ANTÍGUA E BARBUDA

ANTÍGUA E BARBUDA

Por Rafael Affonso de Miranda Alonso

Nome oficial Antigua and Barbuda
Localização Caribe
Estado Monarquia constitucional tendo como chefe
de Estado a rainha da Inglaterra, com sistema parlamentarista de governo
Idiomas Inglês (oficial) e crioulo antiguano
Moeda Dólar do Caribe oriental
Capital¹ Saint John’s 
(22 mil hab. em 2014)
Superfície¹ 442,6 km²
População² 87,2 mil (2010)
Densidade demográfica² 197 hab./km² (2010)
Distribuição 
da população³
Urbana (26,24%), 
rural (73,76%) (2010)
Analfabetismo  18% (2000)
Composição étnica¹ Negros (87,3%), mestiços (4,7%),
hispânicos (2,7%), brancos (1,6%), outros (2,7%), não especificada (0,9%) (2011)
Religiões¹ Protestantes (68,3%), católico romana (8,2%), outras (12,2%), não especificada (5,5%),
nenhuma (5,9%) (2011)
PIB (a preços constantes de 2010)⁴ US$ 1,159 bilhão (2013)
PIB per capita (a preços constantes de 2010)⁴ US$ 12.881 (2013)
IDH⁵ 0,774 (2013)
IDH no mundo  e na AL⁵ 61° e 7°
Eleições¹ Governo-geral nomeado pela rainha da Inglaterra. O Parlamento bicameral, no estilo britânico, está integrado por 17 membros designados pelo governador-geral e 17 membros eleitos pelo sufrágio universal (Câmara dos Deputados), para um mandato de 5 anos.

Fontes:
¹ Cia. World Factbook.
² ONU. World Population Prospects: The 2012 Revision Population Database.
³ ONU. World Urbanization Prospects: The 2014 Revision
⁴ CEPALSTAT
⁵ ONU/PNUD. Human Development Report, 2014.

As ilhas de Antígua e Barbuda estão situadas no oceano Atlântico Norte ao lado do mar do Caribe e pertencem às Pequenas Antilhas. Com área total de 442,6 km², a nação é formada pela ilha de Antígua (280 km²) e suas duas dependências Barbuda (160 km²) e Redonda (2 km²). Seus vizinhos mais próximos são as Antilhas Holandesas a noroeste, São Cristóvão e Névis a oeste, Montserrat a sudoeste e Guadalupe ao sul. A população do país é estimada em cerca de 87,2 mil pessoas (2010), das quais 22 mil concentram-se na capital Saint John’s. Quase 90% da população é afrodescendente, e as principais minorias são de mestiços, brancos, indianos e ameríndios. O idioma oficial do país é o inglês.

Colonização

Antígua, a principal ilha que forma a nação – já habitada pelos povos indígenas siboney (2400 a.C. – 35 d.C.), aruaques (35 – 1100 d.C.) e caribes – foi assim chamada pelo navegador Cristóvão Colombo. Ele a avistou durante sua segunda viagem, em 1493, e escolheu o nome em homenagem à igreja Santa Maria de la Antígua de Sevilha, na Espanha.

Apenas em 1632, colonizadores britânicos oriundos da vizinha Saint Kitts reivindicaram a posse desses territórios para a Coroa britânica. O protagonista desse primeiro impulso por uma colonização sistemática das ilhas foi Thomas Warner.

O primeiro produto a ser cultivado com fins comerciais foi o tabaco, substituído progressivamente pela cana-de-açúcar a partir da metade do século XVII. O principal responsável pela introdução do açúcar foi Christopher Codrington, que chegou ao local em 1684, em busca de novas terras para repetir o empreendimento açucareiro, que já se mostrara exitoso e muito lucrativo em outros pontos da região. Profundo conhecedor das novas técnicas de produção, Codrington trouxe essas inovações baseado no que ocorria em Barbados, a mais antiga e lucrativa colônia açucareira britânica.

A produção de açúcar atingiu seu ápice em meados do século XVIII. A paisagem das ilhas foi tomada por plantações e moinhos de vento que serviam para processar a cana – muitos ainda existem e têm sido restaurados para fins turísticos. Como em todo o Caribe, ao longo desses anos, as ilhas também receberam milhares de escravos africanos para trabalhar nas grandes plantações.

Antígua também ganhou relevância no quadro colonial britânico no Caribe graças à sua localização estratégica. Era considerada “portão de entrada” para a região e essencial para o controle das rotas de comércio da área; essa importância é testemunhada pelas fortificações erguidas em diversos pontos, algumas das quais existem até os dias atuais, em English Harbour Town, no sul da ilha.

Em 1834, a Coroa britânica aboliu a   escravidão em todas as suas colônias e estipulou um prazo de quatro anos de transição ou “aprendizado”, como foi chamado à época.

Vista proporcionada pela colina de Shirley’s Heights (Andrew Moore/Creative Commons)

Em Antígua, a abolição foi decretada imediatamente, sendo um dos territórios pioneiros, portanto, a colocar em prática o decreto da Coroa. No entanto, a condição de vida dos trabalhadores africanos e seus descendentes não se alterou substancialmente. Por muitos anos, ainda permaneceram vinculados a outras formas de dependência em relação aos seus patrões, os grandes plantadores de cana-de-açúcar. De 1871 até 1956, os territórios de Antígua e Barbuda foram governados pela Federação das Ilhas Sotavento e, de 1958 a 1962, pela Federação das Índias Ocidentais.

 

Governabilidade

O centro comercial da capital St. John’s (Wolfgang Meinhart/Wikimedia Commons)

O Partido Trabalhista de Antígua (PTA), o primeiro do país, surgiu como desdobramento da organização sindical dos trabalhadores (ATLU – Antigua Trades and Labor Union), iniciada em 1940. O principal líder era Vere Cornwall Bird, fundador da associação sindical e do PTA, em 1946. No começo, formalmente subordinado ao sindicato, o partido aos poucos ganhou autonomia. O sufrágio universal adulto foi introduzido em 1951.

Em 1958, as ilhas passaram a fazer parte da Federação das Índias Ocidentais, criada pela Grã-Bretanha. Dois anos mais tarde, uma nova Constituição concedeu mais autonomia ao governo local e, nas eleições do mesmo ano, o PTA saiu vitorioso. Bird tornou-se primeiro-ministro em 1966. Antígua veio a ser o primeiro Estado do Caribe oriental a ganhar a condição de Estado associado à comunidade britânica, em 1967, condição que lhe deu o direito ao autogoverno interno e à eleição de um Parlamento por meio do voto da população autóctone. As ilhas tornaram-se membros da British Commonwealth, ficando a cargo dos britânicos a direção da política externa e a defesa do país.

O governo local mudou de mãos apenas em 1971, quando o Partido Trabalhista Progressista (PLM – sigla em inglês), liderado por George Walter, conseguiu derrotar pela primeira vez o PTA, ocupante do poder desde 1946. Cinco anos mais tarde, Bird retornou ao governo e iniciou as negociações com a metrópole britânica para a independência do país.

Políticos de oposição temiam que, com o fim dos laços que uniam as ilhas à Coroa britânica, a figura de Bird se tornasse ainda mais poderosa e autoritária.

A independência foi conquistada em 1° de novembro de 1981, e Vere Bird, confirmando as expectativas da oposição, manteve-se no poder até 1994, quando abandonou a vida pública. O governo passou para Lester Bird, filho do ex-primeiro-ministro.

A dinastia Bird seguiu inabalável no comando do país até 2004, sob acusações de corrupção e abuso de autoridade levantadas, obstinadamente, pela oposição. Em 1999, o país foi acusado pelo Departamento de Estado dos Estados Unidos de ser um dos principais centros de lavagem de dinheiro do Caribe. Nesse mesmo ano, Vere Bird faleceu.

