Caso Tavares Pereira e outros vs. Brasil: o direito de manifestação no contexto da luta pelo direito à terra

Corte Interamericana de Direitos Humanos. Fonte: https://www.corteidh.or.cr/historia.cfm?lang=es

No último dia 14 de março, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) divulgou a sentença do Caso Tavares Pereira e outros vs. Brasil, que declarou a responsabilidade internacional do Estado brasileiro pela violação dos direitos à vida (art. 4º), à integridade pessoal (art. 5.1), à liberdade de pensamento e de expressão (art. 13), de reunião (art. 15), da infância (art. 19) e de liberdade de circulação (art. 22), em relação ao artigo 1.1 (obrigação de respeitar os direitos), todos da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH), e dos direitos às garantias judiciais (art. 8.1) e à proteção judicial (art. 25), quanto aos artigos 1.1 e 2 (dever de adotar disposições do direito interno), do mesmo instrumento.

Trata-se do quarto caso brasileiro julgado pela Corte IDH sobre a luta pelo direito à terra e o terceiro envolvendo integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Em 2009, no julgamento do caso Sétimo Garibaldi, a Corte declarou a responsabilidade internacional do Estado pela violação dos direitos às garantias judiciais e à proteção judicial em prejuízo dos familiares do Sr. Sétimo Garibaldi, trabalhador rural que morreu após ser baleado por pistoleiros na cidade de Querência do Norte, estado do Paraná, durante operação extrajudicial de despejo de famílias de trabalhadores rurais, que haviam ocupado naquele mês uma fazenda na região (Corte IDH, 2009).

No mesmo ano, o Brasil foi condenado no Caso Escher e outros (Corte IDH, 2009a), em razão da prática de interceptação e monitoramento telefônicos ilegais, praticadas entre maio e junho de 1999, em face de trabalhadores rurais ligados ao referido Movimento, também no Paraná. O Estado foi condenado por ter violado o direito à vida privada, à honra e à reputação, reconhecidos no artigo 11, e o direito à liberdade de associação (art. 16), todos em relação com o artigo 1.1 da Convenção Americana. Em 2022, o caso Sales Pimenta tratou da morte do advogado e ativista pelo direito à terra Gabriel Sales Pimenta e considerou a responsabilidade estatal na sua obrigação de investigar, processar e punir os responsáveis pela sua morte em um contexto de impunidade estrutural em crimes contra trabalhadores rurais e seus defensores (Corte IDH, 2022).

No caso Tavares Pereira e outros, a Corte IDH examinou os fatos referentes à morte do trabalhador rural Antônio Tavares Pereira e as lesões sofridas por 184 integrantes do MST, ocorridas em 2 de maio de 2000, durante ação da Polícia Militar, na Marcha da Reforma Agrária, realizada em Curitiba, Paraná. O caso foi apresentado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) em 1º de janeiro de 2004 pelo MST, a Comissão Pastoral da Terra (CPT), a Justiça Global e a Tierra de Derechos, e, após 17 anos de tramitação[1], foi submetido à Corte em 6 de fevereiro de 2021.

De acordo com o marco fático estabelecido na sentença, a Polícia Militar interceptou alguns ônibus nos quais estavam trabalhadores rurais, incluindo crianças, e os impediu de prosseguir a viagem para Curitiba, sob a justificativa de que havia decisão judicial proibindo a entrada dos manifestantes na cidade portando armas. No entanto, a referida decisão apenas autorizava a Polícia a impedir a invasão dos edifícios públicos e atos que pudessem causar danos ao patrimônio público. Durante a revista dos passageiros, a Polícia apreendeu itens como foices, facões, enxadas, revólver, pedaços de madeira, facas, bandeiras, dinheiro e documentos pessoais (parágrafo 65 da sentença).

No momento em que Antônio Tavares Pereira e outros trabalhadores desceram dos ônibus que estavam sendo escoltados, – apesar do aviso da polícia de assim não procederem – ,  foram atacados por “bombas de gás lacrimogêneo, balas de borracha, cães, cassetetes, força física e armas de fogo” (parágrafo 67) (2024). Antônio Tavares Pereira morreu e ao menos outras 69 pessoas ficaram feridas (parágrafo 70).

