Educação, Valores e… a barbárie do Novo Ensino Médio

Os valores abordados na proposta curricular do Novo Ensino Médio atende aos interesses da classe dominante, por este motivo, é importante se posicionar diante deles. Montagem realizada no Canva a partir de foto de uma manifestação de estudantes no Amazonas de 2016 (Créditos: Rovena Rosa/Agência Brasil, Creative Commons).

As propostas do Novo Ensino Médio e da Base Nacional Comum Curricular estão em desacordo com a legislação educacional, no que diz respeito aos seus valores educacionais.

Lucas Alexandre Mortale

Mestre em Ensino de Ciências e Matemática e Licenciado em Física pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo, Especialista em Docência com Ênfase na Educação Básica pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Minas Gerais. Professor Categoria O na Secretaria de Educação do Estado de São Paulo nas disciplinas de Física, Matemática e Itinerários Formativos. 

Perfis do instagram: @lucas_mortale e @ef.profisica

04 de março de 2024 | 10:00

A Educação Brasileira vem passando por transformações que impactam o currículo escolar e as concepções de formação do educando. Segundo Nazareno Godeiro e Amanda Gurgel (2015), há uma concepção mundial de que a educação tem como objetivo formar o ser humano para gerar lucros nas grandes corporações em detrimento de formar o indivíduo para o desenvolvimento de suas potencialidades. Nesse contexto, se faz necessária uma reflexão sobre o que entendemos a respeito de educação e seus valores em um contexto em que foram implementadas a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e o Novo Ensino Médio (NEM).

O objetivo deste texto é fazer uma breve reflexão crítica a respeito desses conceitos de educação e valores a partir da implementação da Lei nº 13.415/2017 que instituíram o NEM e a BNCC discorrendo sobre esses conceitos à luz das abordagens filosóficas de Lúcia Helena Galvão e de outros autores.. 

Reflexões sobre Educação e Valores na Era da BNCC e NEM

Para Pedro Goergen (2005), a educação e a ética se relacionam desde os primórdios, porém há divergências entre teoria e prática. Há uma dificuldade em se trabalhar a questão de valores, pois muitos são ensinados em casa. A definição de educação apresentada pela educadora Lúcia Helena Galvão nos ajuda a compreender que educação vem de “eduzir”, ou seja, trazer à tona aquilo que o ser humano tem de melhor (2019). Assim, o papel da educação na formação do indivíduo tem como intuito desenvolver suas potencialidades e o trabalho com os valores no contexto educacional buscaria aprimorar o que cada indivíduo possui em associação com os seus valores advindos da educação familiar. Diante disso, temos que questionar como a educação pode realizar esse papel diante de um contexto de grandes transformações como o NEM, que vem sendo implementado em nível nacional desde 2022. As alterações propostas a este nível de ensino substituem uma formação crítica e reflexiva por uma formação técnica voltada para o mundo do trabalho, contrapondo o desenvolvimento da autonomia do estudante (SILVA; SILVA, 2021). 

Essas alterações servem para atender a um projeto de espoliação da classe trabalhadora, retirando todos os direitos historicamente conquistados, ou seja, é uma educação que serve para um projeto de barbárie. O conceito de barbárie na educação surge, pois vivemos em uma sociedade em que as violências física e psicológica são predominantes, sendo necessário, conforme aponta o filósofo Theodor Adorno (2020), um projeto de emancipação que tenha como princípios a formação de cidadãos livres e autônomos que respeitem as diversidades étnicas, sociais, raciais, de gêneros e econômicas da nossa população. Casos recentes como o assassinato da professora Elisabete Tenreiro nos mostram que estamos distantes de atingir uma das metas importantes na Educação: a de que Auschwitz não se repita, pois, esse fenômeno social foi a barbárie contra a qual deveria se dirigir toda a educação (ADORNO, 1995). 

Autonomia, Violência e Flexibilização Curricular: Desafios na Educação Contemporânea

Temos vivido nas escolas a falta de segurança, casos de violência e um currículo escolar que não foi debatido com os professores da educação básica. Ao mesmo tempo que as alterações no currículo escolar preveem o desenvolvimento da autonomia e o protagonismo do estudante, a flexibilização curricular acaba por cercear a sua formação crítica e reflexiva, uma vez que negligencia algumas áreas de conhecimento, por exemplo, os da Ciência da Natureza, a Biologia, a Física e a Química (SILVA; SILVA, 2021)

No tocante ao desenvolvimento da autonomia, Paulo Freire (2018) apresenta o conceito de rigorosidade metódica, em que a maneira de ensinar do docente fomenta a curiosidade crítica, promovendo o desenvolvimento necessário para a autonomia do educando. Se por um lado, deveríamos ter uma educação que visa a formação de seres humanos melhores para o mundo, o NEM acaba por evidenciar aspectos formativos para a inserção do jovem no mercado de trabalho. É possível identificar essas alterações por meio da divisão entre formação geral básica e os Itinerários Formativos. Os Itinerários compõem a parte flexível do currículo escolar de livre escolha do estudante, porém prioriza algumas áreas em detrimento de outras. É importante ressaltar que essa estrutura negligencia uma formação crítica e reflexiva para obtenção de uma formação técnica. 