Em março de 2004, Baldwin Spencer e o seu Partido Progressista Unido (UPP– sigla em inglês), saíram vitoriosos nas eleições nacionais, encerrando cerca de sessenta anos de domínio da dinastia Bird. Também de origem operária, o novo primeiro-ministro prometeu lutar contra a corrupção e os “crimes cometidos contra o povo” durante os governos de seus predecessores. Em outubro do mesmo ano, o Parlamento aprovou uma lei anticorrupção que previa multas e prisão aos ministros e funcionários envolvidos em corrupção. Em junho de 2014, Gaston Browne, do Partido Trabalhista de Antígua (PTA), sucedeu Spencer no cargo de primeiro-ministro.

Política externa e economia

A política externa de Bird sempre foi marcada por uma adesão entusiasmada à visão defendida pelos Estados Unidos na região. O líder radical da juventude passou, com o tempo, a defender abertamente posições identificadas com a direita. Isso incluía a aceitação integral da doutrina Reagan e seu corolário de combate aos governos ou às organizações políticas esquerdistas em toda a América Central e no Caribe.

Essa relação tornou-se ainda mais estreita depois do arrendamento de uma porção do território de Antígua aos Estados Unidos, para fins militares e propagandísticos. Nesse local, instalaram-se as antenas que transmitem para toda a região a “Voz da América”, veículo de propaganda do Departamento de Estado dos EUA.

economia do país seguiu a regra da maior parte das outras nações caribenhas, submetida à dependência de um produto agrícola até a década de 1960 – no caso de Antígua, a cana-de-açúcar. A década seguinte marcou o declínio final das grandes culturas de cana. Iniciativas para recuperar a indústria açucareira no início dos anos 1980 acabaram interrompidas, em 1985, por inviabilidade financeira.

A dependência em relação a cana-de-açúcar foi substituída pela indústria do turismo, que responde por cerca de 60% do Produto Interno Bruto (PIB) do país. Essa nova dependência torna o país extremamente sensível a mudanças no quadro da economia mundial e a catástrofes naturais, como os furacões, que constantemente assolam a região.

A agricultura representa apenas 12% das riquezas produzidas pelo país, o que o obriga a importar alimentos, principalmente para satisfazer as sofisticadas exigências da indústria do turismo. Antígua tem procurado diversificar suas fontes de renda como centro de serviços financeiros offshore, atraindo investidores estrangeiros. Outras iniciativas visam estimular as atividades de cassinos virtuais (internet) e do ramo de transportes e comunicações.

Indicadores socioeconômicos de Antígua e Barbuda

1950 1960 1970 1980 1990 2000 2010 2020*
População 
(em mil habitantes)
46 55 65 70 62 78 87 96
Densidade demográfica
(hab./km²)
105 124 148 159 140 176 197
Matrículas no 
ciclo primário¹
9.668 13.025 11.254
População urbana (%)² 30,07 39,66 33,82 34,62 35,43 32,13 26,24 22,21
População rural (%)² 69,94 60,34 66,18 65,38 64,57 67,87 73,76 77,79
Participação na população
latino-americana (%)**
0,03 0,02 0,02 0,02 0,01 0,01 0,01 0,01
Participação na 
população mundial (%)
0,002 0,002 0,002 0,002 0,001 0,001 0,001 0,001
PIB (em milhões de US$ a
preços constantes de 2010)
695,6 949,4 1.135,5
Participação no PIB
 latino-americano (%)
0,026 0,027 0,023
PIB per capita (em US$ a
preços constantes de 2010)
11.236,3 12.227,0 13.017,3
Exportações anuais 
(em milhões de US$)
59,5 33,4 76,8 45,7
Importações anuais 
(em milhões de US$)
114,7 235,4 342,4 453,9
Exportaçõe-importações 
(em milhões de US$)
-55,2 -202,0 -265,6 -408,2
Índice de Desenvolvimento
Humano (IDH)³
0,778

Fontes: CEPALSTAT | ONU. World Population Prospects: The 2012 Revision Population Database.
¹UNESCO Institute for Statistcs. ² Dados sobre a população urbana e rural retirados de ONU.World Urbanization Prospects, the 2014 Revision. ³ UNDP. Countries Profiles.
* Projeções. | ** Inclui o Caribe.

Obs.: Informações sobre fontes primárias e metodologia de apuração (incluindo eventuais mudanças) são encontradas na base de dado indicadas. 

MAPAS

,

 

 

 

Bibliografia

  • HEFFINGTON, Douglas. Antiguan sugar mills: an adaptive use of relic geography. Focus. v. 43. n. 3. 1993.
  • WHEATCROFT, Geoffrey. Oh, to be in Antigua: this Caribbean island makes an englishman feel right at home. The Atlantic Monthly. v. 274. n. 4. Oct. 1994.

 

ABYA YALA

ABYA YALA

Por Carlos Walter Porto-Gonçalves

 

Abya Yala na língua do povo Kuna significa “Terra madura”, “Terra Viva” ou “Terra em
florescimento” e é sinônimo de América. O povo Kuna é originário da Serra Nevada no
norte da Colômbia tendo habitado a região do Golfo de Urabá e das montanhas de
Darien e vive atualmente na costa caribenha do Panamá na Comarca de Kuna Yala
(San Blas).

Abya Yala vem sendo usado como uma autodesignação dos povos originários do
continente como contraponto a América expressão que, embora usada pela primeira
vez em 1507 pelo cosmólogo Martin Wakdseemüller, só se consagra a partir de finais
do século XVIII e inícios do século XIX por meio das elites crioulas para se afirmarem
em contraponto aos conquistadores europeus no bojo do processo de independência.
Muito embora os diferentes povos originários que habitam o continente atribuíssem
nomes próprios às regiões que ocupavam – Tawantinsuyu, Anauhuac, Pindorama – a
expressão Abya Yala vem sendo cada vez mais usada pelos povos originários do
continente objetivando construir um sentimento de unidade e pertencimento.

Embora alguns intelectuais, como o sociólogo catalão-boliviano Xavier Albó, já
houvessem utilizado a expressão Abya Yala como contraponto à designação
consagrada de América, a primeira vez que a expressão foi explicitamente usada com
esse sentido político foi na II Cumbre Continental de los Pueblos y Nacionalidades
Indígenas de Abya Yala realizada em Quito, em 2004. Note-se que na I
Cumbre, realizada no México no ano 2000, a expressão Abya Yala ainda não fora
invocada como se pode ler na Declaracion de Teotihuacan quando se apresentam
como “los Pueblos Indígenas de América reafirmamos nuestros principios de
espiritualidad comunitaria y el inalienable derecho a la Autodeterminación como
Pueblos Originarios de este continente”.

A partir de 2007, no entanto, na III Cumbre Continental de los Pueblos y
Nacionalidades Indígenas de Abya Yala realizada em Iximche, Guatemala, não só se
autoconvocam como Abya Yala como ainda resolvem constituir uma Coordenação
Continental das Nacionalidades e Povos Indígenas de Abya Yala,como espaço permanente de enlace e intercâmbio, onde possam convergir
experiências e propostas, para que juntos enfrentemos as políticas de globalização
neoliberal e lutemos pela liberação definitiva de nossos povos irmãos, da mãe terra, do
território, da água e de todo patrimônio natural para viver bem”.

Pouco a pouco, nos diferentes encontros do movimento dos povos originários o nome América vem sendo substituído por Abya Yala indicando assim não só outro nome, mas também apresença de outro sujeito enunciador de discurso até aqui calado e subalternizado em termos políticos: os povos originários. A ideia de um nome próprio que abarcasse todo o continente se impôs a esses diferentes povos e nacionalidades no momento em que começaram a superar o longo processo de isolamento político a que se viram submetidos depois da invasão de seus territórios em 1492 com a chegada dos europeus.