As investigações do caso, no âmbito militar, foram arquivadas, sob o fundamento de que o policial agiu no estrito cumprimento do dever legal, em legítima defesa própria e de terceiros, e em estado de necessidade (parágrafo 73).

Paralelamente à jurisdição militar, a morte do Sr. Tavares Pereira foi objeto de investigação policial na justiça penal comum, para a qual foi apresentada denúncia contra o policial militar por homicídio doloso. No entanto, foi acolhido o pedido de  arquivamento do processo penal.

No âmbito da reparação civil, a viúva e os filhos do Sr. Antônio Tavares tiveram sua ação de indenização por danos morais e materiais julgada procedente, reconhecendo a responsabilidade civil objetiva do Estado e rechaçando a tese de legítima defesa. Todavia, apesar do recebimento de pensão especial, não houve cumprimento integral da sentença, estando pendente o pagamento das indenizações (parágrafos 76 a 80).

Dentre os principais pontos analisados pela Corte Interamericana chamou à atenção o destaque ao contexto brasileiro de “desafios relacionados à desigualdade na distribuição da terra, à alta concentração da propriedade nas mãos de poucos e à persistência de obstáculos no acesso à terra para grande parte da população rural.” (Corte IDH, 2024, parágrafo 59). Como consequência, para a Corte, a mobilização pela reforma agrária tem, historicamente, levado à violência no campo em diversos estados do país e a conflitos durante as manifestações de trabalhadores rurais pelo direito à terra. Especificamente sobre o direito de manifestação, a Corte ressaltou que esses manifestantes estão em situação de peculiar vulnerabilidade, pois são oriundos de zonas rurais remotas e com poucos recursos financeiros, tendo o uso desproporcional das forças de segurança pública um efeito inibitório (chilling effect) (Corte IDH, 2024, parágrafo 96), prática rechaçada inúmeras vezes pela Corte ao tratar sobre o tema (Bucci, 2018).

Ao reconhecer as obrigações do Estado em permitir e facilitar a realização de manifestações pacíficas, a Corte também afirmou que, a imposição de restrições deve ser por meio de lei, possuir um fim legítimo e cumprir os requisitos de necessidade e de proporcionalidade (parágrafo 99).

À luz das normas interamericanas sobre o uso da força letal em protestos sociais, a Corte IDH recordou que é absolutamente proibido o uso indiscriminado de armas de fogo contra manifestantes ou com a finalidade de dispersá-los. Quanto ao uso de armas de fogo, trata-se de medida de ultima ratio, que deve ser evitada, especialmente, em locais onde a integridade pessoal de meninas e meninos possa ser ameaçada, encontrando-se justificativa para o seu uso apenas diante da ameaça iminente de morte ou de ferimentos graves, tendo sido esgotados todos os meios menos nocivos disponíveis. Além disso, assinalou que as armas de fogo não são instrumentos adequados para monitorizar reuniões pacíficas, pois podem causar sérios danos à integridade e à vida das pessoas (parágrafo 116).

Esses parâmetros foram aplicados pela Corte a partir de três momentos distintos considerando o uso da força e as diferentes circunstâncias e consequências nas condutas do Estado para restringir os direitos de reunião, de circulação, de liberdade de pensamento e de expressão, e o uso da força em relação a cada um desses momentos: i) 1º momento: quando a polícia militar impediu os trabalhadores de ingressar em Curitiba (parágrafos 106 a 114); ii) 2º momento: o uso da força que resultou na morte de Antônio Tavares Pereira (parágrafos 115 a 118) e iii) 3º momento: o uso da força contra os demais trabalhadores que participavam da marcha pela reforma agrária (parágrafos 119 a 125). A Corte concluiu que o Estado utilizou a força de forma desproporcional e descumpriu sua obrigação de proteger a integridade física e psíquica de pelo menos 69 pessoas, incluindo seis crianças, bem como deixou de proteger a integridade psíquica de 128 pessoas, violando o direito à integridade pessoal e os direitos da criança, previstos na Convenção Americana (parágrafo 129).