Os pesquisadores Pedro da Silva e Jefferson da Silva (2021) defendem que uma das grandes dificuldades no sistema educacional brasileiro consiste na universalização do ensino, pois nesse sistema a escola reduz o ensino ao desenvolvimento de competências e habilidades que poderão ser exploradas em benefício do capital. Além disso, os itinerários oferecem aos estudantes uma falsa sensação de liberdade, pois não são todas as escolas que possuem condições de oferecer muitas opções. Podemos citar o caso das escolas rurais como o identificado na pesquisa de Antonilson Nunes (2021). Ele investigou a implementação do NEM em uma escola rural em Parintins no Amazonas, identificando dificuldades para implementação da BNCC no ensino da disciplina de matemática, no que tange a falta de formação continuada de professores, ausência de recursos didáticos e infraestrutura adequada.

BNCC e Ensino Médio: Entre os Objetivos da LDB/96 e as Transformações Atuais

É importante ressaltar que, apesar da BNCC ser um documento orientador para os currículos escolares, há muitas situações desfavoráveis na implementação desse documento nas diferentes realidades escolares. Na verdade, a proposta está desalinhada com a própria legislação educacional nacional no que se refere aos valores educacionais que estimula. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) de 1996 estabelece alguns objetivos da educação básica no que tange ao ensino médio, e, por conta disso, deveria ser a referência para a determinação dos documentos curriculares. 

De acordo com a LDB/96, o ensino médio não deve se restringir à formação para o mercado de trabalho, mas também deve possibilitar o prosseguimento de estudos, o pensamento crítico e o exercício da cidadania. Entretanto, com a reforma do ensino médio, evidencia-se um projeto educacional voltado prioritariamente para o mundo do trabalho, o qual possui atualmente alto índice de informalidade. É importante também pensar na relação dos indivíduos com o conhecimento, pois, conforme Lúcia Helena Galvão (2019), o conhecimento não pode ser um estorvo, como infelizmente tem acontecido, uma vez que os estudantes não compreendem os motivos pelos quais estudam os conteúdos ensinados no âmbito escolar.

Considerações finais

É possível inferir que o NEM atende aos interesses da classe dominante, em detrimento dos trabalhadores. Para manter o status quo é preciso formar pessoas que não conseguem contestar essa estrutura socioeconômica, desviando a atenção dos problemas sociais para os problemas individuais. A disciplina ‘Projeto de Vida’, obrigatória no currículo proposto pelo NEM, visa atender essa nova realidade, pois evidencia questões como finança domiciliar e trabalho autônomo em detrimento da compreensão social na qual o indivíduo está imerso.      

Em suma, a reflexão crítica proposta neste texto destaca a importância de se considerar os valores e objetivos da educação diante das transformações implementadas com o NEM. A busca por uma educação que promova a autonomia, o pensamento crítico e a formação integral do indivíduo é fundamental para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária.

 

Acesse as referências utilizadas nesse ensaio para se aprofundar na discussão!

ADORNO, Theodor W. Educação após Auschwitz. Educação e emancipação, v. 3, p. 119-138, 1995.

ADORNO, Theodor W. Educação e emancipação. Tradução: Wolfgang Leo Maar. -2ª edição revista. São Paulo: Paz e Terra, 2020.

BRASIL, Presidência da República. Lei nº 9.394 de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Disponível em:  http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm. Acesso: 23 junho de 2022. 

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. 57.ed. São Paulo: Paz e Terra, 2018.

GALVÃO, Lúcia Helena. Uma reflexão filosófica sobre a educação. [Vídeo]. YouTube, 17 de maio de 2019. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=uE7hT3LTetY&t=1s. Acesso em: 22 de Janeiro de 2024

GODEIRO, Nazareno; GURGEL, Amanda. A quem serve a crise da educação brasileira?: uma análise da realidade educacional no Brasil e no RN. ILAESE, Inst. Latinoamericano de Estudos Socioeconômicos, 2015.

GOERGEN, Pedro. Educação e valores no mundo contemporâneo. Educação & Sociedade, v. 26, p. 983-1011, 2005.

NUNES, Antonilson de Souza. O desafio de implementar a BNCC no ensino fundamental de matemática na zona rural de Parintins. Orientadora: Isabel do Socorro Lobato Beltrão. 2021. 15 f. TCC (Graduação) – Curso de Licenciatura em Matemática, CESP - UEA, Universidade do Estado do Amazonas, Parintins, 2021. Disponível em: <http://repositorioinstitucional.uea.edu.br//handle/riuea/3373>. Acesso em: 25 jun. 2021.

SILVA, Pedro Romário Santos da; SILVA, Jefferson Rodrigues da. Educação e responsabilidade com o mundo: Reflexões sobre o contexto brasileiro a partir de Arendt e Adorno. Kalagatos,  v. 18, n. 2, p. 36–53, 2021.