Junto com Abya Yala há todo um novo léxico político que também vem sendo
construído onde a própria expressão povos originários ganha sentido. Essa expressão
afirmativa foi a que esses povos em luta encontraram para se auto-designarem e
superarem a generalização eurocêntrica de povos indígenas. Afinal, antes da chegada
dos invasores europeus havia no continente uma população estimada entre 57 e 90
milhões de habitantes que se distinguiam como maia, kuna, chibcha, mixteca,
zapoteca, ashuar, huaraoni, guarani, tupinikin, kaiapó, aymara, ashaninka, kaxinawa,
tikuna, terena, quéchua, karajás, krenak, araucanos/mapuche, yanomami, xavante
entre tantos e tantas nacionalidades e povos originários desse continente.

A tomada dessa cidade pelos turcos, em 1453, engendrou a busca de caminhos
alternativos, sobretudo por parte dos grandes negociantes genoveses e que
encontraram apoio político entre as monarquias ibéricas e na Igreja Católica Romana.
Desde então, circuitos mercantis relativamente independentes no mundo passam a ser
integrado, inclusive constituindo o circuito Atlântico com a incorporação do
Tawantinsuyu (região do atual Peru, Equador e Bolívia, principalmente), do Anahuac
(região do atual México e Guatemala, principalmente), das terras guarani (envolvendo
parte da Argentina, do Paraguai, sul do Brasil e Bolívia, principalmente) e Pindorama
(nome com que os tupi designavam o Brasil). O caráter periférico e marginal da
Europa era tal que a expressão orientar-se (ir para o Oriente) indicava a relevância do
Oriente à época.

Assim, é com a incorporação dos povos de Abya Yala e o seu subjugo político,
juntamente com o tráfico e a escravidão dos negros africanos trazidos para este
continente, que se ensejará a centralidade da Europa. Enfim, o surgimento do sistema
mundo moderno se dá junto com a construção da colonialidade. É de um sistema
mundo moderno-colonial que se trata, portanto. E é esse caráter contraditório inscrito
no sistema mundo moderno, que procura olvidar o seu caráter também colonial, que
os povos originários de Abya Yala vêm procurando explicitar na luta “pela liberação
definitiva de nossos povos irmãos, da mãe terra, do território, da água e de todo
patrimônio natural para viver bem”. Deste modo, a descolonização do pensamento se coloca como central para os povos originários de Abya Yala. Como bem assinalou LuisMacas, da CONAIE – Coordinadora de las Nacionalidades Indígenas del Ecuador –
“nuestra lucha es epistémica y política” onde o poder de designar o que é o mundo
cumpre um papel fundamental. Vários intelectuais ligados às lutas dos povos de Abya
Yala têm assinalado o caráter etnocêntrico inscrito nas próprias instituições, inclusive
no Estado Territorial, cujo eixo estruturante está na propriedade privada e que
encontra no Direito Romano seu fundamento.

Apesar de sua origem regional européia, os fundamentos do Estado Territorial,
inclusive a ideia de espaços mutuamente excludentes, como a propriedade privada,
tem sido imposto ao resto do mundo como se fossem universais, ignorando as
diferentes formas de apropriação dos recursos naturais que predominavam na maior
parte do mundo, quase sempre comunitárias e não mutuamente excludentes. Na
América Latina, o fim do colonialismo não significou o fim da colonialidade, como
afirmou o sociólogo peruano Aníbal Quijano, explicitando o caráter colonial das
instituições que sobreviveram após a independência e que ilumina a declaração
de Evo Morales Ayma quando de sua posse na Presidência da República da Bolívia,
em 2006, quando afirmara que “é preciso descolonizar o estado”.

Para que não se pense que se trata de uma afirmação abstrata, registre-se que os
concursos para servidores públicos naquele país eram feitos exclusivamente em
língua espanhola, quando aproximadamente 62% da população pensam
em quechua, aymara e guarani línguas que falam predominantemente no seu
cotidiano. Em países como a Guatemala, Bolívia, Peru, México, Equador e Paraguai,
assim como em certas regiões do Chile (no sul, onde vivem aproximadamente um
milhão de Araucanos/Mapuches), da Argentina (Chaco norteño) e
da Amazônia (brasileira, colombiana e venezuelana) o caráter colonial do Estado se
faz presente com todo seu peso.

O “colonialismo interno”, expressão consagrada por Pablo Gonzalez Casanova, se
mostra atual, enquanto história de longa duração atualizada. Não raro essas regiões
são objeto de programas de desenvolvimento, quase sempre de (des)envolvimento, de
modernização, quase sempre de colonização (aliás, essas expressões, quase sempre,
são sinônimas). A escolha do nome Abya Yala dos kuna recupera a luta por afirmação dos seus territórios de que os Kuna foram pioneiros com sua revolução de 1925, consagrada em 1930 no direito de autonomia da Comarca de Kuna Yala com seus 320 mil e 600 hectares de terras mais as águas vizinhas do arquipélago de San Blas.

A luta pelo território configura-se como uma das mais relevantes no novo ciclo de lutas do movimento dos povos originários que se delineia a partir dos anos oitenta do século
passado e que ganha sua maior expressão nos anos noventa e inícios do novo século,
revelando mudanças profundas tanto do ponto de vista epistêmico como político.
Nesse novo ciclo de lutas, ocorre um deslocamento da luta pela terra enquanto um
meio de produção, característico de um movimento que se construiu em torno da
identidade camponesa, para uma luta em torno do território. As grandes Marchas pela
Dignidade e pelo Território de 1990 que foram mobilizadas na Bolívia e no Equador
com estruturas organizacionais independentes são marcos desse novo momento.
“Não queremos terra, queremos território”, eis a síntese expressa num cartaz
boliviano.

Assim, mais do que uma classe social, o que se vê em construção é uma comunidade
etnopolítica, enfim, é o indigenato (Darcy Ribeiro) se constituindo como sujeito político.
Considere-se que foi fundamental para essa emergência a tensa luta dos misquitos no
interior da Revolução Sandinista na Nicarágua (1979-1989) pela afirmação de seu
direito à diferença e à demarcação de seus territórios que, apesar de todo o desgaste
que trouxe àquela experiência revolucionária, em grande parte pela colonialidade
presente entre as correntes políticas e ideológicas que a lideraram, nos legou uma das
mais avançadas legislações sobre os direitos de autonomia dos povos originários,
conforme nos informa Héctor Diaz-Polanco.

O levantamento zapatista de 1º de janeiro de 1994 daria grande visibilidade a esse
movimento que, ainda que de modo desigual, se espraia por todo o continente ao
mostrar, pela primeira vez na história, que os povos originários começam a dar
respostas mais que locais/regionais a suas demandas. O protagonismo desse
movimento tem sido importante na luta pela reapropriação dos seus recursos naturais
como se pode ver em 2000, em Cochabamba, na Guerra del Água e, em 2005, na
Guerra do Gás, ambas na Bolívia, mas também entre os araucanos/mapuche,
no Chile, na luta pela reapropriação do rio Bio Bio ameaçado pela construção de
hidrelétricas, ou ainda na luta contra a exploração petroleira no Parque Nacional de
Yasuny, na Amazônia equatoriana, ou na fronteira colombio-venezuelana também na
luta contra a exploração petroleira, entre tantos outros exemplos.


Menina cayapó brincando com uma boneca durante uma cerimônia em Belém do Pará
(Leila Jinkings)

Esse movimento tem sido fundamental ainda na luta pela preservação da diversidade
biológica, em grande parte associada à diversidade cultural e linguística. A dimensão
territorial desse movimento se mostra também no seu protagonismo diante das novas
estratégias supranacionais de territorialização do capital, como no caso do NAFTA,
da ALCA e dos TLCs. O movimento zapatista explicitou melhor que qualquer outro
esse sentido, ao fazer emergir o México Profundo, poder-se-ia dizer a América
Profunda, exatamente no dia em que se assinava o NAFTA.
O protagonismo do movimento dos povos originários também foi importante na luta
contra a Alca e aos Tratados de Livre Comércio que se seguiu à derrota da Alca.
Como se vê, a luta pelo território assume um caráter central e numa perspectiva
teórico-política inovadora na medida em que a dimensão subjetiva, cultural, se vê
aliada à dimensão material – água, biodiversidade, terra.