A Corte estabeleceu reparações, consistentes na obrigação de investigar, medidas de reabilitação, medidas de satisfação e garantias de não repetição (parágrafo 246 – pontos resolutivos). Sendo assim, determinou-se ao Estado brasileiro, notadamente: 1) prestar gratuitamente, de forma oportuna, adequada e eficaz, tratamento médico, psicológico e/ou psiquiátrico aos familiares do Sr. Tavares Pereira e de outras vítimas que assim o exijam (ponto resolutivo 8); 2) publicação da sentença (ponto resolutivo 9); 3) realização de ato público de reconhecimento de responsabilidade internacional do Estado (ponto resolutivo 10); 4) adoção de medidas apropriadas para proteger eficazmente o Monumento Antônio Tavares Pereira[2] (ponto resolutivo 11); 5) inclusão de conteúdos específicos nos currículos de formação permanente das forças de segurança que atuam no contexto de manifestações públicas no estado do Paraná para (i) sensibilizar os seus membros sobre o dever absoluto de respeitar e proteger a população civil no exercício de sua função pública, especialmente quando estão presentes meninas, meninos e adolescentes, e (ii) capacitar os policiais sobre as normas relativas ao uso da força em contextos de protesto social estabelecidas na sentença e na jurisprudência da Corte (ponto resolutivo 12); 6) adequação do ordenamento jurídico brasileiro no que diz respeito à competência da Justiça Militar aos princípios estabelecidos na jurisprudência da Corte IDH (ponto resolutivo 13); 7) pagamento dos valores a título de indenização por danos materiais e imateriais e para reembolso de custas e despesas (ponto resolutivo 14); 8) apresentação à Corte, no prazo de um ano, de um relatório sobre as medidas adotadas para cumpri-la (ponto resolutivo 15).

A sentença destaca-se pelo reconhecimento dos direitos à liberdade de pensamento e de expressão, de reunião e de livre circulação, na perspectiva da  persistente violência e intimidação contra defensoras e defensores de direitos humanos no continente americano e, no Brasil, especialmente. Em 2023, a CIDH registrou que a violência contra pessoas defensoras se manteve em números alarmantes, com ao menos 33 assassinatos em países da região, número superior ao ano de 2022 (27), sendo que a maioria segue sendo contra pessoas defensoras do meio ambiente, da terra e do território (CIDH, 2023).

No caso do Brasil, o levantamento das organizações Terra de Direitos e Justiça Global, intitulado “Na Linha de Frente: violência contra defensoras e defensores de direitos humanos no Brasil” (Terra de Direitos, 2023) mostrou que, de 2019 a 2022, o país registrou 1.171 casos de violência contra defensores de direitos humanos, com 169 pessoas assassinadas, cuja maioria dos conflitos é territorial e ambiental, colocando o país entre os mais perigosos do mundo para quem defende os direitos humanos.

Apesar dos avanços no estabelecimento de standards interamericanos para proteção do direito de manifestação dos cidadãos e de obrigações positivas para o Estado, de outro lado, a Corte IDH perdeu a oportunidade de contribuir ainda mais com o debate sobre a concretização dos direitos à terra e à propriedade no Brasil. Quanto ao tema, a Corte afirmou que as alegadas violações aos mencionados direitos “não estão vinculados aos fatos específicos constantes do Relatório de Mérito” (2024, p. 13, parágrafo 39) e que, portanto, não seriam objeto de apreciação pelo Tribunal. Todavia, em uma realidade de violação sistemática de direitos, o exercício do direito à liberdade de expressão, em sua perspectiva de livre manifestação para reivindicar direitos, parece estar intrincado com o combate às suas causas geradoras, no caso, a desigualdade no acesso à terra e a condições dignas de vida para os trabalhadores.

