Neste mesmo sentido, afirmou-se a existência de uma margem de apreciação estatal em matérias complexas como mudanças climáticas, que deve equacionar circunstâncias técnicas, sociais, interesses conflitantes, restrições de direitos fundamentais, escolhas operacionais, definição de prioridades, alocação de recursos, entre outros, que representam prerrogativas do Governo e Parlamento suíços na busca das soluções mais apropriadas. O Estado Suíço também alegou que, desde o início da década passada, adotou uma série de normas legais e políticas públicas com foco em mitigação e adaptação aos impactos das mudanças climáticas, que resultaram na redução das emissões de gases-estufa do país já em 2020; e, que os compromissos assumidos por meio das NDCs submetidas implicariam em reduções ainda maiores, em integral cumprimento pelo país das obrigações previstas no regime climático internacional. Aduziu-se ainda, no §91, que as emissões per capita da Suíça contribuíram com aproximadamente 0,1% das emissões globais.
Partindo-se desse panorama, o ponto fulcral reside no ineditismo de um julgado reconhecer expressamente a obrigação estatal em mitigar os efeitos das mudanças climáticas dentro do Direito Internacional. Acrescido a isso, trata-se de uma decisão histórica também por evidenciar os efeitos particulares de emergência climática em grupos específicos. No caso em tela, eram alegados os efeitos de condições climáticas extremas especialmente pela vulnerabilidade vivenciada pelas denunciantes. A faixa-etária maior que 70 anos e o gênero indicariam uma maior suscetibilidade aos impactos relatados, sendo adotado um viés interseccional, ao considerar uma lente analítica (Akotirene, 2019) que visibiliza a colisão entre esses dois marcadores.
A Agenda 2030, dentro dos seus Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), já havia demonstrado preocupação em considerar a interseccionalidade (CIDH, 2024) com grupos vulnerabilizados em relação à construção de políticas públicas perante a questão climática. Dentro da meta 13.b, a Agenda 2030 descreve que é preciso a formulação de mecanismos voltados para “[…] mulheres, jovens, comunidades locais e marginalizadas […]” (ONU, 2015) – enfatizando que existem grupos com menor resiliência perante as adversidades provenientes das mudanças de temperatura e do aquecimento global.
A importância de observar o impacto das mudanças climáticas em populações vulneráveis foi recentemente submetida à apreciação da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), especificamente, em seu Parecer Consultivo n. 32/2023, em que se questionou “[…] quais medidas diferenciadas devem ser adotadas em relação a populações em situação de vulnerabilidade ou considerações interseccionais?” (CIDH, 2023). Essa pergunta compõe o requerimento submetido conjuntamente pelas Repúblicas do Chile e Colômbia, cujo objetivo principal é esclarecer as responsabilidades dos Estados em responder à emergência climática, diante de suas obrigações já firmadas no âmbito do Direito Internacional e dos Direitos Humanos.
O NETI contribuiu com a discussão ao atuar como Amicus Curiae no referido processo consultivo. Sua manifestação escrita destaca que mulheres, idosos, comunidades indígenas, populações mais pobres estão entre as parcelas mais afetadas pelos danos e, por isso, devem ser o público-alvo de medidas próprias dentro da esfera climática. Essas ações devem ser tanto de natureza preventiva como posterior aos episódios que provocaram danos. O que deve ser colocado como premissa é a necessidade de existir uma política pública direcionada e com diálogo para aqueles que podem ser ou foram atingidos por questões dessa ordem (CIDH, 2024). Destaca-se, por exemplo, no caso dos Povos Indígenas, como em Comunidade Indígena Maya Q’eqchi’ Agua Caliente vs. Guatemala e Caso Comunidad Garífuna de San Juan e seus membros vs. Honduras a importância do princípio da prévia consulta, que tem sido considerado, no âmbito do Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH), como um relevante instrumento de proteção dessa população perante o avanço de interesses econômicos.
Na jurisdição brasileira, ressalta-se a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal no bojo da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n. 708, que reconheceu a existência do direito da segurança climática. Trata-se de um avanço a fim de possibilitar que sejam reivindicadas ações estatais perante os riscos que a população vêm sendo posta em consequência das mudanças climáticas. A matéria também é objeto de uma proposta de emenda constitucional, sob n. 37/2021, atualmente em trâmite no Congresso Nacional, que busca incluir no rol de direitos e garantias fundamentais o direito à segurança climática.
Em síntese, ao condenar a Suíça (a partir de §590), a decisão da Corte Europeia enfatizou que houve lacunas perante a existência de medidas internas para regulamentar a questão climática, bem como não foram cumpridas metas importantes, a exemplo da que busca a redução de emissões de gases do efeito estufa. Sendo assim, o referido tribunal estabeleceu a relação entre a conduta estatal e a saúde da parcela populacional do grupo vulnerável que formulou a representação diante da Corte Europeia. A importância dessa decisão reside em observar a responsabilização de um país tendo como objeto as mudanças climáticas que, nos próximos anos, terá uma centralidade na litigância internacional.
No entanto, a sentença proferida não está isenta de críticas. Apesar de reconhecer que há insuficiência das políticas públicas adotadas e a consequente violação de direitos humanos, a Corte Europeia deixou de apontar quais medidas seriam cabíveis para o devido cumprimento das obrigações internacionais no combate às mudanças climáticas, acordando ao Estado suíço uma margem de apreciação na escolha de decisões. Essa questão coloca em dúvida a eficácia do litígio climático em Cortes internacionais enquanto instrumento jurídico idôneo para o resguardo de direitos humanos no combate às mudanças climáticas.
Estas circunstâncias não podem ser ignoradas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos seu parecer consultivo sobre emergência climática. A função consultiva exercida pela Corte apresenta natureza ampla, única no direito internacional contemporâneo, cujo escopo tem o condão de determinar os princípios e obrigações a serem observados em direito internacional dos direitos humanos pelos Estados do Sistema Interamericano. O nível de especificidade e profundidade da manifestação da Corte, neste sentido, será fundamental para determinar as obrigações dos Estados de proteção dos direitos humanos no contexto atual de mudanças climáticas. Este posicionamento será importante para a eficácia dos arranjos jurídicos regionais e internacionais, tanto em matéria de direitos humanos como de mudanças climáticas.
Referências Bibliográficas
AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. São Paulo: Polém, 2019.
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COHEN, Miriam; LANOVOY, Vladyslav; MARTINI, Camille; ROCHA, Armando; TIGRE, Maria Antonia; XAVIER, Eneas. Reparation for Climate Change at the ECtHR: A Missed Opportunity or the First of Many Decisions to Come? VerfBlog, 10 de maio de 2024. Disponível em: https://doi.org/10.59704/3fe6fe45d83b4da7.. Acesso em: 19 set 2024.
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