Território é, assim, natureza + cultura, como insistem o antropólogo colombiano Arturo
Escobar e o epistemólogo mexicano Enrique Leff, e a luta pelo território se mostra com
todas as suas implicações epistêmicas e políticas. Quando observamos as regiões de
nosso continente que abrigam a maior riqueza em biodiversidade e em água podemos
ver o quão estratégicos esses povos são e tendem cada vez mais a ser diante das
novas fronteiras de expansão do capital (Diaz-Polanco, Ceceña e Ornelas).

Abya Yala se coloca assim como um atrator (Prigogine) em torno do que outro sistema
pode se configurar. É isso que os povos originários estão propondo com esse outro
léxico político. Não olvidemos que dar nome próprio é se apropriar. É tornar próprio um
espaço pelos nomes que se atribui aos rios, às montanhas, aos bosques, aos lagos,
aos animais, às plantas e por esse meio um grupo social se constitui como tal
constituindo seus mundos de vida, seus mundos de significação e tornando um
espaço seu espaço – um território. A linguagem territorializa e, assim,
entre América e Abya Yala se revela uma tensão de territorialidades.

Bibliografia
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Bolivia”, Aruwyiri, La Paz, CIPCA, 1993.
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IIE-UNAM-Clacso, 2004.
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DÁVALOS, Pablo: Yuyarinakuy: “digamos lo que somos, antes que otros nos den
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DÍAZ-POLANCO, Héctor: El canon Snorri: diversidad cultural y tolerancia, México,
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RIVERA CUSICANQUI, Silvia: Oprimidos pero no vencidos: luchas del campesinado
aymara y qhechwa de Bolivia, 1980-1990, La Paz, CSUTCB, s/d.
VENTOCILLA, Jorge., HERRERA, Heraclio; NÚÑEZ, Valerio: El espíritu de la
tierra: plantas y animales en la vida del pueblo Kuna, Quito, Abya Yala, 1999

QUESTÃO AGRÁRIA

Link

Por Bernardo Mançano Fernandes

A questão agrária resulta de um conjunto de problemas gerados pelo processo de acumulação capitalista e pelo desenvolvimento da agricultura e da pecuária, em particular. Na América Latina, está relacionada com a estrutura fundiária intensamente concentrada e com os processos de expropriação e exclusão dos camponeses, nas diversas modalidades em que produzem suas condições de sobrevivência. A resistência a esses processos se expressa na luta pela terra, pela reforma agrária e por condições dignas de trabalho. Estabelece-se assim um confronto entre as necessidades de um capitalismo voltado para o consumo de luxo e a exportação e as necessidades da massa de trabalhadores do campo, resultando em enfrentamentos violentos que marcam a questão agrária no continente.

Portanto, a questão agrária é própria do desenvolvimento do capitalismo; nasce das desigualdades e contradições desse sistema, cujos principais fatores são os políticos, expressos no controle de preços, os de mercado e os de políticas agrícolas. Os grupos detentores do poder investem pesado em pesquisas, infraestrutura e tecnologias. As desigualdades geram o aumento e a concentração da riqueza e da terra, simultaneamente à intensificação da pobreza e da miséria.

Porém, o desenvolvimento do capitalismo gera suas próprias contradições: se por um lado expropria o camponês, por outro faz com que ele ressurja no processo de arrendamento da terra. Ao arrendar partes de sua propriedade, o fazendeiro possibilita a recriação do trabalho familiar, ou seja, do campesinato. O arrendamento – forma de exploração baseada na cobrança de parte da renda gerada pelo trabalho familiar na produção agropecuária – interessa ao fazendeiro, até mesmo porque lhe permite evitar que a terra fique ociosa e possa ser ocupada por camponeses sem terra.

Esse conjunto de problemas que caracteriza a questão agrária pode ser amenizado, reduzido em escala e intensidade, mas é impossível solucioná-lo na sociedade capitalista, porque isso implicaria afetar profundamente o processo de acumulação de capital no campo, centrado na grande propriedade e na exportação. Por seu lado, o movimento camponês desenvolve suas mobilizações na luta pela ocupação de terras, com marchas, greves, ações concretas pela reforma agrária.

Em meados da década de 1990, o avanço das políticas neoliberais trouxe inovações para a questão agrária latino-americana. Com a globalização da economia, ampliou-se a hegemonia do modelo de desenvolvimento agropecuário, com seus padrões tecnológicos, caracterizando o denominado agronegócio. À medida que se restringia o protagonismo do Estado, grupos econômicos ruralistas passavam a produzir e impor políticas agrícolas, ampliando cada vez mais o controle que tinham dos mercados. Essa nova face da agricultura capitalista também mudou a forma de controle e exploração da terra. A produção e a produtividade de determinadas culturas aumentaram, graças à intensificação da mecanização e do uso de agrotóxicos, bem como à introdução e difusão do cultivo de plantas transgênicas. Ampliou-se, assim, a ocupação das áreas agricultáveis e as fronteiras agrícolas se estenderam.

Essas mudanças levaram a questão agrária para além do mundo rural. O aumento da produção e do controle político e territorial aconteceu simultaneamente com o aumento da exclusão, da pobreza e da miséria. Na segunda metade do século XX, o intenso êxodo rural provocou a diminuição da porcentagem da população rural da América Latina – de 43%, em 1970, para 23%, em 2005, de acordo com dados do Centro Latino-Americano e Caribenho de Demografia (Celade). A população urbana, por sua vez, passou de 158 milhões de pessoas, em 1970, para 420 milhões, em 2005. No campo, em números absolutos, a população manteve-se estável: em 1970 eram 117 milhões e, em 2005, 125 milhões. Todavia, como se extinguiu a tendência ao intenso êxodo rural, o desenvolvimento do campo não pode mais ser pensado somente como espaço de produção setorial. Precisa ser visto de uma perspectiva includente, com base no desenvolvimento territorial considerado como espaço de produção, moradia, trabalho e lazer. 

Formação do campesinato e resistência

Nas cidades latino-americanas multiplicaram-se os problemas resultantes do desemprego estrutural, com a exaustão ambiental, a marginalização da maioria da população urbana e o aumento do tráfico de drogas. A questão agrária e a urbana converteram-se em problemas territoriais interligados, de modo que o campo e a cidade precisam ser pensados como espaços de uma única luta, pela conquista da dignidade humana. Por tudo isso, a questão agrária compreende as dimensões econômica, ambiental, social, cultural e política. Para melhor compreendê-la, é fundamental conhecer a formação do campesinato.

Nas duas últimas décadas do século XX, eclodiram diversas lutas de resistência dos movimentos camponeses e indígenas da América Latina e do Caribe. Essas lutas representaram a perseverança registrada ao longo de cinco séculos de dominação e subalternidade, bem como as perspectivas de futuro desses povos e nações. Significaram também a recusa permanente ao modelo de desenvolvimento capitalista, que tem destruído continuamente seus territórios e suas culturas. Nos projetos de desenvolvimento da agricultura capitalista, não existe espaço político para a agricultura camponesa, com uma concepção de mundo tão diferente. Para justificar os fracassos do modelo de desenvolvimento capitalista, difundiu-se o discurso segundo o qual os camponeses e indígenas são atrasados e não conseguem se incorporar às sociedades modernas. A resistência de camponeses e indígenas ao produtivismo violento, que não respeita os tempos nem os espaços da natureza e das culturas dos povos, tornou-se uma das principais forças a distanciá-los do modelo do agronegócio.