De fato, os dados sobre conflitos fundiários e violência no campo no Brasil nas últimas duas décadas (CPT, 2022; OXFAM, 2016) indicam a permanente conflitualidade que constitui a história brasileira e tem a sua origem no desigual acesso à terra, conforme apontado pela Corte IDH (2022), Relatorias das Nações Unidas (2016; 2021) e organizações (Terra de Direitos, 2023).

Nesse cenário, as desigualdades da sociedade brasileira mostram-se como constitutivas da formação da sociedade e do Estado, criadas a partir de escolhas políticas deliberadas e que estabelece uma realidade de discriminação estrutural, como identificado pela Corte IDH no caso Fazenda Brasil Verde (2016, parágrafo 335), ao estabelecer que a “posição econômica” da pessoa é uma das causas de discriminação proibidas pelo art. 1.1 da CADH. No referido julgamento, estabeleceu-se que toda pessoa que se encontre em uma situação de vulnerabilidade é titular de uma proteção especial, “em razão dos deveres especiais cujo cumprimento por parte do Estado é necessário para satisfazer as obrigações gerais de respeito e garantia dos direitos humanos” (2016, parágrafo 337). Portanto, não basta ao Estado o dever de se abster de violar direitos, mas é imperativa a adoção de ações afirmativas ou positivas para superar a situação que permite a violação dos direitos humanos.

Nesse sentido, a redução das desigualdades e a concretização do desenvolvimento sustentável exigem a efetividade dos direitos individuais e coletivos referentes ao acesso à terra e à propriedade, com a implantação de reformas e políticas públicas. Espera-se da Corte Interamericana a sua contribuição “para superar os atuais níveis de exclusão e desigualdade” da América e o reconhecimento do seu papel político “colocando em foco padrões estruturais que afetam o exercício efetivo dos direitos pelos grupos subordinados da população” (Abramovich, 2009), atuação esta que demanda decisões de caráter estrutural, como já tem se visto em sua prática jurisprudencial.

Nesse aspecto, é relevante ressaltar medidas determinadas em casos de sistemáticas violações de direitos humanos, como o dos Empregados da Fábrica de Fogos de Santo Antônio de Jesus e seus familiares vs. Brasil (2020), no qual a Corte impôs ao Estado a elaboração e a execução de um programa de desenvolvimento socioeconômico com o objetivo de promover a inserção de trabalhadores e a criação de outras alternativas econômicas (parágrafo 318, ponto resolutivo 18); e o caso Nuestra Tierra vs. Argentina (2020a), que, além de se reconhecer a justiciabilidade do direito à água potável, à alimentação e ao meio ambiente saudável, estabeleceu-se a obrigação estatal de garantia do mínimo essencial desses direitos com a apresentação de estudos e implementação de planos de ação para possibilitar o seu pleno gozo (parágrafo 370, ponto resolutivo 11).

Assim, respeitando sua função subsidiária na proteção de direitos, a atuação da Corte Interamericana – bem como da CIDH – trouxe com essa decisão importantes contribuições com potenciais efeitos transformadores para a região, reforçando a importância da proteção de direitos para o fortalecimento da democracia, e contribuindo para a leitura internacionalista dos direitos humanos, cumprindo seu papel de compor o ius constitutionale commune latino-americano, notadamente no que diz respeito à liberdade de expressão e grupos vulneráveis.


 

[1] A longa tramitação na CIDH foi vista “com preocupação” pela Corte IDH (parágrafo 3) (Corte IDH, 2024, p. 5).

[2] Durante a tramitação do caso na Corte, foram concedidas medidas provisórias para proteger a integridade do Monumento Antônio Tavares Pereira, construído às margens da rodovia BR 277, no km 108, no município de Campo Largo, Paraná, tendo em vista o seu significado para a memória de Antônio Tavares Pereira e as supostas vítimas do caso. (Resolução da Corte Interamericana de Direitos Humanos de 24 de junho de 2021).

 

Referências

BUCCI, Daniela. Direito Eleitoral e Liberdade de Expressão: Limites Materiais. São Paulo: Editora Almedina, 2018.