A origem do campesinato latino-americano remete às civilizações ameríndias, anteriores à conquista europeia, porém foi no sistema capitalista que ele se configurou e se organizou. Há o campesinato indígena, com formas particulares de organização de trabalho e produção, de acordo com sua cultura. Outra vertente é formada pelo cruzamento entre povos indígenas, africanos, europeus e asiáticos. Assim, é possível falar em diferentes tipos de campesinato, indígena e não indígena. Ou, simplesmente, em um só campesinato latino-americano e caribenho, que se constituiu com o desenvolvimento do capitalismo, a partir do encontro entre povos de diversas partes do mundo.

A resistência e persistência do campesinato em defesa de seus territórios e de seu modo de vida estiveram vinculadas à integração do modelo capitalista. Essa condição significou inclusão e exclusão em diferentes intensidades. A exclusão aumentou no fim do século XX com a intensificação da desterritorialização do campesinato e dos povos indígenas pelo avanço das políticas neoliberais, interessadas em se apropriar dos recursos naturais desses territórios. Em sua política de exploração insustentável, o agronegócio tem destruído florestas e assoreado rios, exaurindo os recursos hídricos e criando problemas ambientais em escala mundial. Em diversos países latino-americanos, os territórios indígenas e camponeses são os mais preservados e, por esse motivo, disputados pela agropecuária capitalista. As lutas na selva de Chiapas e na floresta amazônica são alguns exemplos.

A diversificada organização dos territórios e das relações de trabalho de indígenas e camponeses estrutura-se sobre bases familiares e/ou comunitárias, e isso determina a produção em pequena escala, o que não significa produção baixa ou pequena. A produção camponesa, voltada para própria reprodução e para os mercados locais, regionais e nacionais, é responsável por uma proporção significativa dos alimentos consumidos em todos os países da América Latina. A exploração do trabalho e do território alheio para concentração de riqueza e de poder não faz parte do modo de vida camponês. Todavia, em muitas regiões do continente, há uma subordinação à produção capitalista, que impõe a “integração” com as agroindústrias e a participação parcial no sistema agroexportador.

O avanço das políticas neoliberais criou novos tipos de conflito. A territorialização do agronegócio tem intensificado a desterritorialização do campesinato e do latifúndio. Esses processos atendem à expansão da produção agroexportadora, visando aos mercados da América Latina e, principalmente, do denominado primeiro mundo. A “modernização” da agropecuária representada pelo agronegócio vem aumentando simultaneamente a produtividade e o desemprego. A mecanização e a informatização levaram a uma crescente ocupação de novos territórios e, ao mesmo tempo, diminuíram o número de pessoas necessárias para o trabalho. O desemprego estrutural e a diminuição do êxodo rural intensificaram a disputa pelos territórios, fazendo cada vez mais da questão agrária uma luta territorial. A garantia do território camponês é condição essencial para seu futuro. Todavia, é uma barreira para a territorialização do capitalismo, o que não retira a possibilidade de o capital monopolizar os territórios camponeses e indígenas, gerando permanentes conflitos.

Tanto a forma de organização quanto as opções de luta e de resistência dos movimentos camponeses e indígenas dependem das conjunturas políticas. No Brasil, uma dessas manifestações contra a exclusão e a expropriação, para a recriação do campesinato (mapa abaixo), é a ocupação de terras. Também são empreendidas marchas e organizados bloqueios de estradas para chamar a atenção da sociedade e pressionar o governo para aceitar a negociação de políticas públicas destinadas a amenizar a situação de pobreza e miséria. Essas formas de luta visam mudar a conjuntura político-econômica.

A recusa dos governos em debater essas questões e o aumento da violência contra os indígenas e camponeses têm levado à resistência armada, uma opção extrema que expressa o impasse entre os limites do capitalismo para resolver a questão agrária e a persistência camponesa em defender sua dignidade.

Diante dessa conjuntura, os camponeses e indígenas têm se organizado em movimentos políticos e criado articulações em escala nacional, latino-americana e mundial. Entre outros, servem como exemplo: Coordinadora Nacional de Organizaciones Campesinas (CNOC, Guatemala); Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST, Brasil); Confederación Sindical Única de Trabajadores Campesinos de Bolívia (CSUTCB); Federación Nacional de Organizaciones Campesino-Indígenas y Negras (Fenocin, Equador); Coordinadora Nacional de Mujeres Trabajadoras Rurales e Indígenas (Conamuri, Paraguai). Os movimentos camponeses da América Latina formaram a Coordinadora Latinoamericana de Organizaciones del Campo (CLOC), e todas essas organizações participam também da Via Campesina – articulação mundial de movimentos camponeses.

Origens do agronegócio

Na segunda metade do século XX, o campo latino-americano sofreu profundas alterações causadas pelo modelo de desenvolvimento que gerou, ao mesmo tempo, mudanças e permanências. Com o avanço da industrialização da agropecuária, o tradicional sistema latifundiário, que durante séculos determinara a estrutura fundiária, passou por mudanças setoriais, técnicas e tecnológicas. A população rural conheceu um dos maiores êxodos de sua história. A territorialização das corporações norte-americanas e europeias ampliou seus domínios com a expansão de seus sistemas de produção. Esse conjunto de mudanças intensificou as formas de exploração do modelo agroexportador e aprofundou a expropriação dos camponeses e indígenas, gerando pobreza e miséria. As políticas de reforma agrária implantadas não conseguiram desconcentrar a estrutura fundiária.

O sistema latifundiário, que se caracteriza pelo controle de grandes extensões de terra, pela agropecuária extensiva, pela monocultura e pela intensa exploração de mão de obra, começou a ser substituído a partir de meados do século XX. A implantação de novas técnicas e tecnologias e o uso de insumos químicos aumentaram a produção e a produtividade. O desenvolvimento de novas variedades de cultivo facilitou a mecanização, dispensando em grande parte o trabalho manual. As famílias que viviam e trabalhavam nas grandes fazendas foram expulsas e se deslocaram para a periferia das cidades. Nas décadas de 1960 a 1980, esse processo acentuou a urbanização e a proletarização do campesinato e valorizou as terras, possibilitando a territorialização dos imóveis capitalistas sobre os de camponeses e indígenas – obrigados a vender suas terras ou sendo sumariamente expropriados. Assim aconteceu, por exemplo, com as terras de cultivo de café, no Brasil e na Colômbia, e de cana-de-açúcar, nas regiões Sudeste e Nordeste do Brasil.

Na década de 1990, com o avanço das políticas neoliberais, consolidou-se o processo de territorialização das empresas multinacionais norte-americanas e europeias, que expandiram seus domínios e aumentaram o controle sobre os principais produtos primários: soja, café, leite, frutas etc. Nessa fase, o controle político-territorial também foi ampliado. Em processos de compra ou de fusão com empresas nacionais, as corporações multinacionais passaram a controlar mercados, tecnologias e patentes, concentrando poder e conhecimento. Entre as grandes corporações que se estabeleceram na América Latina destacam-se: Nestlé (Suíça); Philip Morris, Cargil, Coca-Cola, Del Monte e United Fruit Company (Estados Unidos), Bunge (Holanda), Danone (França) e Parmalat (Itália). Ao atuar em diversos setores da economia, desfrutam de uma série de vantagens e adotam estratégias para assumir o controle político dos processos produtivos, dos mercados e das políticas econômicas.

Esses processos consolidaram o modelo de desenvolvimento da agricultura que ficou amplamente conhecido como agronegócio. Com uma argumentação que destacou suas supostas qualidades, o agronegócio exerceu um controle político extraordinário sobre o processo produtivo, subordinando todos os envolvidos. Nessa nova fase, os domínios territoriais ampliaram-se para controlar a água, recurso fundamental, por exemplo, para as indústrias de sucos de fruta. A liberalização do comércio mundial ganhou ainda mais incentivos com a criação do Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT), em 1947, com o objetivo de incrementar o fluxo comercial por meio da diminuição das tarifas alfandegárias.

O crescente controle político dos territórios e de seus recursos, das relações sociais e do conhecimento não deixou outra saída para os movimentos camponeses e indígenas a não ser o enfrentamento direto com o agronegócio. Surgiram assim novas conflituosidades em toda a América Latina, com manifestações e ocupações de fábricas multinacionais, exigindo melhores preços e protestando contra o controle geral do processo produtivo. A privatização das sementes e sua consecutiva padronização diminuíram a diversidade das espécies. O controle desse produto e da pesquisa pelas corporações tornou a segurança alimentar extremamente vulnerável e aniquilou a soberania alimentar. Em 2005, dez grandes empresas controlavam a maior parte dos tipos de semente do mundo: Monsanto, Dupont/Pioneer, Land O’Lakes e Delta & Pine Land (Estados Unidos), Syngenta (Suíça), Groupe Limagrain (França), KWS AG e Bayer Crop Science (Alemanha), Sakata e Taikii (Japão) e DLF-Trifolium (Dinamarca).

Contradições e conflituosidade

A conflituosidade encontra-se na essência da questão agrária. A mídia global constantemente apresenta os conflitos como se fossem provocados pelos movimentos camponeses e indígenas. Todavia, eles são parte de um processo de exclusão. Para compreender esse processo, é fundamental considerar as contradições e os paradoxos que fazem emergir, na solução de conflitos, tanto o seu desenvolvimento quanto a criação de outros. A desigualdade gerada e gerida pelo capitalismo não produz apenas riqueza, pobreza e miséria. Ela também desenvolve o conflito, porque as pessoas não são objetos que compõem unidades de produção. São sujeitos históricos que resistem à exploração e à expropriação e querem compartilhar os resultados da produção de seu trabalho. Portanto, o desenvolvimento político-econômico é igualmente o desenvolvimento de conflitos.

O conflito é o estado de confronto entre forças opostas, com relações sociais distintas e em condições políticas de oposição, que buscam a superação por meio da negociação, da manifestação, da luta popular e do diálogo. Um conflito por terra é um confronto pela disputa de territórios entre classes sociais ou entre modelos de desenvolvimento. O conflito pode ser enfrentado pela conjugação de forças que disputam as ideologias e “esmagado” ou resolvido – a conflituosidade, não. Nenhuma força ou poder pode esmagá-la, chaciná-la, massacrá-la. Ela permanece fixada na estrutura da sociedade, em diferentes espaços, aguardando o tempo de volta das condições políticas de manifestação. Os acordos, pactos e tréguas definidos em negociações podem resolver ou adiar conflitos, mas não acabam com a conflituosidade, porque esta é produzida e alimentada dia após dia pelo desenvolvimento desigual do capitalismo.

A conflituosidade é uma propriedade dos conflitos em suas diversas formas: posse e renda da terra, produção capitalista e consequente concentração da estrutura fundiária com expropriação de camponeses e indígenas, por diversos meios e em diferentes escalas, com bases social, técnica, econômica ou política. As respostas são a luta pela terra, a reforma agrária e a resistência na terra com a perspectiva de superação da questão agrária. Esses processos não se referem apenas à questão da terra, mas também às formas de organização do trabalho e da produção, do abastecimento e da segurança alimentar; aos modelos de desenvolvimento da agropecuária e a seus padrões tecnológicos; às políticas agrícolas; às formas de inserção no mercado; aos tipos de mercado; à questão campo-cidade; à qualidade de vida e à dignidade humana.

A conflituosidade está na natureza do território, que é um espaço político por excelência. A criação do território está associada às relações de poder, de domínio e de controle político. Os territórios não são espaços apenas físicos, mas também sociais e culturais, em que se manifestam as relações e as ideias, transformando em território até mesmo as palavras. As ideias são produtoras de territórios com suas diferentes e contraditórias interpretações das relações sociais. Os paradigmas que procuram afirmar ou negar a questão agrária são territórios políticos. Por ser insuperável, a questão agrária carrega em si as possibilidades da transgressão e da insurgência e, pela mesma razão, as possibilidades de cooptação e conformismo. Essas propriedades de contradição da questão agrária compõem a conflituosidade. Elas estão presentes nas disputas paradigmáticas entre a questão agrária e o capitalismo agrário, que determinam os projetos de desenvolvimento.

A estrutura fundiária no continente

A estrutura fundiária da América Latina e do Caribe está entre as mais concentradas do mundo. Essa realidade é resultado do controle territorial dos imóveis rurais pelos setores ruralistas e pelas corporações multinacionais. De acordo com os dados disponíveis, os países com estruturas fundiárias mais concentradas são: Barbados, Paraguai, VenezuelaPeru e Brasil, conforme quadro a seguir.

Índice GINI* de países da América Latina

Fonte: www.fao.org/ES/ESS/yearbook/vol.1

* O coeficiente GINI mede de 0 a 100 a desigualdade na distribuição da renda.

Na segunda metade do século XX, políticas de reforma agrária foram empreendidas por alguns países da América Latina e do Caribe: Venezuela, Colômbia, Chile, Peru, Nicarágua, Brasil e Cuba. No entanto, na maior parte deles, tais medidas não foram suficientes para promover a desconcentração fundiária. Embora a reforma agrária envolva políticas destinadas a minimizar a questão fundiária, o desenvolvimento do capitalismo gera intensas desigualdades que ocasionam a reconcentração. Por essa razão, as lutas pela terra e a reforma agrária tornam-se permanentes; essa questão existe há séculos nos países latino-americanos, gerando um estado de constante conflituosidade. Esse estado decorre da contradição gerada pelo processo de destruição, criação e recriação simultâneas do campesinato.

A conflituosidade e o desenvolvimento ocorrem de forma simultânea e, em consequência, promovem a transformação de territórios, modificam paisagens, criam comunidades, empresas e municípios, mudam sistemas agrários e bases técnicas, complementam mercados, refazem costumes e culturas, reinventam modos de vida e reeditam permanentemente o mapa da geografia agrária. A agricultura camponesa estabelecida, ou que se estabelece por meio de ocupações de terra ou como resultado de políticas de reforma agrária, fomenta conflitos e desenvolvimento, assim como a agricultura capitalista, na nova denominação de agronegócio, ao territorializar-se e expropriar o campesinato. Esse processo é responsável pelo crescimento da organização camponesa em diferentes escalas e de diversas formas na América Latina e no Caribe.

Um bom exemplo desse processo é o caso da soja, um dos produtos primários mais expressivos do agronegócio mundial. Na safra 2003-2004, foram produzidos 186 milhões de toneladas e, de acordo com as projeções, a previsão é de que se chegue a 300 milhões de toneladas em 2020. Na América Latina, a Argentina, o Brasil, o Paraguai e a Bolívia são os países com melhores perspectivas de expansão desse produto (mapas abaixo). O impacto social e territorial da soja vem provocando a desterritorialização de camponeses e indígenas, na medida em que o agronegócio se mostra extremamente agressivo para viabilizar a exploração da monocultura em grande escala.

No Brasil, aproximadamente 30% da soja é produzida pela agricultura camponesa, sendo parcialmente mecanizada e gerando mais empregos que os cultivos em larga escala. Em média, a agricultura camponesa produtora de soja gera três postos de trabalho para cada 24 hectares, enquanto a agricultura capitalista gera um emprego para cada 200 hectares. Os mapas abaixo ilustram essa situação. No primeiro, pode-se observar que a territorialização da soja no Brasil avança em direção à Amazônia. O segundo mostra que os principais espaços que estão sendo ocupados pela soja no Brasil, no Paraguai, na Argentina e na Bolívia correspondem a regiões da Amazônia, do Cerrado e do Chaco.

Paradigmas do capitalismo agrário

A compreensão e a explicação da questão agrária também são discutidas nas universidades, nos governos, nos movimentos camponeses e na sociedade. Como toda problemática política, a questão agrária possibilita leituras diversificadas, já que é pensada pelos interessados com base em paradigmas distintos, ou seja, de diferentes formas. Essas referências também se pautam por ideologias que constroem análises e influenciam na compreensão do problema. A tentativa de entender a questão agrária expõe um enorme desafio, pois é uma busca de solução para um problema que se alimenta de si mesmo. Essa compreensão é possível desde que analisada na sua essência, sem subterfúgios, reconhecendo e revelando seus limites em um campo de possibilidades que exige uma postura objetiva. Desde o final do século XIX, tem-se prognosticado o desaparecimento do campesinato. Todavia, o que se observa, na realidade, é um processo permanente de resistência. E, desde a década de 1990, dois paradigmas disputam a explicação da questão agrária: um procura afirmá-la, outro, negá-la.

De acordo com o paradigma da questão agrária, a destruição do campesinato pela sua diferenciação não determina seu fim. É fato que o capital, ao se apropriar da riqueza produzida pelo trabalho camponês, gera a diferenciação e a destruição do campesinato. Mas, igualmente, é fato que ao capital interessa a continuação desse processo para seu próprio desenvolvimento. Em diferentes condições, a apropriação da renda é mais interessante ao capital do que o assalariamento. Por essa razão, os capitalistas oferecem suas terras em arrendamento aos camponeses ou oferecem condições para que os camponeses produzam em seus próprios imóveis. Há três possibilidades de recriação do campesinato: o arrendamento, a compra e a ocupação da terra. E assim se desenvolve um constante processo de territorialização e de desterritorialização da agricultura camponesa ou de destruição e recriação do campesinato. O que é compreendido como fim também tem seu término na poderosa vantagem que o capital tem sobre a renda da terra, gerada pelo trabalho familiar ou comunitário.

Conforme o paradigma do capitalismo agrário, o fim do campesinato não significa o fim do trabalho familiar na agricultura – utiliza o conceito de agricultor familiar como eufemismo do conceito de camponês. Com base em uma lógica dualista, classifica o camponês como atrasado e o agricultor familiar como moderno. Essa lógica dualista é processual, pois para ser moderno o camponês precisa se metamorfosear em agricultor familiar. Esse processo de transformação do camponês em agricultor familiar sugere também uma mudança ideológica. O camponês metamorfoseado em agricultor familiar perde sua história de resistência, fruto de sua pertinácia, e se torna um sujeito conformado com o processo de diferenciação, que passa a ser um processo natural do capitalismo. Os limites dos espaços políticos de ação do então moderno agricultor familiar fecham-se nas dimensões da diferenciação gerada pela produção da renda da terra. Sua existência está condicionada à situação gerada pelo capital.

Para o paradigma do capitalismo agrário, as relações capitalistas são apresentadas como totalidade. As perspectivas são apenas as possibilidades de se tornar unidades do sistema. Assim, o campesinato metamorfoseado é mais uma unidade do sistema, que caminha segundo os preceitos do capital. Por esse motivo, os movimentos camponeses que se identificam com o paradigma do capitalismo agrário não têm dificuldade em aceitar políticas propostas com base na lógica do capital – por exemplo, o Banco da Terra, programa brasileiro de financiamento de imóveis rurais. A lógica do paradigma do capitalismo agrário cria um estado de mal-estar quando o assunto a ser discutido implica contestar o capitalismo, porque isso lhe atinge o âmago. Esse é o limite de sua ideologia. A desobediência só é permitida nos parâmetros estipulados pelo desenvolvimento do capitalismo. A partir desse ponto é subversão. A “integração plena” carrega mais que um estado de subordinação contestada: contém o sentido da obediência às regras do jogo comandado pelo capital. Nesse paradigma, o camponês só estará bem se estiver plenamente integrado ao capital.

O paradigma da questão agrária não se limita à lógica do capital, de modo que a perspectiva de enfrentamento do capitalismo se torna uma condição possível. Daí a ocupação de terra ser uma das formas de luta mais presente nos movimentos camponeses. Também está presente a compreensão de uma economia da luta, em que a conquista da terra não deve ser transformada na condição única de produção de mercadorias, mas igualmente na produção da vida em sua plenitude, bem como do enfrentamento com o capital para a recriação continuada do campesinato. A economia política desse paradigma contempla o mercado e, ao mesmo tempo, usa essa condição para promover a luta pela terra e pela reforma agrária. Por essa razão, enfrenta desafios com a realidade comandada pelo capital, já que este quer o camponês apenas como produtor de mercadorias e jamais como produtor de conhecimentos avessos aos princípios do capital.

Mapas

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AGRONEGÓCIO

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Por Bernardo Mançano Fernandes

O conceito de agronegócio (agrobusiness) surgiu em meados do século XX nos Estados Unidos. A ideia era construir uma política para incrementar a participação do produtor familiar no mercado. A ênfase no mercado tornou-se a prioridade, destituindo assim a importância das outras dimensões do desenvolvimento. Essa ideia veio ao encontro dos interesses da agricultura capitalista e foi completamente incorporada pelas grandes empresas agroindustriais, que começaram a desenvolver políticas para a exploração dos camponeses e de seus territórios em todos os países da América Latina. O processo, chamado de “integração”, inaugurou uma nova forma de subalternidade do campesinato ao capital, intensificando a questão agrária. Essa intensificação se aprofundou em consequência da dinâmica do produtivismo do agronegócio que, ao se territorializar, passou a ocupar latifúndios e terras de camponeses.

Agronegócio, de fato, é apenas o novo nome do modelo de desenvolvimento econômico da agropecuária capitalista implantada desde a década de 1950. Observando atentamente, compreende-se que esse modelo não é novo: sua origem está no sistema de plantation, ou agroexportador, em que grandes propriedades eram utilizadas na produção para exportação. Ao longo das diferentes fases de desenvolvimento do capitalismo, esse modelo passou por modificações e adaptações, intensificando a exploração da natureza e do campesinato. O agronegócio representa a mais recente fase do capitalismo na agropecuária, marcada pelo controle estratégico do conhecimento, da produção e do mercado, com o uso de tecnologia de ponta.

Na América Latina, a noção de agronegócio difundiu-se na década de 1990, e é também uma construção ideológica para tentar mudar a imagem latifundiária da agricultura capitalista. O latifúndio carrega em si a imagem da exploração, do trabalho escravo, da extrema concentração da terra, do coronelismo, do clientelismo, da subserviência e do atraso político e econômico. É, portanto, um espaço que pode ser ocupado para o desenvolvimento do país. Latifúndio está associado com terra que não produz e que pode ser utilizada para a reforma agrária. As tentativas de criar a figura do “latifúndio produtivo” (sic) não tiveram êxito, pois são mais de quinhentos anos de exploração e dominação, e não há adjetivo que consiga modificar o conteúdo do substantivo.

A imagem do agronegócio foi construída para renovar a imagem da agricultura capitalista, para “modernizá-la”. É uma tentativa de ocultar o caráter concentrador, predador, expropriatório e excludente e ressaltar o caráter produtivista, destacando o aumento da produção, da riqueza e das novas tecnologias. Da escravidão à colheitadeira controlada por satélite, o processo de exploração e dominação está presente; a concentração da propriedade de terra intensifica-se e a destruição do campesinato aumenta. O conhecimento que propiciou as mudanças tecnológicas foi construído com base na estrutura do modo de produção capitalista. Assim, embora tenha havido o aperfeiçoamento do processo, não se criou solução para os problemas socioeconômicos e políticos: o latifúndio efetua a exclusão pela improdutividade, enquanto o agronegócio promove a exclusão pela intensa produtividade.

A agricultura capitalista, patronal, empresarial ou o agronegócio, qualquer que seja o eufemismo utilizado, não pode esconder o que está em sua lógica intrínseca: a concentração e a exploração. Nessa nova fase de desenvolvimento, o agronegócio procura representar a imagem de produtividade, de geração de riquezas. Desse modo, torna-se o espaço produtivo por excelência, cuja supremacia não pode ser ameaçada pelos camponeses. Se o território do latifúndio pode ser desapropriado para a implantação de projetos de reforma agrária, o território do agronegócio se apresenta como sagrado, algo que não pode ser violado. O agronegócio é um novo tipo de latifúndio e ainda mais amplo, pois não concentra e domina apenas a terra, mas também a tecnologia de produção e as políticas de desenvolvimento.

A implantação do agronegócio expandiu sua territorialidade, ampliando o controle sobre o território e as relações sociais, agudizando as injustiças sociais. O aumento da produtividade dilatou sua contradição central: a desigualdade. A utilização de novas tecnologias possibilita uma produção cada vez maior em áreas menores. Esse processo significa concentração de poder e, consequentemente, de riqueza e de território. Tal expansão tem como ponto central o controle do conhecimento técnico, por meio de uma agricultura científica globalizada. Portanto, o agronegócio redimensionou a questão agrária ao ampliar a exclusão do campesinato do processo de produção de alimentos e ao intensificar a expropriação. A terra reforça o caráter de território na construção de um modelo de desenvolvimento que respeite o tempo natural, os direitos humanos e suas diversidades.

Ditadura e repressão – paralelos e distinções entre Brasil e Argentina

I. IDENTIFICAÇÃO

DISCIPLINA CARGA HORÁRIA 4h
MINICURSO Ditadura e repressão: paralelos e distinções entre Brasil e Argentina
SEMESTRE 2º/ 2016
PROFESSOR Janaína de Almeida Teles
TITULAÇÃO Doutora

II. OBJETIVOS
Repensar os estudos sobre as ditaduras argentina e brasileira à luz das pesquisas e informações acumuladas nos últimos anos relativas à violência do estado, às lutas de resistência às ditaduras, bem como às disputas pelas interpretações e memórias do período. Por meio desse panorama crítico pretendemos também estabelecer um balanço comparativo dos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade (CNV) e da Conadep (Comissão Nacional sobre Desaparecimentos de Pessoas).

III. EMENTA
Os modelos repressivos utilizados pelas ditaduras latino-americanas vêm sendo objeto de intenso escrutíneo por parte de historiadores e cientistas sociais. No Brasil, a Comissão Nacional da Verdade representou uma possibilidade de que nova luz fosse lançada sobre os mecanismos específicos do modelo brasileiro e suas relações com outros do cone sul. A ocasião possibilitou maior aprofundamento dos estudos sobre os paralelos e distinções entre esses modelos. O presente curso procura satisfazer essa demanda, utilizando entre outras bases reflexivas, a obra de referência de Pilar Calveiro. Entre as principais conclusões destacam-se o fato de que práticas de tortura e repressão circularam pelo continente, tendo o Brasil como principal pólo disseminador, a despeito da existência de diferenças de estratégia quanto à aplicação do terror de estado, o que este artigo revela em relação à Argentina, onde predominou o “poder desaparecedor”, em contraste com o Brasil, onde prevaleceu o “poder torturador”.
A despeito dos esforços empenhados pela CNV, é de se considerar a fragilidade da recuperação factual e da punição dos responsáveis pelas torturas, assassinatos ou desaparecimentos forçados no Brasil. Este quadro contrasta com o que se configurou em outros países da América Latina, particularmente na Argentina, onde diversos processos e instrumentos de apuração dos fatos e responsabilidades estão em curso. O presente minicurso oferece também um balanço comparativo entre a experiência brasileira e a da Argentina relativo ao trabalho das respectivas Comissões da Verdade.

IV. CONTEÚDO SELECIONADO
a) A reestruturação do aparato repressivo: centralização e seletividade x desaparecimento forçado;
b) Repressão judicial e extrajudicial: legalidade, legitimação do estado de exceção x clandestinidade;
c) A cooperação repressiva no Cone Sul antes da Operação Condor;
d) O protagonismo das vítimas e sobreviventes na resistência à ditadura;
e) As transições brasileira e argentina: ruptura x conciliação e o desafio de narrar a barbárie;
f) O legado da ditadura: as disputas pela memória e as Comissões da Verdade na Argentina e no Brasil.

V. METODOLOGIA
A – Aulas expositivas/debates
B – Recursos audiovisuais.

VI. BIBLIOGRAFIA
Básica:

ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e Oposição no Brasil (1964-1984). Bauru, SP, Edusc, 2005.
BAUER, Caroline Silveira. Brasil e Argentina Ditaduras, Desaparecimentos e Políticas de Memória. Porto Alegre, Medianiz,, 2012.
CALVEIRO, Pilar. Poder e Desaparecimento. Os campos de concentração na Argentina. São Paulo: Boitempo, 2013.
CRENZEL, Emilio. La historia política del Nunca Más: La memoria de las desapariciones en la Argentina. Buenos Aires, Siglo XXI, 2008.
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TELES, Janaína de A. Os herdeiros da memória: A luta dos familiares de mortos e desaparecidos políticos no Brasil. São Paulo, IEVE/Alameda, 2016 (no prelo).
____ . Memórias dos cárceres da ditadura: as lutas e os testemunhos dos presos políticos no Brasil. Doutorado, História/FFLCH, USP, 2011.
____ . “Ditadura e repressão no Brasil e na Argentina: paralelos e distinções”. In: Taller (Segunda Época). Revista de Sociedad, Cultura y Política en América Latina. Vol.3, N°.4, 2014.

Complementar:

ALMEIDA, Criméia A. S. de; LISBÔA, Suzana K.; TELES, Janaína de A.; TELES, Maria Amélia de A. (orgs.). Dossiê Ditadura: mortos e desaparecidos políticos no Brasil (1964-1985). São Paulo: IEVE/Imprensa Oficial, 2009.
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CAMPOS, Pedro Henrique Pedreira. Estranhas Catedrais: as empreiteiras brasileiras e a ditadura civil-militar, 1964-1988. Rio de Janeiro, Eduff, 2014.
CHIRIO, Maud. A política nos quartéis: revoltas e protestos de oficiais na ditadura militar brasileira. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.
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LACAPRA, Dominick. Escribir la historia, escribir el trauma. Buenos Aires: Nueva Visión, 2005.
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QUINALHA, Renan Honório. Justiça de Transição: contornos do conceito. São Paulo: Outras expressões; Dobra editorial, 2013.
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SAFATLE, Vladimir e TELES, Edson (orgs.). O que resta da ditadura? A exceção brasileira. São Paulo: Boitempo, 2010.
SANTOS, Cecília MacDowell; TELES, Edson; TELES, Janaína de A. (orgs.). Desarquivando a Ditadura. Memória e Justiça no Brasil, Vol. I. São Paulo, Hucitec, 2009.
____ . Desarquivando a Ditadura. Memória e Justiça no Brasil, Vol. II. São Paulo, Hucitec, 2009.

Bem vindo

O Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina (PROLAM/USP) completou 25 anos. Para celebrar a data , o PROLAM convida estudantes, professores, pesquisadores e os demais interessados na temática latinoamericana para o Simpósio Internacional “Pensar e repensar a América Latina”.

O objetivo do evento é contribuir para o conhecimento da região e das pesquisas produzidas, tal como incentivar a importância de se repensar e refletir a América Latina. Para isso, o Simpósio será composto por treze Seminários de Pesquisa, em que serão apresentados trabalhos de pesquisadores e estudantes de Graduação e Pós-Graduação, que abordem temáticas de América Latina, e Palestras com grandes pesquisadores.

O evento ocorrerá entre os dias 11 e 14 de novembro, no Complexo da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin na Universidade de São Paulo.